Contraste escrita por Paulinha Almeida


Capítulo 19
Capítulo 19




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Os dias já não estavam mais tão frios, trazendo de volta aquele clima gostoso que nos permite começar a ter vida ao ar livre. A temperatura na casa dos dois dígitos positivos foi motivo suficiente para os meus pais organizarem o almoço de família na pequena mesa que ficava no jardim dos fundos, no espaço onde Ron e eu costumávamos brincar quando crianças.

Ainda estava longe do que se pode considerar calor, mas era bom poder finalmente se sentar do lado de fora apenas com uma blusa de moletom e não ficar com frio. Harry já estava tão bem integrado nesses momentos que era fácil tê-lo ali do lado.

A conversa fluía muito bem, tínhamos momentos muito agradáveis, ele sabia como conversar com meus pais naturalmente e, no topo da lista de vantagens, o número de comentários desagradáveis e intrusivos reduzia drasticamente quando meu namorado estava por perto. Eu ainda não conseguia entender se porque meus pais alimentavam a ideia de que ele não me conhecia realmente, então eles não diriam nada, ou se por se ele encaixar tão bem no que eles consideram ideal, ofuscasse por algumas horas o fato de que eu não. Enfim, qualquer que seja o motivo, a paz era bem vinda.

—Não via a hora desses dias mais agradáveis chegarem. - Harry falou com o braço por cima do meu ombro quando meus pais foram até a cozinha buscar a sobremesa. - Logo logo vai estar quente o suficiente para dar umas voltas de moto por aí.

—Estou com saudade disso também, sabia? Podemos tentar uns lugares novos dessa vez, talvez em direção ao sul.

Estávamos conversando com o rosto bem próximo, nossos narizes não se tocavam por questão de poucos centímetros. Só ouvimos que meus pais estavam de volta quando a cadeira do outro lado da mesa foi puxada, Harry deu um beijo rápido da ponta do meu nariz e nos viramos para frente, onde minha mãe nos olhava com um sorriso orgulhoso.

—Ai Arthur, teremos netos lindos, não teremos? - Ela falou com os olhos brilhando na direção do meu pai.

Meu rosto se cobriu imediatamente num tom escarlate que eu não sabia ser de vergonha ou de raiva, Hermione segurou uma risada e Ron cobriu o rosto com as mãos, numa expressão mortificada. Harry, no entanto, diferente de todas as outras vezes em que ele apenas riu e apaziguou a situação, ficou muito sem graça e desviou o olhar, sem saber o que dizer.

—Não precisamos começar esse assunto de novo, mãe. - Falei antes mesmo que meu pai respondesse, meu tom foi tão sério que ela não falou mais nada.

O comentário matou um pouco o clima para mim, e eu podia notar que pela primeira vez desde que ele havia conhecido os meus pais, fez o mesmo com Harry.

Não ficamos por muito mais tempo depois de terminar a sobremesa, então ainda era bem cedo quando nos acomodamos novamente no meu carro para dirigir de volta para a minha casa. Harry estava quieto e pensativo na maior parte do tempo, o que não era normal.

—Quer que eu te deixe na sua casa? - Perguntei para ele quando entramos no nosso bairro.

—Não, pode ir direto para o seu apartamento, ainda está cedo.

Não falamos nada até estarmos na minha sala de estar, quando ele se manifestou.

—Gin, eu queria conversar sobre aquilo que sua mãe falou hoje na hora do almoço.

Harry começou cheio de tato, o que me fez antecipar que não estávamos prestes a ter uma conversa casual.

Eu não tinha muita experiência nessa coisa de relacionamento, mas imagino que falar sobre o futuro faça parte do pacote. E esse tópico automaticamente incluía coisas sérias e definitivas como filhos, que era uma conversa que nós dois nunca havíamos tido. Claro que eu não estava esperando nunca falar disso, só não achava que tinha qualquer pressa em trazer esse assunto a tona e muito menos queria que ele nascesse de um comentário inconveniente.

