Presos Por Um Olhar escrita por Carol McGarrett


Capítulo 10
Sonho


Notas iniciais do capítulo

E aqui estamos para mais uma atualização no meio da madrugada...
Katerina e seus sonhos...
Espero que gostem, boa leitura!



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"O vi e me encantei.
Te olhar me seduziu.
A ele me entreguei.
Pelos sorrisos dos teus olhos me apaixonei."

Zil Soares

 

Eu poderia considerar esse o meu primeiro dia no trabalho. De alguma forma louca, consegui chegar às 9:00 em ponto. Ainda não tinha ninguém, como Milena havia me dito, o pessoal só chegava às 10:00, os demais funcionários sim, eu não, porém ainda precisava melhorar o meu horário de corrida se quisesse parar de correr tanto para me arrumar.

Logo que cheguei, decidi que iria terminar os relatórios de ontem, antes que os de hoje pedissem passagem, ao fundo, liguei a TV em um canal de notícias para me inteirar sobre o que acontecia no mundo e, depois de colocar a água para ferver, me sentei, conferi a minha agenda, minha primeira reunião com os chefes de setores seria só na parte da tarde e mergulhei no trabalho.

Depois de um tempo e muitos relatórios prontos, percebi que o burburinho aumentava, os funcionários estavam chegando, e pude escutar claramente alguém dizer:

— Ela não foi embora? Ontem quando saí, e eu fui o último a sair, ela ficou, fui o primeiro a chegar e ela já estava aqui!

A vontade que eu tive de aparecer na porta foi imensa, mas ninguém tinha nada a ver com os meus horários.

— Muito provavelmente não deve conhecer nada da cidade ainda... assim, só sabe trabalhar, aliás, escutei uma fofoca que ela realmente é daquelas que dorme no escritório.

— Uma chefe sem vida social! Ótimo. Aposto que ela vai exigir que mudemos de horário, quer apostar quanto?

Me interessei no quesito aposta.

— Eu não vou apostar nada. O sobrenome dela está estampado no alto desse prédio. Ela tem o poder aqui. Você tem ideia de quão difícil é arrumar um emprego se a sua carta de recomendação vier com um “não vale a pena contratar” escrito por alguém poderoso como ela?

A voz número 2 poderia não gostar de mim, pelo menos tinha respeito.

— Eu ainda acho que ela vai mostrar as garras.— Voz número 1 retrucou e saiu andando.

Não me surpreendia que dois homens estivessem falando de mim nesse tom, em Londres era a mesma coisa.

— Sem vida social... – Murmurei. – Se ao menos eles soubessem. – E me foi impossível de não abrir um sorriso ao pensar em Alex, seus olhos e seu sorriso. O que claro, me distraiu um pouco.

Na TV falavam do mercado financeiro. As principais bolsas operavam em alta, os investidores estavam otimistas com o novo pacote de recuperação da economia americana.

— Desde que não mexam no preço do petróleo... porque na última alta, tivemos um prejuízo e tanto! – Falei para ninguém e voltei minha atenção para a última ficha de candidatos à vaga de estágio.

Todos pareciam bem qualificados para a área em que se inscreveram. Há muito eu tinha deixado de julgar idade e gênero, isso, no fim das contas, não vale para nada, afinal, como bem Q disse em 007: Skyfall: "juventude não é sinônimo de evolução e nem idade é sinônimo de experiência", e, para mim, homens e mulheres sempre competiram de igual para igual.

Assim que baixei a última pasta dos candidatos, Milena bateu na porta.

— Bom dia, Katerina! Os comentários por aqui é que você madrugou.

— Bom dia, Milena! Ainda não foi o horário que eu queria, mas cheguei mais cedo do que ontem.

— Sua agenda permanece a mesma. – Me informou.

— Isso é bom. Só não me diga que tem uma fila de relatórios me esperando do outro lado da porta...

— Ainda não, mas parece que terá para mim.

Dei um tapinha no alto das pilhas. As mais urgentes já estavam todas revisadas e assinadas.

