Um estranho no fundo dos olhos escrita por Yokichan


Capítulo 9
Capítulo IX




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Ana só retorna ao trabalho uma semana após o acidente.

Quando os dois carros colidiram a uma distância tão curta de onde ela estava que poderia ter sido fatal, ela acabou sendo atingida por um destroço – um pedaço de capô, segundo lhe informaram – e perdeu imediatamente os sentidos por conta da pancada. Ao acordar no hospital, a família reunida em torno de sua cama em um silêncio angustiado, percebeu que tinha apenas ferimentos leves e que, inclusive, já conseguia caminhar pelo quarto. Contudo, foi submetida a uma bateria de exames que acabaram por constatar que não havia nela nenhum dano mais sério. De acordo com o médico que acompanhou sua recuperação durante os dois dias em que esteve internada e que, por fim, lhe deu um atestado médico para permanecer em casa pelo resto da semana, Ana teve muita sorte.

Sorte. Ela lembra-se dos sorteios não ganhados, das rifas escolares que nunca conseguia vender, das picadas de abelha em épocas em que não deveria haver abelhas voando por aí, de tropeçar em objetos invisíveis nas calçadas, das sacolas plásticas que arrebentavam no caminho entre o mercado e sua casa, de todas aquelas situações em que ela tinha sido tão miseravelmente azarada, e presume que toda a sorte que não havia tido ao longo da vida tinha resolvido aparecer naquele único momento, como se guardada misteriosamente para ser usada na ocasião em que ela mais precisaria. Caso contrário, agora estaria morta.

De volta ao trabalho, encontra uma recepção animada no escritório, com direito a cartazes de boas-vindas, bolo de chocolate e refrigerante. Ao abraçá-la, Jana tem os olhos úmidos e divide-se entre certificar-se de que a amiga está realmente bem e repreendê-la por ter sido tão descuidada – “uma tonta que não olha por onde anda”, segundo suas palavras. A risada dos demais colegas é reconfortante e Ana agradece mentalmente por poder estar ali outra vez.

A curiosidade deles parece aliviar o peso do que aconteceu, como se a coisa toda não tivesse sido assim tão ruim, porque, ao responder suas perguntas, Ana fala sobre o acidente e sente-se melhor. Ela afasta uma mecha de cabelo para mostrar um pequeno corte abaixo da têmpora, já em processo de cicatrização, e revela uma mancha arroxeada e ainda bem feia no braço esquerdo. Conta que, além disso, sofreu apenas escoriações leves. Não, ela balança a cabeça, não viu o que tinha acontecido porque tudo havia se passado rápido demais e tampouco tivera tempo de sentir dor ou medo porque desmaiara no mesmo instante.

— E a comida do hospital? – Jana quer saber. – É mesmo péssima?

— Não é, não. – Ana ri e serve-se de mais um pedaço de bolo. – Me deram até gelatina.

— Eca. – a outra franze o cenho.

— Parece que um dos motoristas está bastante mal. – comenta um dos colegas. – Soube que também trabalha aqui na empresa.

— É um cara do setor de logística. – Pedro assente com uma expressão de pesar. – Garoto novo. Que pena.

— O carro deu perda total.

Ana e a amiga se entreolham e, de repente, ela experimenta uma angústia gelada se espalhando pelo peito. Percebe que suas mãos começam a tremer e larga o prato de plástico em um canto da mesa.

— Logística? – ela consegue perguntar, a voz ameaçando vacilar. – Quem?

— Ah, como é mesmo o nome dele? – Pedro reflete. – Nós o conhecemos naquela noite, no evento da empresa. Ele estava com seu amigo, Jana.

Não. Ana tenta se convencer de que aquilo não pode ser verdade enquanto sente os pelos dos braços se eriçarem como se tivesse ficado muito frio de um momento para o outro. Eles devem ter entendido errado. Porém, quando toma coragem para dizer o nome dele, seus olhos já estão cheios de água e um medo aterrador se insinua sob a pele.

— M-Marcos?

— Isso! Marcos. – e depois de uma pausa, Pedro suspira. – Está em coma.

Em seu desespero mudo, Ana não percebe que a colega ao seu lado cobre a boca com as mãos e a encara em um misto de surpresa e piedade. Não percebe que os demais continuam a conjecturar a respeito do seguro do carro, se cobriria o prejuízo ou não, até que se dão conta de que algo está errado com Ana e se calam. Não percebe que está apertando nervosamente as mãos sobre o colo, os nós dos dedos ficando brancos, e que derruba um copo de refrigerante ao agarrar a bolsa às pressas e sair correndo dali. Não percebe nada em seu caminho para fora da empresa.