—Talvez seja uma boa ideia mesmo. - Concordei e me sentei no sofá. - Eu notei que você ficou desconfortável.

—Sim, um pouco, e você também. Esse assunto, ter filhos e tal, é algo que você já conversou com eles? Queria entender de onde aquele comentário surgiu.

Havia o risco óbvio de que esse fosse o momento em que descobrimos que nossas aspirações para o futuro são completamente diferentes e, consequentemente, nosso relacionamento pararia de fazer sentido. Ainda assim, mentir não me passou pela cabeça em nenhum momento.

—Esse assunto é algo que eles trazem à tona de vez em quando comigo e que me irrita profundamente. - Apoiei os cotovelos nos joelhos e cocei a cabeça antes de continuar, sem saber bem como colocar aquilo em palavras. - Porque a verdade Harry, é que eu não quero ter filhos e eles acham isso um absurdo.

Prendi a respiração involuntariamente enquanto aguardava sua resposta, mas assim que ele entendeu o que falei seu rosto abandonou a expressão pensativa de até então e assumiu um ar de surpresa, com a boca aberta em formato de “oh”.

—Você não quer ter filhos? - Ele perguntou com ar de surpresa.

—Não.

—Não quer agora ou não quer definitivamente?

—Não quero definitivamente, eu não sinto vontade de ser mãe.

—Oh… - Foi tudo que ele disse então.

—Isso é um problema?

—Não! - Falou rápido demais. - Só é surpreendente, mas de forma alguma um problema. Eu também não quero ter filhos, agora ou no futuro.

—Sério? - Foi minha vez de assumir o ar de surpresa. Ele confirmou com um aceno, mas eu podia ver que ambos agora tínhamos a postura muito mais relaxada. - E como você lida com a cobrança sobre isso?

—Não converso sobre isso, não é como se fosse problema de ninguém. - Ele deu de ombros enquanto dizia. - Bom, talvez seja problema seu também já que estamos nisso juntos e afeta a nós dois, mas com qualquer outra pessoa eu não vejo por que. Além disso, não precisa ser eu a te dizer que homens não são tão cobrados com nada sobre filhos.

—Pois é, nós somos. Mas que bom saber que estamos na mesma página aqui.

—Estamos, e isso me deixa muito aliviado.

—A mim também, porque eu não vejo como isso poderia dar certo se tivéssemos opiniões diferentes.

—Garota, nós somos surpreendentemente compatíveis.

—Olhando de fora eu tenho quase certeza que ninguém diria.

—Ninguém tem nada a ver com isso. - Ele falou petulante e piscou para mim.

Aquela conversa me fez perceber duas coisas em que eu nunca antes tinha prestado atenção. A primeira foi que saber que Harry e eu concordávamos com aquele ponto crucial me trouxe bastante alívio. Ainda que eu nunca tivesse antes visto minha posição quanto a maternidade como algo que talvez atrapalhasse meu relacionamento, foi bom confirmar que não era o caso. A segunda foi a confirmação de que ele também pensava em um futuro em que nós dois estamos juntos.

Saber daquilo me deixou tão feliz e satisfeita que eu pensei seriamente em agradecer à minha mãe por trazer o assunto à tona, mas pensei que ela talvez não gostasse da provocação e deixei para lá. Eu já conhecia Harry o suficiente para saber que agora que esse assunto estava bem estabelecido entre nós dois, qualquer futuro comentário inconveniente sobre o tópico apenas o faria rir e ignorar tudo com palavras educadas, como fazia com todo o resto. Eu certamente continuaria me irritando, mas já não havia nada que eu pudesse fazer sobre isso.

O primeiro fim de semana de abril trouxe o tipo de clima perfeito para o primeiro passeio de moto do ano, e Harry parecia particularmente empolgado para nossa expedição desde que me mandou mensagem no meio da semana pedindo para não marcar nada para sábado, pois faríamos uma coisinha diferente.

