A Queda Divina escrita por Vinefrost


Capítulo 6
Persona non grata




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Permaneço sem reação com a atitude de Dorothea, não há motivo para me renegar tão abertamente. Tento acalmá-la e suplico:

— Por favor, você é a minha única esperança, precisa entrar em contato com o Céu e dizer que sou inocente. Não posso passar o resto da minha vida sem saber o que fiz para merecer esta sentença – seguro sua mão e choro desesperadamente, Dorothea parece se acalmar, mas permanece impassível.

— Não posso lhe ajudar, tem que sair da propriedade e prometer nunca mais retornar. Se aparecer novamente, não será bem recebida. Nem você e muito menos o demônio que lhe acompanha - após o ultimato, a médium convoca o homem que nos aguarda do outro lado da porta no corredor.

George estava certo quando disse que Dorothea não muda de ideia assim que se decide de algo, o guarda abre a porta e aponta a arma em minha direção, com um único movimento, sinaliza com o objeto para me mover, mas antes de acatar sua ordem, faço um último pedido:

— O que fiz foi tão terrível para ser despejada do Céu e indesejada em sua casa? - minha voz sai trêmula, quase inaudível pela apreensão que a resposta me causa. Fico incerta se a médium foi capaz de ouvi-la, até que Dorothea finaliza nossa conversa com um aviso.

— Não é o que você fez, Celeste, mas o que deixou de fazer. Agora vá, anjo – ela umedece os lábios enquanto sua expressão facial suaviza. - Se me permite um conselho, esqueça o que você era, se concentre em quem é agora. Há destinos piores do que este, fique grata por ainda estar viva.  

Saio do quarto ainda mais confusa do que quando entrei. Caim me encara curioso, mesmo do lado de fora da casa, deve ter ouvido nossa conversa com seus dons sobre-humanos.

— O recado está dado – George balança a arma em nossa direção e sinaliza sua intenção ao posicionar o dedo no gatilho. – Caso apareçam de novo, não haverá conversa.

— Sinto muito pelo transtorno, não era a minha intenção – sussurro. Escondo minhas mãos nos bolsos do casaco enquanto acompanho desanimada Caim até o carro.

— De boas intenções o inferno está cheio – comenta o demônio sorrindo, minha expressão demonstra que não gostei do comentário. - Ei, não me olhe dessa forma, não sou eu a persona non grata aqui. E demônios não são conhecidos por serem recebidos com hospitalidade.

— Não estou no humor para piadas – respondo. - Nossa visita foi pior do que nada, permanecemos na estaca zero.

— Nisso eu tenho que concordar – Caim me encara intensamente e completa entusiasmado: – parece que seu mistério se tornou ainda mais interessante.  

Ele abre a porta do carro com dificuldade e deixa escapar um gemido doloroso ao se abaixar para sentar no banco do motorista:

— O que há de errado com você? - pergunto curiosa. - A bala não deveria causar tanto estrago.

— Sinceramente? Não sei, mas não quero ficar aqui para descobrir. A qualquer momento podemos ser alvejamos novamente. E se uma dessas já foi capaz de me incomodar, várias podem causar um estrago ainda maior. 

Confirmo e partimos de volta para sua casa, o caminho é silencioso, o ar denso, frustração paira sobre nós. Assim que estaciona o carro em sua garagem, peço para olhar seu ferimento. Caim desabotoa a camisa a contragosto e expõe seu peitoral definido, logo abaixo, na cintura, o local onde a bala o atingiu:

— Vai precisar de pontos, foi de raspão, mas fez um corte profundo – constato ao ver a ferida. 

Caim me leva em direção a sua suíte, a decoração do seu quarto é similar ao que estou hospedada, do armário no banheiro ele retira uma caixa de primeiros socorros, o que achei um item irônico para um demônio possuir. Caim percebe e comenta:

— Para emergências, assim como esta – diz, me entregando o objeto. Ele permanece encostado no balcão ao inclinar o tronco levemente para trás, facilitando minha visão do local.

— Tem algo na ferida, um estilhaço da bala. Vou precisar retirar, vai doer – aviso ao me aproximar, Caim balança a cabeça e sinaliza para prosseguir. 

Me abaixo para conseguir enxergar melhor o que estou procurando, enquanto uma das minhas mãos trabalha em minha tarefa, a outra repousa em seu peitoral como apoio. Começo a remexer no pedaço de bala que está encravado em sua carne, sua expressão não se altera, como se estivesse acostumado com a dor. Caim é muito bom em camuflar seu semblante e permanecer taciturno, tenho certeza que minha inexperiência médica ao tentar retirar o estilhaço deve estar doendo como um inferno. Seres sobrenaturais, anjos e demônios encarnados, sentem a dor da carne assim como os humanos.  

Mas além da sua habilidade em se manter um mistério, também é muito bom em fazer suas intenções claras quando acha necessário. Uma contradição, penso. A cena no dia anterior no banheiro mostrando meu reflexo ainda me causa arrepios quando relembro em minha memória, por isso a mantenho afastada o máximo que posso. Não preciso de distrações e nem de mais motivos para minha família me recriminar.