Por quê?

Por que Marcos foi fazer aquilo?

***

Como só há um hospital na cidade, ela não tem dificuldade para encontrá-lo. Marcos Diehl. 24 anos. Acidentado há uma semana. No afã de fazer com que a recepcionista o localize o mais depressa possível, que entenda de quem ela está falando, Ana começa a descrever todos os detalhes de que se lembra a respeito dele – que é branco, cabelo escuro e muito curto, que tem olhos verdes e um rosto bonito, que é magro e alto, algo entre 1,85cm e 1,90cm, que trabalha com logística no Grupo Kreis, que dirigia um carro preto, um sedan, que é gentil e divertido e que talvez seja fumante, porque ela andou sentindo cheiro de cigarro em seu carro –, mas a mulher por trás do balcão a interrompe com um sorriso que se compadece e pede que ela se acalme.

Ana aquiesce com um soluço de choro e seca os olhos com as mãos trêmulas.

— Pronto. – a recepcionista possui um tom de voz apaziguador. – Agora vamos ver.

— Ele está aqui?

— A senhora é parente?

— Não, eu... eu só... – o que ela é para ele, afinal? – Sou uma colega de trabalho.

— Certo. – a mulher confere algo no computador e, por fim, ergue novamente os olhos para ela. – Mas não posso te deixar vê-lo.

— Por que não?!

— Porque esse paciente está em coma desde que chegou aqui. Eu sinto muito.

— Mas eu só quero vê-lo, pode ser de longe, por favor... me deixa falar com um médico.

A recepcionista está a ponto de explicar que não é assim que as coisas funcionam ali, que existem protocolos, que ela precisa agendar um horário, mas se dá conta de que a garota está a ponto de cair em prantos diante de seu balcão, os lábios tremendo, apertados em uma linha rígida, e sente pena dela. Então tira o telefone do gancho e aperta o número de um ramal.

***

A médica responsável pelo caso, uma mulher ainda jovem com um jaleco impecavelmente branco, informa-lhe a respeito do quadro clínico de Marcos. Coma causado por traumatismo crânioencefálico, hemorragia intraparenquimatosa com necessidade de drenagem cirúrgica, intubação orotraqueal, politraumatismo compreendendo fraturas do fêmur, do rádio e de múltiplas costelas, tórax instável, além de inúmeras lesões superficiais. Ana tem tantas perguntas que quer fazer à médica, mas está atordoada, e acaba apenas concordando com o que ela lhe diz sem ter a certeza de que compreendeu tudo.

O que importa é que vai poder ver Marcos.

Mas, quando a médica a conduz pelos corredores da UTI, Ana percebe que está com medo do que pode encontrar – sobretudo depois de saber que ele quebrou tantas partes do corpo. E se o acidente o tiver deformado? E se ele nunca mais recuperar totalmente os movimentos? Sentindo que as forças parecem querer abandoná-la, mas mantendo-se firme com uma determinação que não faz ideia de onde vem, Ana se pergunta o que restou de Marcos após ser atingido em cheio pelo para-choque de uma caminhonete.

A médica para diante de um quarto com uma ampla janela de vidro e Ana se aproxima. Imagina que toda a cor tenha desaparecido de seu rosto e que seu aspecto esteja deprimente, pois o olhar que a médica lhe dirige mal disfarça a comiseração. Marcos ocupa um quarto privativo e se poderia pensar que está dormindo, não fossem os hematomas em seu rosto, o tubo de oxigênio em sua boca e todos aqueles fios e acessos ligados ao seu corpo. Ao lado da cama, um monitor registra seus batimentos cardíacos e outras funções vitais que ela não entende.

Em um tom de voz que tenta transmitir tranquilidade, a médica diz que Marcos foi operado assim que chegou ao hospital por conta das fraturas na perna e no braço esquerdos – normalmente, explica, aguardariam até que o paciente tivesse melhores condições clínicas para a cirurgia, mas não puderam esperar porque a fratura no fêmur tinha sido grave, uma ponta do osso se projetara para fora da carne, e sangrava muito. Enquanto ela fala sobre as hastes de metal que haviam sido inseridas nos ossos partidos, Ana tenta imaginar a dor lancinante de uma fratura exposta e o horror da cena faz seu estômago revirar em um movimento de náusea.