Ele insistiu em fazer surpresa, então quando subimos na moto dele pela primeira vez depois de um inverno rigoroso, eu ainda não sabia para onde estava sendo levada. Eu já havia me acostumado à velocidade e ao vento no rosto, apesar do capacete. Era até bastante relaxante me encostar em suas costas e ver a paisagem passando rapidamente ao nosso redor.

Já havíamos rodado quase uma hora desde que saímos da minha casa, e minha curiosidade estava aumentando cada vez mais. Não exatamente por eu não saber onde estava indo, mas porque ele estava empolgado demais, e era engraçado ver o tão sério Harry Potter, quase sempre tão contido, ansioso para qualquer coisa.

Minutos depois avistei uma espécie de estacionamento improvisado sobre a grama, mas aparentemente nada em volta além de um galpão, e aparentemente aquele também era o nosso destino, porque Harry reduziu a velocidade até parar ao lado de um carro azul. Desci do veículo e tirei o capacete antes de me virar para ele.

—É aqui? – Perguntei olhando em volta, eu ainda não entendia completamente o que havia demais ali.

—Sim. – Confirmou sorridente e puxou o capacete da minha mão.

Arrumei o cabelo e esperei enquanto ele apoiava a moto no suporte, para depois deixar nossos capacetes sobre o banco e guardar as chaves no bolso. Harry olhou as horas no relógio de pulso e exclamou satisfeito:

—Bem a tempo.

Ignorando meu olhar confuso, meu namorado estalou um beijo na minha boca e saiu me puxando em direção à construção antiga à nossa frente.

—Já posso saber onde estamos indo?

—Você já vai ver.

—A minha mente está bolando várias possibilidades para o que tem lá dentro. Não é orgia não, né? Eu não vesti uma calcinha bonita. – Brinquei com a situação, sabendo que essa seria a última coisa do mundo que Harry organizaria como uma surpresa.

Ele soltou uma risada descontraída e trocou as mãos dadas para o braço ao redor da minha cintura.

—Você está adequadamente vestida, garota, fique tranquila.

Contornamos o galpão e entramos. Harry me pediu um minuto e foi até o balcão conversar com um atendente. Enquanto isso, observei o cenário à minha volta: macacões pendurados em araras, mochilas grandes nas paredes, óculos de proteção. Me lembrava aqueles equipamentos de paintball, mas eu esperava seriamente que Harry não tivesse me tirado de casa para atirar em mim com bolinhas  de tinta que além de manchar a minha roupa, provavelmente me deixariam com hematomas. Mexi em uma coisa ou outra, andando pelo espaço amplo, até que ele veio até mim, acompanhado de um funcionário.

—Vamos?

Assenti e o acompanhei porta afora, o instrutor ao nosso lado falando com Harry.

—Como você já tem experiência, vou dispensar as explicações, mas é bom que ela saiba como agir, mesmo que não vá precisar fazer nada durante o salto.

A última palavra dita por ele capturou minha atenção imediatamente, no mesmo instante em que chegamos ao outro lado do campo, que ficava na parte de trás do galpão e eu ainda não tinha visto. Ali, estacionado, havia um avião de pequeno porte, cuja visão me fez estacar.

—Salto? – Perguntei com a voz esganiçada. – Salto de que?

—Não estraga a surpresa. – Harry o alertou, rindo.

—Ah, era surpresa? Desculpa, não tive a intenção. – O funcionário respondeu despreocupado. - Você vai adorar moça, o pessoal que vem de surpresa costuma sair impressionado. Vou checar se já está tudo pronto, precisa de ajuda para passar as instruções a ela?

—Não, pode deixar comigo. Obrigado.

Observei o rapaz se afastar e levei um segundo para assimilar tudo para o que eu estava olhando, um lado meu queria desesperadamente ter entendido tudo errado, o outro já estava quase saindo correndo.