— Só mais um pouco, está quase saindo – informo, me solidarizando com sua dor. Não me agrada em nada ver outro ser sofrendo, humano ou não-humano. -  Pronto! Como pode algo tão pequeno causar tanto estrago... 

Assim que retiro o objeto, aproximo a pinça e analiso o estilhaço atentamente, até que noto algo peculiar. Abro a pia do banheiro e deixo a água limpar o sangue do pedaço de metal, coloco o estilhaço na palma da minha mão e comprovo minhas suspeitas.

— Está vendo brilhar em contato com minha pele? - ele assente, está mais sério que o habitual. – Tem origem divina, é aço forjado no Céu. Pode ter saído de uma armadura ou arma angelical.

— Como eles tiveram acesso a este material? - pergunta intrigado.

— Não faço ideia, mas para o terem, devem ter recebido de um anjo, ou tomado - fico em alerta. -  Estávamos correndo mais perigo do que imaginávamos.

— De fato – comenta encarando o objeto em minha mão. - As balas poderiam ter nos matado.

— Dependendo do local que atingissem, o tiro poderia ter sido letal – completo. - Venha, deixe-me terminar o curativo.   

Pressiono o último pedaço de esparadrapo e levanto a cabeça para encará-lo:

— Como diriam os humanos, “novinho em folha”. Apesar de não entender muito bem a expressão... - Caim esbanja uma expressão divertida ao me pegar encarando-o.

— Gosta do que vê, anjo? Já pode tirar a mão, mas se quiser deixar não ligo, só não prometo me comportar.  

E ele já está de volta, o Caim atirado que estou estranhamente acostumada. Retiro minha mão, constrangida, dou um passo para trás, criando distância entre nós. Cruzo os braços e imito sua expressão séria de minutos atrás ao prosseguir com nossa conversa:

— O que acha que Dorothea quis dizer sobre minha Queda estar relacionada com algo que não fiz?

— Não há ninguém melhor que você para encontrar essa resposta. Me diga, Celeste, já foi encarregada de algo e não cumpriu sua missão?  

Forço minha memória por entre as lembranças que duzentos anos de existência criaram, mas não lembro de nada que pudesse me incriminar, por isso, apenas mexo a cabeça em negação:

— Acho que o dia já rendeu demais, devemos descansar. Amanhã pensamos em outra estratégia - anuncio, Caim concorda. Sou impedida de sair do quarto assim que chego à porta, ele me segura gentilmente pelo mão e deposita um beijo, agradecendo a ajuda com a ferida.

— Não precisa me agradecer – dou um passo para fora e completo: - se comprometeu em me ajudar, preciso de você inteiro para o que vamos enfrentar futuramente. 

Malícia transborda do seu sorriso, me arrependo da escolha de palavras. Seu rosto volta a ficar sério ao me replicar intrigado:

— Enfrentar?

— Sim, veja – viro meu corpo em sua direção para lhe dar total atenção. - Você não estava no quarto, apenas ouviu de longe, mas quando a médium sentiu meu toque e ouviu meu nome, sua expressão mudou completamente. Os olhos reviraram, foi como se estivesse em alguma espécie de transe. Dorothea conseguiu estabelecer contato e o outro lado não foi nada complacente.

— Por que não lhe revelou o motivo de sua Queda? - divaga intrigado, as sobrancelhas levantadas enfatizam os vincos na testa, indicando que está pensativo. Uma mão repousa na cintura enquanto a outra percorre os dedos pela barba.

— A forma que ela me expulsou após o contato foi abrupta, os anjos devem ter dito algo que a assustou.

— Revelaram algo sobre você, mas também feito alguma ameaça para parar de procura-los - constata.

— Exato! Não devem querer que eu entre em contato através da médium e a alertaram para não me receber novamente, pelo visto, de uma maneira nada amigável.

— Sempre soube que os anjos não são esses seres imaculados que pintam na Terra, é uma linha tênue que separa as ações demoníacas das angelicais quando obstinados em alcançar seus objetivos. E agora você é um deles, Celeste. Vão fazer de tudo para que não descubra o que fez e muito menos retorne para casa.

— Como disse mais cedo, persona non grata, assim na Terra como no Céu - digo, finalizando nossa conversa.  

Deixo Caim sozinho, mas antes dou uma boa olhada no demônio, ele se observa pelo espelho e toca o local que o estilhaço o atingiu, deve estar pensando em como quase perdeu seu corpo encarnado, sua essência demoníaca iria direto para o Inferno. Até conseguir juntar forças para retornar entre os homens como um deles, levaria anos, quem sabe séculos. Torço para o que o susto não o afugente de nossa busca. O início da nossa jornada não poderia ser o pior possível... 

Passo o resto do dia no deck observando a natureza e assimilando as palavras finais de Dorothea, quando finalmente me dou por satisfeita e percebo que não cheguei a lugar algum, me preparo para dormir após um banho rápido na ducha. 

Meus pensamentos não dão trégua, reviro na cama pela décima vez, olho para o estilhaço em cima da mesa de cabeceira, pego o objeto e o seguro forte em minhas mãos, observando o brilho escapar entre os nós dos dedos. Adormeço nessa posição, me sentindo um pouco mais próxima de onde morava.


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