A Maldição da Coisa escrita por PequenaNerd


Capítulo 2
Capítulo 2 - Perdas


Notas iniciais do capítulo

Aviso de gatilho: suicídio e assédio.



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          Uma chuva repentina tirou meu foco da fotografia, me fazendo levantar às pressas e fechar a janela. Me virei devagar para o local onde havia deixado o porta-retratos e o peguei novamente. Não havia mais nenhum balão vermelho atrás de mim ou da minha mãe.

            - Devo estar alucinando de fome. – Disse e ouvi meu estômago roncar. Enquanto descia as escadas, pude ver a luz da TV iluminando a sala escura. Evitei olhar para o sofá, não queria ver a expressão de culpa no rosto de meu pai. Eu sabia que precisaríamos conversar, mas agora não era o momento, afinal, eu precisava primeiro me recuperar do choque que foi ver meus planos de anos sendo jogados no lixo em segundos. Respirei fundo enquanto caminhava rumo à cozinha e, chegando lá, avistei em cima da bancada a caixa de remédios. Pensei então em tomar um comprimido para a dor de cabeça que já se manifestava há alguns minutos, mas assim que abri a caixa percebi que boa parte das cartelas estava vazia, o que era estranho, já que dois dias antes eu havia visto as cartelas de remédios cheias. Ouvi um barulho vindo da sala e, ao levantar a cabeça e perceber que a janela estava aberta, meu coração acelerou. A chuva entrava, molhando a poltrona e parte do chão. Meu pai estaria dormindo tão profundamente que sequer reparou?

            Pé ante pé eu caminhei até a sala. Se ele estivesse cochilando, não queria acordá-lo e iniciar qualquer tipo de diálogo. Conforme meu campo de visão se aproximava da poltrona, percebi uma garrafa de vidro caída no tapete. O cheiro de álcool fez com que uma careta aparecesse em meu rosto. Mas tinha algo mais naquele cheiro. Um odor fétido e forte. Então, meu coração parou. Vi meu pai sentado no sofá, com a boca suja de vômito. Sua cabeça estava caída em seu ombro. Havia alguns poucos comprimidos em uma pequena poça de vômito perto de seu pé. Sr. Grey, aos 55 anos, tinha se suicidado. E a culpa era minha.

***

            Estava fresco no dia em que meu pai foi enterrado no cemitério municipal de Derry. Folhas voavam indicando o desfolhamento das árvores que apresentavam seus galhos grossos cada vez mais aparentes. O céu estava azul, apontando o frio que cairia quando o sol se pusesse e também me lembrando de que eu passaria outra noite chorando debaixo das cobertas.

            Eu cheguei a chamar a ambulância, mas Sr. Grey já havia falecido há poucas horas. Parada cardíaca induzida pelos remédios que ele tomou – uma mistura fatal dos comprimidos de nossa caixa de remédios - com álcool. Durante a necropsia, descobriram também que meu pai provavelmente tinha um câncer de próstata devido às alterações hormonais em seu exame de sangue. O necropsista ainda disse que “talvez ele nem tivesse muito tempo de vida”. Pois, para mim, qualquer dia a mais que ele tivesse era necessário.

            Minha mãe faleceu quando eu tinha quase quatro anos. Aneurisma cerebral. Ela já sabia da existência quando quase a perdemos durante meu parto. Ainda sim, não imaginava que ela iria tão cedo. Sempre a vi como uma mulher forte, animada, inteligente, pronta para tudo que a vida pudesse lhe trazer, seja bom ou ruim. Foi um choque enorme perde-la de repente. E agora eu passava pelos mesmos sentimentos em relação ao meu pai, com adição da culpa. Eu não deveria tê-lo ignorado, não poderia tê-lo deixado sozinho. Eu jamais me perdoaria pela morte dele.

            Enquanto andava pelas ruas, recebia algumas palavras de condolências de conhecidos. Apenas sorria forçadamente e agradecia, pensando que ninguém realmente se importava com o que tinha acontecido. Aliás, tinha certeza de que julgavam, de que pensavam que meu pai estaria queimando no inferno naquele momento. Cidadezinha conservadora de merda! Como eu gostaria de sair daquele lugar, de recomeçar bem longe dali. Mas agora, sabendo que não tinha nada além das minhas economias – aquelas que iriam para minha faculdade – eu teria que permanecer ali até juntar dinheiro o suficiente para conseguir ir embora. E eu sabia que não seria nada fácil.