—Harry, que porra é essa? – Foi a primeira frase que consegui formular.

—Vamos saltar de paraquedas. – Ele respondeu animado, com um sorriso enorme que eu teria achado lindo, se não estivesse meio petrificada.

—Você ficou louco?

—Você está com medo? – Perguntou sarcástico.

—Você quer que eu me jogue de um avião, é claro que eu estou com medo!

—Eu vou pular com você.

—Ah, que ótimo, vamos pular de um avião juntos, agora tudo bem. – Ironizei. - Eu tenho medo de altura.

—Mas isso é bem diferente, Gin. De lá de cima não temos a mesma perspectiva de altura que temos da janela de um prédio, por exemplo. Vai ser legal, você vai ver.

—Você já fez isso antes?

—Um monte de vezes, já tenho até licença para saltar com iniciantes. – Explicou, tentando me tranquilizar.

—Eu não vou gostar, tenho certeza.

—Como é? Você está afirmando que não vai gostar de algo que nunca fez? – Passou os braços pela minha cintura e me puxou mais para perto. – Isso vai contra seus princípios, não vai?

O ar de desafio e minhas próprias palavras jogadas contra mim me fizeram olhar feio para ele, mas também tiveram o efeito que ele queria: me fizeram considerar a possibilidade.

Abri a boca para responder, mas algumas vozes atrás de mim me interromperam e eu olhei na direção de onde elas vinham. Um grupo composto por uma moça e dois rapazes, os três se aproximavam do galpão com sorrisos alegres, usando trajes como os que eu tinha visto há pouco e carregando um amontoado de tecido que eu supus serem os paraquedas. Os três falavam empolgados sobre como era lindo, como era empolgante, que havia sido a melhor coisa que fizeram e que queriam fazer tudo de novo.

Suas expressões felizes confirmavam cada palavra, e a iminência de me sentir do mesmo jeito me fez pensar que poderia não ser tão má ideia assim se eu ignorasse a parte de saltar de um avião em movimento e a minha aversão a qualquer lugar mais alto do que eu. Talvez eu pudesse fazer isso, afinal, e como Harry disse, eu nunca antes tentei. Vai que era isso que faltava para esse meu medo irracional de altura acabar de vez?

Olhei de novo para ele, que me encarava com uma expectativa que eu havia visto poucas vezes, mas que combinava tanto com seu rosto e eu gostava tanto, que deixavam difícil dizer não.

—É muito alto? – Perguntei para que só ele ouvisse.

—Claro, Ginny, é paraquedas. Mas que graça teria se não fosse?

Pensei que para mim teria uma graça muito maior, mas não falei nada.

—Vamos lá, vai ser legal. Não é você que topa tudo e adora umas coisas diferentes? Vamos, não me sobram muitas possibilidades do que fazer com você que você nunca tenha feito antes. - Ele brincou com um sorriso de canto e eu acabei cedendo.

—Tudo bem, vamos.

A expressão de felicidade dele enquanto eu vestia aquele monte de equipamentos contrastava fortemente com meu pânico interno. Mas eu já tinha concordado, então iria até o fim, mesmo minhas pernas querendo correr para o outro lado.

Quanto mais perto da hora, menos eu conseguia falar, mas isso não foi um problema porque o Harry resolveu tudo. Fingi prestar atenção enquanto ele me explicava o que fazer, em que posição ficar e tudo o que aconteceria, e precisei de ajuda para prender todos os cintos ao meu redor, porque minhas mãos estavam tremendo levemente.

—Você está nervosa? – Harry me perguntou enquanto me ajudava a ajustar os óculos de proteção.

—Vou pular de um avião, claro que eu estou nervosa.

