Ciclos escrita por Jupiter vas Normandy


Capítulo 2
Conheci a Morte em um sonho meu.


Notas iniciais do capítulo

Demorou, mas a parte 1 (que se passa depois da parte 2 .-. ???) de Ciclos finalmente está livre para o Nyah.
Há coisas desse conto que só fazem sentido se vocês tiverem o anterior em mente, então sugiro uma passada de olho rápida pela outra parte antes de continuar, só pra relembrar. Ou não. Há coisas que nem assim fazem sentido, mas vamos que vamos, espero que gostem hehe
Sugiro a música I Bleed for You, de Peter Gundry: https://www.youtube.com/watch?v=7sALMd4Pojc



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Conheci a Morte em um sonho meu, e ela me chamou para dançar. Eu disse sim.

Pensei que não havia escolha ao receber esse convite, mas estava enganada. Não era uma imposição; em vez disso, ele me ofereceu sua mão com a suavidade e deferência de um amante gentil, e nós dançamos na escuridão.

Eu não estava com medo. Como poderia estar? Mesmo sendo a primeira vez tão perto, a primeira vez sabendo o que ele é, eu já vi esses olhos antes. Eles sempre me impressionaram, e mesmo agora eu não consigo desviar o olhar deles. Ele também não. Nos atemos aos olhares um do outro como velhos amigos ávidos por se reencontrarem. Ele, agora eu vejo… Não pude entender antes de estar perto o bastante, enquanto dançamos na escuridão.

Eu já senti essa presença antes, eu acho. Lembro no meu coração, pois não está claro em minhas memórias. Eu a senti durante meu crescimento. Eu a senti na adolescência e na infância. Eu a senti antes mesmo de reconhecer seu papel. E toda vez que ele apareceu para mim, tive uma impressão diferente daquela figura. Da primeira vez eu estava curiosa. Apesar da forma não humana capaz de causar medo em qualquer coração infantil, eu não tinha motivos para temê-lo ainda. Você nunca se aproximou, apenas me olhou nos olhos e voltou para o lugar de onde veio. Você se foi, e com você, também alguém que eu amava. Eu aprendi a lição que todos aprendem na vida: sua presença é indesejada. Você vem para nos tirar tudo. Como uma criança que nunca tinha experienciado a perda, eu lhe odiei. Ainda assim, eu aceitei sua mão, e agora dançamos na escuridão.

Você veio uma segunda vez, e eu, ainda uma criança, tive medo ao lhe ver. Você era um aviso ominoso. Apesar do meu medo, você inclinou respeitosamente a cabeça, e se foi novamente. E em um sopro da guerra, muitos do meu povo partiram com você. Depois do medo, eu senti raiva. Lembro-me de correr pela floresta, seguindo-lhe. Você não se surpreendeu. Lembro-me de gritar, perguntando-lhe por que algo como você existe. Você não disse uma palavra, mas eu ouvi sua voz.

— Eu existo porque você existe. – Aqueles olhos nunca deixaram os meus, expressando uma conformação triste, um ressentimento que eu não soube discernir. – Você sempre me odeia no começo.

Então eu estava sozinha. Novamente.

Naquela vez eu percebi, eu vi em seu olhar nada surpreso, você sabia algo sobre mim que eu ainda desconhecia. Você nunca me contou o quê, mas agora eu vejo em seus olhos, vejo o mesmo ar de reconhecimento daquele momento. Agora eu sei. Você sorri levemente, como se não o soubesse fazer. Você sorri porque sabe também. Eu sei que uma vez nós fomos os únicos seres em um mundo inteiro. Agora você sorri para mim enquanto dançamos na escuridão.

Na terceira vez, eu estava conformada. Como uma adolescente, eu não gritei com você. Eu nem mesmo lhe vi. Tudo o que eu vi foi o aspecto calmo dos enfermos que você levou, antes sofredores. Talvez você nem saiba, mas, naquela noite, sua presença me confortou. Você já não estava mais lá, mas eu ouvi sua voz uma outra vez, dizendo-me uma verdade ignorada:

— Os vivos são os que sofrem.