            Cheguei em casa já sentindo a temperatura cair. Subi lentamente para meu quarto, parando na porta do antigo quarto de meu pai e sentindo meu coração doer. Por um momento imaginei que abriria a porta e o veria deitado na cama usando seu celular, ou com os óculos tortos por ter cochilado enquanto lia alguma revista. As lágrimas já escorriam pelo meu rosto antes mesmo que eu as percebesse. Troquei de roupa e acabei tropeçando em meus próprios pés enquanto colocava a calça, caindo ao chão. Uma raiva besta tomou conta de mim, mas foi o estopim para que todos os sentimentos horríveis que eu estava sentindo se unissem e eu explodisse em lágrimas. Chorei por longos minutos, gritei, bati com as mãos no chão enquanto sentia o controle totalmente ausente. E então, quando tive forças de levantar para secar meu rosto, decidi, vendo o porta-retratos em cima da cômoda, que aquela seria a última vez em que eu perderia algo ou alguém. Decidi que não ia aceitar passar por aquilo novamente. Era a última chance que eu dava à vida.

***

            Menos de um mês depois da perda do Sr. Gray, eu estava empregada. Sr. Hills, o dono do mercado da Rua 5 a cerca de 15 minutos de casa, se condoeu pela minha situação e me aceitou como operadora de caixa. Não era nem próximo do que eu queria, mas, sem nenhuma experiência, com pouco dinheiro e com as contas chegando, foi o que me sobrou. Eu até havia enviado currículo para outros lugares mais simpáticos, como farmácias, cinema, escolas, mas ninguém queria a filha de um suicida como funcionária. Diziam que “traz azar”. Como se Derry por si só já não fosse uma cidade completamente azarada.

            Tenho que confessar que odiei o emprego logo no primeiro dia. As pessoas em Derry são comumente grossas, mas quando se trata de mim e de tudo que elas sabem – ou acham que sabem – sobre mim, a situação fica ainda pior. Posso contar nos dedos os “bom dia” e “obrigado” que recebi em um ano como funcionária do mercado. No começo eu fazia questão de ser educada, mesmo sem receber resposta. Mas então, quando tive que mudar de casa porque não conseguia pagar o aluguel e passei a morar em um quarto feio e mofado na Pensão da Sra. Danni, uma velha totalmente inconveniente, qualquer resquício de paciência que eu tinha foi embora. Eu sabia que o Sr. Hills não estava exatamente feliz com o meu serviço, e nem seus clientes, mas a pena que ele sentia ainda era maior. Porém, ela durou até o dia em que Greg, um dos adolescentes mais nojentos que já conheci na vida, entrou no mercado.

            - Bom dia, gatinha. – Ele disse parando em frente ao caixa.

            - Meu nome é Nancy.

            - Não perguntei seu nome, gatinha respondona. Me dê um cigarro.

            Revirei os olhos, respirei fundo e me virei para pegar um cigarro que ficava em uma pequena estante atrás de mim, na parede.

            - Uau, que bunda, hein. – Ouvi em tom lascivo. – Imagina isso lá em casa.

            - Está aqui seu cigarro, nojento. – Joguei a caixa nele.

            - Ei, não é assim que você vai me tratar não. – Greg sorriu maliciosamente enquanto dava a volta no caixa. – Você vai aprender como respeitar um homem, gatinha. – E, em um passo largo, ele se aproximou de mim e pegou na minha bunda.

            - Sai daqui, seu verme! – Gritei enquanto o empurrava. A minha raiva foi tanta que comecei a jogar nele tudo o que estava ao meu redor, até que puxei a máquina de cartão, que estava presa pela tomada atrás do computador, e derrubei o aparelho. Foi a maior confusão. Greg partiu para cima de mim para me agredir, enquanto outros funcionários e clientes tentavam apaziguar a situação em meio das coisas jogadas e quebradas no chão. Ao fim da briga, Greg saiu somente com um olho roxo e os lábios sangrando, enquanto eu fui embora com os braços arranhados, salário descontado pelo estrago dos produtos da loja e uma carta de demissão na mão. Sequer pude fazer uma denúncia, já que um dos clientes presentes no momento da confusão era policial e amigo de Greg e disse que me ferraria caso eu tentasse.

            “Morar em Derry é maravilhoso”, lembrei do empregador de meu pai falando enquanto estávamos de mudança. Uma pena eu não ter achado esquisito o fato de ele não morar em Derry.


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Notas finais do capítulo

Prometo que as coisas melhoram na vida de Nancy no próximo capítulo :)
Beijos.



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