Ver o quanto ele se machucou a assombra e ela dá um passo para trás. Sente que aquilo é angustiante demais e que não quer mais olhar, mas não consegue desviar os olhos.

— Por que ele... ele não consegue respirar? – a última palavra quase não se ouve.

— Por que ele foi intubado? Quando os pacientes entram em coma, a musculatura cervical relaxa e isso pode fechar a via área, ou dificultar a capacidade de respiração. A intubação evita esses riscos e as chances de paradas respiratórias.

— Paradas respiratórias? – a expressão lhe causa certo pavor.

— Ele está estável agora e vamos esperar que continue assim até acordar.

— E quando isso vai acontecer?

Mas a médica apenas cruza os braços e nega com a cabeça enquanto solta um suspiro, e Ana compreende que nem mesmo ela faz ideia de quando Marcos vai sair do coma.

***

Ao longo de toda aquela semana e da que se segue, ela visita Marcos no hospital. Quando sai do trabalho, ao invés de tomar o ônibus que a leva para casa, Ana pega um que passa próximo ao hospital e vai vê-lo. Os funcionários da recepção já estão acostumados com sua presença e simplesmente a deixam passar porque percebem que ela já decorou os protocolos de segurança – sempre utilizar o crachá de visitante, colocar o celular no modo silencioso e higienizar as mãos – e o caminho até o quarto. Ao passar da ala anterior para a UTI, Ana sente que o ar ali é diferente, frio e asséptico, como se recendesse a coisa alguma.

Aquele cheiro de nada sempre a deixa tensa.

Diante do vidro do quarto, ela o observa perdido naquele sono profundo, envolto em uma imobilidade que ainda a assusta, não importa quantas vezes ela já tenha estado ali. Ana tem a impressão de que, a cada dia que seus olhos permanecem fechados, Marcos afunda mais e mais no escuro da inconsciência. Contudo, acompanhar seus batimentos através do monitor e escutar os bipes constantes de seus sinais vitais, abafados pelo vidro espesso, é reconfortante. Ana acredita que, em algum lugar, ele está lutando para voltar.

A princípio, vê-lo de longe é tudo o que ela tem. Com o coração pesado, ela lembra-se de seu sorriso largo, do verde escuro de seus olhos parecendo mais jovem sob a última luz do sol enquanto eles conversam no estacionamento da empresa, recostados na lateral do carro. Lembra-se das coisas tolas que ele disse e que a fizeram rir. Lembra-se do calor de sua respiração e sente um aperto doloroso no peito ao observar como agora ele depende de uma máquina para levar o ar aos pulmões. Ana não pensa a respeito de ressentimento e perdão, não há espaço para isso agora – embora nada possa apagar as mentiras que Marcos lhe contou, ela só quer que ele fique bem porque a falta que sente dele é esmagadora.

Quando está ali, Ana perde a noção do tempo até que alguém vá avisá-la de que precisa ir embora, e, ao sair para a rua, percebe que já é noite.

Na segunda semana de vigília, a médica finalmente lhe permite entrar no quarto. Ana tem medo de encostar nos aparelhos, de apertar um botão ou puxar um fio sem querer, de tocar em Marcos e de fazê-lo sofrer, porque agora ele parece algo tão frágil, suspenso por um fio muito fino, mas o contato com sua pele quando desliza as pontas dos dedos sobre o dorso da mão dele suprime todas as outras coisas que ela possa sentir naquele momento. Marcos está ali e está vivo.

— Ele sente alguma coisa? – Ana questiona em um sussurro. – Ele pode me ouvir?

— Converse com ele.

Ana vira-se para a médica para perguntar o que significa aquilo, mas se dá conta de que ela já deixou o quarto e fechou a porta atrás de si.

***

Então ela conversa.

Dia após dia, sentada na cadeira pouco confortável ao lado do leito, Ana fala baixinho a respeito de sua própria estadia no hospital, bem mais curta, da funcionária da recepção que já a trata por “querida”, dos ótimos sanduíches de peito de frango da cantina, da mania de seu gato de beber água da torneira da pia do banheiro e de como ele gosta de ficar na janela do quarto, sob o sol da manhã, observando o voo dos passarinhos, da árvore que a companhia de energia cortou em sua rua porque estava, supostamente, prejudicando a fiação elétrica, do garoto que pega o mesmo ônibus que ela costuma tomar para ir ao trabalho e que sempre escuta música no celular em um volume irritantemente alto, da série que ela está assistindo na Netflix, um episódio por noite, e da panqueca de banana que tentou fazer naquela semana e que acabou sendo um desastre.