Estranhamente, foi o maior alívio que já senti. Eu já tinha idade para entender que você é a única coisa em que podemos confiar. A única certeza na vida é seu fim, e o fim é menos aterrorizante do que uma criança pensaria. Foi isso o que quis dizer quando falou que eu sempre o odeio no começo? Que eu cresceria o bastante para entender? Se uma vez você foi um pesadelo ominoso, agora eu sinto seu toque quente e suave sobre minha pele, quando segura meus braços ou beija meu pescoço, e percebo que eu sou quem está guiando nossa dança cega agora, pois você apenas segue meus movimentos, abraçando-me com esta saudade de uma espera eterna.

É assim que sei que estamos ambos sonhando. É assim que sei que você ainda não está aqui por mim como esteve pelos outros, a razão de seu convite gentil em vez de uma exigência irredutível. Você ainda não tem poder sobre mim. Eu sei porque uma vez nos encontramos na floresta, e passados quinze anos de nosso primeiro encontro, eu estava curiosa novamente. Eu começava a me lembrar e tinha a impressão de conhecer você, conhecer bem. Eu me aproximei novamente como uma criança curiosa, mas quando alcancei seu braço, você estremeceu de dor, recuando com a pele ferida por um mero toque. Uma memória me alcançou, uma memória distante que eu tinha em minha alma, pois este corpo não a testemunhara. Uma vez nós fomos os únicos seres em um mundo inteiro, e podíamos nos tocar até cansarmos, bebendo da presença um do outro assim como das águas do Lago Primordial onde ambos nascemos. Eu sou a mais velha de todos os seres. Eu nasci primeiro e por um tempo incontável vaguei pelo Lago Sem Fim. Então você veio. Você veio depois de mim, para mim e por mim. Não pode a Morte existir antes da Vida.

Meu beijo não terá um gosto bom, eu acho. Não em um mundo onde nossos meros toques deixam marcas. Mas você não reclama em nosso sonho; aqui é um pequeno e privado mundo apenas para nós, mesmo as estrelas estão faltando. Ótimo. Nós não queremos a vigília delas sobre nós. Elas não merecem nos observar. Você não reclama em nosso sonho quando nossos lábios se tocam e isso é um alívio mesmo para mim. Tenho minhas memórias de volta, mas só agora percebo o vazio pelo qual passava, só agora percebo o quanto senti falta de nós mesmo antes de conhecer você. Essa saudade de uma espera eterna é também minha, eu a senti minha vida inteira desconhecendo a causa, aguardando esse momento, desejando, esperando. O toque ávido da nossos corpos, o encontro melancólico de nossos lábios. O silêncio ensurdecedor desse nosso mundo.

Nosso onírico, privado e falso mundo.

A breve satisfação desse momento não dura mais que um batimento cardíaco. É como alcançar um reflexo na água, que desaparece assim que o toco. Tudo o que conseguimos desse sonho é perceber o quanto dói esta ferida ainda aberta a qual pensamos ter nos acostumado. Nos acostumamos tanto que esquecemos dela até encontrarmos um ao outro, então dor é o que conseguimos ao dançarmos na escuridão.

Curiosidade, medo, raiva, consolo, curiosidade novamente… e amor. Eu não acho que a maioria dos humanos se sinta dessa forma sobre você, meu querido. Mas eu não sou humana, sou? Eu sou a Vida. Sua oposta. Seu reflexo, mas o espelho está quebrado. Sua alma gêmea, mesmo que sejamos muito mais do que apenas almas. Seu par desde o começo até o final.

Paro nossa dança, afastando-me um passo, com minhas mãos ainda em seus ombros e meus olhos nos seus.

— Desculpe… – forço-me a dizer. O resto está preso em minha garganta. “Desculpe-me pelo ódio, desculpe-me pela raiva, desculpe-me até mesmo pela vez em que minha pele tocou a sua, deixando-lhe a dor e as cicatrizes. Desculpe-me por esquecer.” Mas eu não digo nada disso. Você já sabe.