Ele riu da minha resposta e terminou de se vestir enquanto eu tentava não dar ouvidos ao meu crescente desespero. O esperei colocar a mochila nas costas e acompanhei até o lado do avião quando ele segurou minha mão e me puxou. Harry ainda conversou com o funcionário da empresa por algum tempo, mas eu não consegui prestar atenção em sequer uma palavra.

—Pronto, vamos lá. – Ele determinou, e sem que eu esperasse me ergueu o suficiente para eu conseguir colocar os pés direto dentro da pequena aeronave.

Mais trêmula do que jamais imaginei me sentir na vida, me arrastei para o mais longe possível da porta e sentei contra a parede oposta. A aeronave era de um modelo pequeno e provavelmente usado apenas para esses fins, pois não havia nenhum banco. Harry se sentou atrás de mim, com uma perna de cada lado do meu corpo, e o funcionário se acomodou do nosso lado. Os barulhos do motor ficaram mais altos e quando o frio na barriga característico da decolagem me alcançou, eu me desesperei de verdade.

Minhas mãos começaram a suar, meu coração batia tão forte que eu pensei que teria um mal súbito a qualquer momento. À minha volta eu ouvia vozes tranquilas conversando, risadas, alguns cliques toda vez que uma nova trava da mochila se fechava ao redor do peito do Harry ou do meu. Pareceram horas enquanto ele prendia a nós dois a todos os equipamentos de segurança, e o avião não parava de subir.

—Está na hora, vamos! - Ele exclamou uma eternidade depois, só então notei que estava de olhos fechados.

Quando abri os olhos, a janela na pequena porta à nossa frente mostrava uma infinidade de nada misturado com algumas nuvens. Eu odiava o avião, mas a ideia de voltar para terra firme dentro dele era muito mais atrativa do que saltando dele. Tentei encontrar voz para dizer que eu tinha desistido, que não iria, que estava aterrorizada, mas nenhum som saiu da minha garganta.

Tenho certeza de que se ele conseguisse me ver, teria notado pela minha expressão que aquilo era uma má ideia e eu não queria mais, tenho certeza de que não forçaria a situação. Mas eu estava de costas e paralisada demais para me virar, com a voz totalmente perdida para sequer um muxoxo, quem diria para sobrepor o volume do motor de um avião, mesmo que pequeno.

Sem esperar resposta, Harry passou os olhos e as mãos pelo meu macacão, checando novamente a infinidade de cintos de segurança ao meu redor, mas nenhum deles me deixou mais tranquila.

—A primeira vez sempre da um pouquinho de nervoso mesmo. – O funcionário da empresa tentou me tranquilizar. – Tudo certo aí?

—Sim, pode abrir.

Quando percebi que ele estava se referindo à porta do avião eu quis gritar que não, que ele podia fechar outra vez e nos levar agora mesmo para o chão, de preferência com uma aterrissagem bem suave. Dessa vez consegui emitir um grunhido sofrido, mas o barulho do motor encobriu.

Harry começou a se arrastar em direção à porta aberta, eu sentada entre suas pernas e de frente para toda aquela imensidão alta demais para que eu quisesse sequer pensar sobre ela. Tentei me segurar no chão, mas minha mão suada fez um péssimo trabalho, então apenas as prendi em sua coxa. Paramos quando nossos joelhos já pendiam para fora do avião, e a essa altura eu já não conseguia encontrar nem o rumo dos meus pensamentos, muito menos minha voz.

—Coloca as mãos assim, como eu te falei. – Ele puxou meus pulsos com cuidado e cruzou em frente ao meu peito. – Isso, pronta?

Se ele conseguisse me ver, perceberia que minha falta de palavras não era nervosismo de primeira vez, mas sim a fobia e desespero que meu rosto certamente mostrava. No pequeno intervalo de tempo em que ele contou até três, indicando o hora do salto, a única coisa que consegui registrar foi o momento em que eu comecei a chorar, e então aquele monte de nada nos engoliu e eu estava caindo com ele grudado às minhas costas.

