A Maldição da Coisa escrita por PequenaNerd


Capítulo 1
Capítulo 1 - Derry


Notas iniciais do capítulo

Olá, gente. Faz anos que não escrevo fanfics, mas espero que essa história que ainda está sendo construída na minha cabeça agrade vocês. Beijos.



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O relógio da igreja apontava 1:45 pm. As luzes da velha ponte de Derry estavam fracas, algumas sequer funcionavam. Eu andava um pouco trôpega por conta das inúmeras cervejas que tomei ao longo da noite. E que noite! Nada melhor que afogar as mágoas em bebida após receber uma bela carta de demissão por justa causa. Como se eu tivesse culpa de não ter paciência com os clientes ridículos que me importunavam diariamente naquele mercado. Mas agora eu estava ferrada. Estando desempregada, não teria como pagar o meu quarto na pensão. E nem poderia me aproveitar dos restos de frutas e legumes que sobravam dos dias de feira no mercado. É, eu ia ter que me virar. Se eu não quisesse morar embaixo daquela mesma ponte, eu teria que dar meu jeito.

Parei no um pouco antes do final da ponte, uma luz instável piscava logo acima de mim. Me aproximei dos limites de concreto e olhei para o rio calmo abaixo. Um vento frio me assustou quando encostei minha barriga nua no concreto áspero. Só aquilo me separava das águas sujas e profundas. Apoiei minhas mãos na barreira e me inclinei até que estivesse em um ângulo de 90º, olhando as águas correrem e não enxergando mais o concreto que segurava meu corpo. Um súbito de coragem e adrenalina correram pelas minhas veias e o pensamento de que nada melhor me esperava me arrepiou por completo. Com a cabeça um pouco tonta e os olhos fora de foco, comecei a sentir meus pés se elevando do chão enquanto meu corpo pendia para frente. A coragem já ameaçava se dissipar conforme o pouco de raciocínio lógico da minha mente gritava. E então, ela foi-se embora por completo quando eu vi o estranho balão vermelho sangue flutuando em minha direção.

***

Eu não nasci em Derry. Sequer cresci aqui. E, se dependesse de mim, nunca teria conhecido esse lugar. Mas eu era adolescente quando meu pai foi demitido de um emprego que amava, começou a beber mais que o costume e a passar cerca de 14 horas por dia dormindo. Era difícil ver o Sr. Gray, uma das únicas pessoas que se importavam comigo – e com quem eu me importava também – naquele estado. Quando ele não estava bêbado ou deitado, nos poucos momentos em que eu percebia que a consciência tomava conta dele, parecia que o mundo se tornava um mar de silêncio e escuridão em volta do homem. E quando as lágrimas estavam prestes a rolar, ele se levantava para pegar seu velho uísque que eu nem sabia como tinha aparecido no aparador da sala.

            Alguns meses depois, ainda na mesma situação, ele recebera um convite de um velho amigo dono de uma fábrica de materiais de construção. Ele dizia que soube do desemprego de meu pai e o convidava a trabalhar como operador de máquinas em Derry. Não era um trabalho muito bem pago, mas era melhor do que nada, não é mesmo!? – sim, o amigo de meu pai dissera exatamente isso. E, dado o período conturbado, ele não estava errado. Assim que soube da notícia, não hesitei em demonstrar apoio para que meu pai aceitasse o pedido. Apesar de não estar nada afim de mudar de Waterford, cidade que eu adorava e tinha toda minha vida construída, não poderia deixar meu pai definhar debaixo dos meus olhos. Também não posso negar que estava sendo difícil conciliar meus estudos, provas de admissão para faculdades, trabalho de babá aos fins de semana e cuidados com o velho Sr. Gray. Uma semana e meia após o convite, nos mudamos.

***

          Apesar de todas as dificuldades e dois meses de complicada adaptação na nova cidade, eu conseguira. Aprovada. Foi a primeira palavra que li na carta que acabara de chegar pelo correio, vinda diretamente de Dublin. Aprovada na Trinity College em Política Social. Eu só podia estar sonhando: aprovada em uma das melhores universidades da Irlanda e no curso dos meus sonhos! Não contive os gritos, o que gerou preocupação em meu pai que veio ver o que havia acontecido. Demorei alguns minutos para contar – e revelar – meu desejo de fazer faculdade em Dublin, e que finalmente estava perto de concretizar esse objetivo.