Ana conta sobre o livro que ela está lendo – O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger – e sobre todos os conflitos adolescentes do personagem principal, sobre seu ódio quase palpável. Ela diz que pode emprestar-lhe o livro, caso Marcos queira ler também, e comenta que, ao que tudo indica, ele terá muito tempo livre quando receber alta do hospital e puder continuar a recuperação em casa. Em um tom lastimoso, comenta o que ouviu falarem sobre seu carro, que ele foi totalmente destruído no acidente, e que espera que o seguro possa dar-lhe um novo. Ana deixa os ombros caírem com um suspiro e diz que é uma pena, pois tem boas lembranças daquele carro. Porém, cora imediatamente, como se Marcos tivesse escutado aquela confissão, e pigarreia de leve.

Ela então contempla seu rosto, pálido e sereno, apesar dos ferimentos, os olhos sempre fechados sem o mínimo movimento de pálpebra, e sente-se afundar em uma sombra de culpa porque compreende que Marcos a salvou. Se ele não tivesse impedido o trajeto da caminhonete, colocando-se em seu caminho, o único alvo teria sido ela. Os jornais que noticiaram o acidente haviam dito que, por conta da alta velocidade da caminhonete, o motorista do sedan tinha sido atingido quase que diretamente, comprimido contra a fuselagem do carro.

A imagem de Marcos vai ficando embaçada na medida em que lágrimas tornam a realidade uma coisa úmida e difusa aos olhos de Ana. Por que ele tinha feito aquilo, quando os dois não estavam nem mais se falando? Por que tinha arriscado a própria vida em um jogo com mais chances de perder do que ganhar, por uma mulher que havia dito nunca mais querer vê-lo? Por que precisava fazer tudo errado? Ana resmunga que ele é um idiota e que fez algo tão estúpido que conseguiu partir o coração dela outra vez.

E aperta a mão de Marcos com mais força.

Ela pede que ele volte, que volte para ela, porque, embora pareça errado, Ana o ama.

***

Marcos está em coma há quase um mês quando, ao chegar ao hospital no fim da tarde, como faz todos os dias, Ana pensa ter visto um sorriso diferente na funcionária da recepção – uma mistura esquisita de felicidade e apreensão. Ela abre a boca para perguntar se algo aconteceu, mas então o medo a domina como um presságio gelado e ela engole de volta o grito que começa a se formar na garganta. Marcos. Ana conhece as regras do hospital, sabe que não deve fazer barulho ou perturbar a ordem das coisas, mas a intuição de que algo mudou a assalta e ela atravessa correndo o caminho até a UTI.

Ao menos três pessoas tentam chamar sua atenção, incluindo um auxiliar de enfermagem que quase a agarra por um braço, mas Ana ignora todos eles. Ela só quer saber se Marcos está bem, precisa ter certeza de que ele ainda está ali, resistindo de algum modo. Por favor. Ao cruzar as portas duplas da UTI, ela pede mentalmente que, por favor, ele não vá embora.

Ver que a porta do quarto dele está aberta a faz experimentar uma angústia desoladora, como se todas as forças fossem de repente sugadas de seu corpo, e, diminuindo o passo, ela acaba arrastando-se até lá.

E começa a chorar, apoiada no batente da porta, porque Marcos está acordado.

***

Ele pisca devagar, vendo-a sentada ao lado da cama, e pergunta-se por que Ana está ali. Ela permanece inclinada em sua direção enquanto apoia uma mão sobre a sua, o nariz ainda vermelho por ter chorado. Não totalmente livre do torpor daquele sono profundo e da dose cavalar de medicação para dor que uma médica injetou no acesso colado com esparadrapo ao seu braço, Marcos tem vontade de acariciar o rosto de Ana e de pedir desculpas mais uma vez, porque a está fazendo chorar de novo, mas então uma fisgada de dor se espalha por todo o seu corpo quando tenta erguer o braço – justamente o braço cujo osso foi esfacelado – e ele se limita a contrair os lábios em um gemido abafado.