Talvez em outra situação, como por exemplo com um óculos de realidade virtual imitando a queda enquanto meus pés estão firmemente presos ao chão, eu até gostasse da sensação do vento no meu rosto e da paisagem que eu encontraria se abrisse os olhos. Mas ali, caindo de uma altura de nem ouso perguntar quantos metros, eu só consegui me sentir cada vez mais desesperada e sem ar.

—Abre os olhos, você vai adorar a vista. – O ouvi dizer no meu ouvido, o tom de voz repleto de empolgação, mas nem tentei fazer o que recomendou.

Uma quantidade incontável de tempo depois, senti um tranco nos puxando para cima, e dei um grito agudo.

—É só o paraquedas abrindo, relaxa. É lindo, não é?

Tentei dar apenas uma olhadinha e aquilo se mostrou uma péssima ideia, pois o pouco ar que eu tinha, desapareceu quando vi os carros tão pequenos abaixo de nós. Eu não sabia quanto tempo aquilo ainda duraria, então fechei novamente os olhos e tentei me concentrar em respirar fundo e fazer o melhor que eu podia para me acalmar, embora não estivesse sendo bem sucedida.

Senti quando o braço dele se fechou à minha volta, mas não consegui entender o que falou próximo ao meu ouvido. Segundos depois meus pés tocaram o chão, e no momento do impacto eu só não caí porque ele estava me segurando. A falta de firmeza nos meus joelhos não passou despercebida, no entanto.

—Espera aí, Gin. – Ele falou, tentando se equilibrar e prendendo o outro braço ao meu redor, para me segurar.

Eu não conseguia sentir minhas pernas, assim ficava extremamente difícil me firmar no chão sozinha, então acabamos nós dois ajoelhados no gramado úmido do local onde pousamos. O senti soltar todos os cintos que me prendiam à ele, tirar a mochila das costas e se arrastar até ficar de frente para mim. Vi o sorriso empolgado se transformar em preocupação assim que ele viu meu semblante aterrorizado.

—O que foi? – Perguntou assustado.

—Eu tenho medo de altura, seu idiota.

Antes de conseguir me frear, eu comecei a chorar de novo, mais forte do que quando estava no avião. Minhas mãos ainda tremiam, minha posição estava desconfortável, mas eu não conseguia me mexer, aquele óculos estava apertando meu rosto e não havia nada em mim sequer parecido com a empolgação das pessoas que vi mais cedo.

—Ei, vem aqui. – Harry se aproximou e tirou o óculos de mim, os deixou no chão e me puxou para um abraço. – Por que você não me falou?

—Eu falei, sim.

—Do jeito que você falava eu pensei que você não gostasse de olhar pela janela do prédio, tivesse medo de elevador, sei lá, coisas normais que as pessoas não gostam e chamam de medo de altura. Eu não sabia que estávamos falando de uma fobia. - Ele parecia realmente arrependido daquela ideia e muito preocupado. - Desculpa, é que pra mim não parece que você tem medo de coisa alguma.

Eu teria rido e gostado desse comentário, se não estivesse me sentindo ainda completamente trêmula e soluçando por causa das lágrimas. Aos poucos meu coração foi voltando ao ritmo normal e as lágrimas cessaram. Me afastei do peito dele e limpei o rosto.

—Me ajuda a tirar essa roupa, está me sufocando.

Ele fez o que pedi e liberou meus braços, deixando o macacão preso apenas até minha cintura.

—Melhor?

Assenti e levantei o cabelo da minha nuca suada.

—Desculpa, garota. – Pediu carinhoso e me deu um selinho demorado, acariciando minha bochecha.

—E eu achando que eu era a pessoa dessa relação que testava os limites do outro. - Minha voz ainda não estava soando normal, mas pelo menos eu já conseguia falar. - Se você queria uma coisa que eu nunca fiz antes, parabéns, nunca antes achei que eu fosse morrer.