            - Perto? – Sr. Grey deu uma risada discreta e sem graça. – Minha filha, quanto custa isso? Eu não faço ideia do valor, mas tenho certeza que a gente não pode pagar.

            - Pai, eu tenho minhas economias – o vi arquear as sobrancelhas em desconfiança. – Todo o dinheiro que ganhei de aniversário ao longo dos anos está guardado no banco, rendendo. E eu também tenho uma parte da herança de mamãe, lembra? Que está intocada em uma conta no banco. Deve ter o suficiente para eu pagar a faculdade pelo primeiro ano, depois eu consigo bolsa e...

            Nem terminei de contar meus planos. Vi a expressão de meu pai desabar. Ele se sentou no braço da poltrona, os olhos escuros fixos no chão. As vincas na testa ressaltadas,  o olhar caído, o silêncio cada vez mais constrangido.

            - O que houve? – Meu coração acelerado forçava meu cérebro a chegar à conclusão mais óbvia. – Aconteceu algo com o dinheiro da mamãe?

            Alguns minutos de silêncio dolorido se seguiram. Sentia meus olhos marejando, minhas mãos trêmulas. Não tinha coragem de continuar a conversa e nem de sair dali sem ter certeza do que ele falaria.

            - Eu gastei. – Disse por fim.

            - O quê!? – Um grito fino saiu da minha garganta, sem acreditar plenamente nessa teoria.

            - Sinto muito, filha. – Sr. Gray agora estava chorando. – Eu deveria ter te contado, mas achei que conseguiria repor o dinheiro antes que você o quisesse... Se você tivesse me contado dos seus planos antes, quem sabe... – Ele estava nervoso e envergonhado. – Ah, a quem eu quero enganar? Eu não conseguiria repor o dinheiro a tempo. Eu gastei tudo pagando as contas enquanto eu estava desempregado, e agora eu ganho pouco... Eu deveria ter te falado.

            Eu continuava incrédula. Sem chão. Um misto de sentimentos se desenvolvia dentro de mim: raiva, indignação, compreensão e culpa. Sim, eu sabia que a gente tinha chegado ao fundo do poço em questão financeira há alguns meses, e até poderia ter entendido caso meu pai precisasse usar o dinheiro que me foi dado como herança, desde que ele tivesse avisado. Mas, além de eu não ter ciência daquilo até o presente momento, eu sabia que parte dele tinha sido usada em bebidas, jogos, dívidas desnecessárias. E talvez até mesmo antes de ele ficar desempregado, afinal, o dinheiro no banco não era pouco. Eu não conseguia acreditar. Então quer dizer que todos os planos que eu fiz durante anos, todo meu esforço, meu trabalho, minhas noites sem dormir, os fins de semana sem sair de casa, tudo tinha sido em vão? E que a pessoa que mais deveria me apoiar foi a responsável por isso?

            Senti minhas pernas me encaminhando até meu quarto. Não sei se meu pai continuou a falar, pois a dor agora era maior que qualquer sentido. Sentei na minha cama e ali fiquei por, creio que, horas. Só voltei a mim quando o quarto estava submerso em breu e o barulho do vento derrubou algo perto dos meus pés. Me assustei e olhei para o objeto perto de mim. A fraca luz da lua iluminou meu rosto colado ao da minha mãe. Peguei o porta-retratos e observei cada detalhe da antiga foto. Era meu aniversário de três anos, comemorado no quintal de casa com meus amigos e familiares. Apesar de esse aniversário ter ficado quinze anos no passado, eu me lembrava dele claramente, afinal, foi o último em que passei ao lado de minha mãe. Dessa forma, foi grande a minha surpresa quando eu vi, no gramado atrás de nós, um balão vermelho caído com a escrita “Eu amo Derry”.


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