— Você sempre me diz as mesmas palavras quando se lembra. – O leve sorriso voltou, tão suave e frágil que uma respiração poderia fazê-lo desaparecer. Era a primeira vez que ouvia sua voz de seus lábios. O som calmo e quieto pacificaria o mais selvagem dos corações a seu último batimento, mas não o meu, que sempre bate mais forte com você. – Não há necessidade de se desculpar. Eu disse uma vez: você sempre me odeia no início. É natural.

— Eu queria que não tivéssemos de passar por isso vez após outra… Sinto falta da nossa era, quando você e eu podíamos ficar lado a lado para sempre.

— Eu sei. Sinto falta também. O tempo antes dos deuses.

— Nossas crianças ingratas… – digo, ainda ressentida. Olho para a escuridão acima de nós e agradeço silenciosamente pelas estrelas desaparecidas. Elas não merecem nos observar. Nossas crianças ingratas, cuja traição nos condenou a essa existência dolorosa. Estou bem ciente de que nem todos eram traidores, mas a mágoa permanece. – Por culpa deles fomos sentenciados a este ciclo, amaldiçoados a estar em lados contrários. Porque eu sou a Vida, e a Vida deve viver.

Ele assente em resignação.

— A Vida deve viver, e a Morte deve esperar. Eu esperarei para sempre, se preciso.

— Isso é injusto…

— É sim… – Ouço sua voz em meu ouvido ao me abraçar, seus lábios brincando em meu pescoço, aproveitando esse momento em que nossos corpos podem se tocar. – Mas você se lembrou, e, por enquanto, nós não precisamos esperar. Eu vou encontrá-la de novo, logo.

Eu assenti, apoiando a cabeça em seu peito. Sinto nosso tempo acabado. Nosso sonho não durará para sempre. Tão injusto…

Ele põe o braço ao redor de mim, como se tivéssemos tempo para uma última dança às cegas.

— Por favor, apresse-se.

É a última coisa que digo antes de abrir meus olhos para longe da escuridão.

Antes de abrir meus olhos para a vida que eu tinha dessa vez.

Mas tudo é diferente agora, pois eu me lembro de cada momento de cada vida desde a nossa era. Eu me lembro de quando nascemos naquele Lago. Eu me lembro das nossas crianças ingratas. Eu me lembro da traição delas. E eu me lembro da nossa queda.

Tão injusto… Nossas crianças queriam vidas sem fim, e por isso nos separaram para sempre. O mundo que criamos para eles não era bom o bastante, então eles partiram para o Firmamento, abandonando os mortais para trás. Os mortais com quem eu me pareço, mesmo que eu não seja uma deles. Os mortais de quem eu nasço e com quem eu morro, sem nunca sentir seu toque de verdade novamente.

Tudo o que podemos fazer um com o outro é ficar perto. Não perto o bastante, mas ainda é tão melhor do que nada. Mesmo que machuque. Mesmo que seja doloroso.

Então eu espero, vivendo a vida que eu tenho dessa vez, porque eu sou a Vida, e a Vida deve viver. E você estava errado, meu querido, porque também a Vida deve esperar. A Vida espera pelo seu começo, pelo seu caminho e pelo seu fim. E eu espero por você.

E você veio.

Você veio pelo meio do meu povo, despercebido em uma forma humana, a mesma que você costumava usar eras atrás. Você nunca mudou, eu é que sou sempre diferente. Você sorri levemente, e eu acho isso bastante cruel, já que não posso tocar esses lábios no mundo fora de nossos sonhos, mas eu sorrio de volta mesmo assim.

Você me chama para uma dança. Eu digo sim. Você me estende a mão enluvada com o respeito e a espera de uma companhia fiel, e o gesto me garante duas coisas: não estamos mesmo sonhando dessa vez, e você não veio me trazer o fim como trouxe aos outros, mas permanecer ao meu lado o quanto der, até sermos separados novamente.

Nosso tempo é sempre curto, embora seja eterno. Mas se é curto, então não irei desperdiçá-lo. Aceito sua mão, e nós dançamos sob a luz de mil estrelas ingratas.


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Notas finais do capítulo

Espero que não tenha sido muito viajado, esse conto veio primeiro sem nada concreto por trás, aí fiz o outro pra tentar explicar melhor. Espero que tenham gostado ♥



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