Ele riu e me abraçou.

—Longe de mim querer te matar.

—Se um dia quiser você já sabe como. Nunca mais vou olhar para surpresas com a mesma empolgação.

—Depois de hoje eu que nunca mais vou te submeter a altura nenhuma. Vou mudar tudo que você usa na minha casa para as prateleiras de baixo para você não ter que subir em cadeiras, lacrar as janelas para você não olhar de lá de cima e daqui pra frente quando a gente transar você só fica por baixo.

—Sem dúvidas uma linha de raciocínio mais segura que pular de um avião. - Rolei os olhos para o exagero dele.

—Eu quebrei de vez o seu clima hoje ou ainda está a fim de fazer alguma coisa juntos?

—Se não envolver tirar os pés do chão, pode ser.

—Eu tinha planejado dar uma volta depois daqui, meio sem rumo, passar o dia fora, comer em algum lugar que a gente encontrar pelo caminho. Mas se você preferir, podemos ir direto pra casa.

—Não, vamos, só deixa eu respirar um pouco, sentir o chão bem firme embaixo de mim e parar de tremer.

Ele se afastou e sentou atrás de mim, me puxando para sentar entre as pernas dele e encostar em seu peito.

—Você abriu os olhos pelo menos um pouquinho? - Harry me perguntou depois de um minuto de silêncio.

—Por menos de meio segundo, sim.

—Aquela vista de lá de cima é a minha visão preferida no mundo, eu estava louco para que você visse também. É lindo, não é? - Os olhos dele brilharam e meu coração escapou uma batida com aquela frase.

Era gostoso saber que ele queria compartilhar comigo sua visão preferida no mundo, e me fazia sentir muito sortuda.

—Não consegui ver direito, eu estava muito ocupada tentando continuar respirando, mas consigo imaginar. 

—Na próxima vez que eu saltar, trago minha câmera e filmo para você ver melhor. Você pode vir comigo e me esperar aqui embaixo, o que acha? - Ele olhou em volta e se virou para mim de novo. - O lugar é legal, podemos dar uma volta, nos perder um pouco por aí.

—Você é um cara incrível, sabia? Mesmo quando está quase me matando, como hoje. - Virei o rosto para o lado e encarei seu perfil enquanto dizia.

—Eu acho que eu sou um cara melhor com você. - Ele me olhou de volta e me deu um selinho rápido antes de continuar, os olhos pregados nos meus. - Eu amo você, garota.

Se Harry queria que eu tivesse a sensação de estar voando, era só ter me falado aquilo antes, poderíamos ter dispensado o avião e evitado um ataque de pânico.

—Eu amo você também. - Respondi com um sorriso gigante que espelhava o dele, e que logo se transformou numa risada. - Se você queria algo que eu nunca fiz antes, então hoje você arrasou, porque eu nunca falei isso para ninguém.

Seus braços se apertaram mais ao meu redor e ele se aproximou mais do meu rosto.

—Eu sou sortudo pra caralho!

—Você é mesmo, Potter, e que sorte a minha por isso.

Ao contrário do que li em tantas descrições vazias de como é amar alguém, não houve certeza à primeira vista, nem descarga elétrica passando pelo meu corpo quando nos tocamos a primeira vez e muito menos a sensação de que agora eu estava completa, pois havia encontrado tudo o que sempre procurei. Muito melhor que isso, o que me preenchia naquele momento era a sensação de escolha certa e uma convicção reconfortante de que eu também era uma pessoa melhor com ele.


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Notas finais do capítulo

E finalmente esse “eu te amo” que os dois já tinham dito tantas vezes com os olhos e gestos, agora em palavras.
E de quebra outra característica surpreendente do Harry, que aparentemente gosta até demais de altura. É um boy completo, esse.
Não deixem de me dizer o que acharam, lembrem-se que comentários são muito motivadores.
Beijos e até mais



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