Ana se aproxima e lhe diz que ele precisa ficar quieto, que ela está logo ali e que ele está indo muito bem. Ela promete que vai ficar tudo bem e repete aquilo outras duas ou três vezes, como se tentasse convencer a si mesma. Marcos tenta sorrir, achando-a tão linda, mas até mesmo isso dói. Ele imagina o quão insuportável seria a dor se não tivessem lhe administrado nada e, olhando para seu corpo mais uma vez, admira-se de que esteja inteiro.

Marcos engole a saliva e experimenta falar, mas descobre que, a princípio, a voz apenas arranha a garganta. Apesar das advertências de Ana para que ele fique calado, com um pouco mais de esforço, ele passa de um sussurro rouco para um tom muito baixo, mas que ao menos é inteligível.

— O que... o que tu está fazendo aqui?

— Ah, meu deus, fica quieto! Tu precisa descansar. Não ouviu o que a médica disse?

— Ana.

— O que tu acha? – ela suspira. – Tu entra na frente de um carro por minha causa, quase morre, fica em coma por um mês e ainda pergunta por que eu estou aqui. Olha só pra isso... – sua voz treme quando ela passa os olhos pelo estrago em seu corpo. – Tu está horrível.

— Não era pra tu saber.

— Então tu ia se matar e não queria que eu soubesse? – Ana franze o cenho, irritada.

— Eu não... – Marcos respira devagar. – Eu quis te proteger.

— Tu não pode fazer uma coisa dessa. Como tu acha que eu me sentiria se...

— Eu te amo. – ele diz, interrompendo-a, e então repete em um tom de voz que vai sumindo: – Eu te amo.

Ana tem a impressão de que o coração dá um salto e então para de bater, como se tudo ao redor parasse também. Aquilo a pega de surpresa e ela não sabe o que fazer, os lábios entreabertos no meio de uma palavra que ela não se lembra mais qual é e o rosto ardendo sob um calor estranho, e acaba virando-se de braços cruzados para a janela envidraçada que dá para o corredor da UTI.

— Está brava comigo? – ele pergunta depois de um tempo.

Claro que está, ela está furiosa. Como alguém pode abdicar tão fácil da própria vida? Isso é inaceitável, é loucura, e Ana sabe que estaria gritando e batendo em Marcos se ele já não estivesse todo quebrado, preso a uma cama de hospital. Ao mesmo tempo, porém, quer voltar para junto dele e abraçá-lo, beijá-lo, cuidar daquele homem desatinado e inconsequente. Quer propor-lhe uma segunda tentativa – sem mentiras, sem máscaras, sem atalhos – porque agora vê que a verdade está ali, no fundo dos olhos dele, inevitável e indiscutível, e naquele sacrifício absurdo.

Quer dizer que também o ama.

— Ana. – ele chama. – Eu preciso te falar outra coisa.

— Não quero que diga nada.

Ela vira-se outra vez para ele e começa a lembrá-lo de que ele está muito falante para alguém que saiu de um estado de coma na noite passada, de que a médica mandou que ele descansasse, de que a situação ali ainda é bastante séria, e o censura por parecer não estar ligando. Marcos a observa movimentar-se nervosamente pelo quarto e segura-a pelas pontas dos dedos com a mão boa quando ela termina de ajeitar o travesseiro debaixo de sua cabeça.

A garganta está dolorida pela intubação, mas aquilo é importante.

— Tu disse que não sabe quem eu sou.

— Eu estava assustada. – ela baixa os olhos para as mãos deles.

— Tudo bem. Eu também não sabia.

— Como assim?

— Eu passei muito tempo me escondendo de mim mesmo. – uma pausa. – Fugindo.

— Marcos, eu... – Ana quer dizer que está tudo bem, que eles podem começar de novo.

— Mas agora eu sei.

Ela percebe como a respiração dele se torna mais profunda, mais dolorosa, e tem medo de que algo ruim aconteça. Ainda há risco de paradas respiratórias? O que a médica tinha dito mesmo sobre isso? Mas se dá conta de que os olhos dele estão úmidos, o verde parecendo mais escuro, e compreende que Marcos precisa ir até o fim naquilo. Então aperta sua mão e assente, esperando.

— Eu quero ser melhor... um cara melhor. Pra ti.

Ana concorda com um movimento de rosto, as lágrimas começando a tolher-lhe a visão, e encosta seus lábios nos dele. E pensa que, apesar de suas falhas, não há nenhum outro cara no mundo que seja melhor do que Marcos, nenhum outro que faria por ela o que ele fez, nenhum outro que ela queira amar.


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