— Sabe a lei do retorno? Então... isso aqui é a representação física dela. – Brinquei.

— Na verdade, eu só passo para frente mesmo. Os setores que se acostumem com o seu ritmo de trabalho acelerado. – Ela falou e pegou uma das pilhas. Foi preciso três viagens para que a mesa começasse a aparecer com uma mesa de alguém organizado, e, já conseguindo ver o tampo, permiti relaxar um pouco e tomar uma xícara de chá. Escorei a minha cabeça na cadeira e respirei fundo, tentando relaxar os músculos do pescoço, para a segunda rodada que me esperava. E quando eu fechei os olhos, não sei se porque eu bebia um chá com um aroma diferente ou se era por causa de tudo o que eu pensara de manhã, só sei que me vi no passado novamente.

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Eu podia sentir o ar quente bater em minha pele, sabia que estava em local praticamente com clima de deserto, algo acontecia do lado de fora e, assustada, percebi que o idioma falado ali era o curdo.

Me levantei de meu leito, o aroma de chá impregnava o lugar, em um espelho vi que estava com uma suntuosa roupa vermelha, um contraste e tanto com a minha pele branca, aliás, eu era um contraste com todos ao meu redor, e caminhei até a janela do Palácio. De lá, pude avistar uma Mesquita, que reconheci como sendo a Mesquita de Al-Aqsa, estava em Jerusalém.

Algo acontecia abaixo de mim, como se fosse uma briga, uma luta. Logo uma ama e um criado entraram nos meus aposentos e começaram a me pedir para acompanhá-los, puxando-me pelo braço, algo os estava assustando.

O criado simplesmente soltou: “os cristãos do distante reino da Inglaterra estão aqui.”, enquanto minha ama jamais me soltava o braço.

Passamos através das passagens secretas do palácio, locais que meu pai havia me ensinado há um tempo, e, apesar de ele ser o Grande Sultão, ainda corríamos risco, afinal a Igreja não havia desistido de retomar Jerusalém.

Quando avançamos por um pátio, ouvi que as vozes estavam ainda mais perto, e, em um movimento súbito, atendi à ordem de parar.

Estaquei onde estava, minha ama quase caiu de joelhos diante do grupo de quatro soldados, todos eles com uma malha branca com uma cruz vermelha por cima de suas cotas de aço.

Um veio na minha direção, os outros três pegaram o criado e o subjugaram com suas espadas. Permaneci onde estava e observei, com os rosto baixo o soldado na minha frente, ele deveria ser importante, afinal os demais ouviam as ordens dele, talvez fosse o capitão daquele destacamento.

O Capitão deu mais dois passos na minha direção, minha ama se desesperou, se colocou entre nós e gritava para que eu me escondesse.

Eu não tinha para onde ir, e seus gritos em nada ajudariam agora, poderiam até piorar a situação.

Quando ficamos frente a frente, o Capitão tirou seu capacete, revelando um cabelo castanho, uma cicatriz em cima da sobrancelha esquerda e um par de olhos azuis que me fizeram perder o fôlego.

O Capitão, ao me ver, fez uma vênia e se abaixou em sinal de respeito.

— Deves ser a filha de Saladino. – Ele me surpreendeu ao falar meu idioma. – Perdoe-nos, Princesa. Estas livre para ir.

Como manda a minha tradição, eu não poderia falar com um homem estrangeiro sem algum dos homens da minha família por perto, porém, mesmo se que quisesse, eu não conseguiria. Eu não encontrava a minha voz, não encontrava a força de vontade de sair de perto dele.

Minha ama, ainda muito desconfiada, me puxou pelo braço e saiu xingando estes invasores. Eu não pude evitar de olhar para trás e para os olhos azuis do Templário que ainda me olhava, não sei bem o que ele esperava ver, pois a única parte visível de mim eram os olhos. Porém, pude jurar que ele tinha dito:

— Os olhos mais lindos que já vi.

Meu sonho avançou para outra imagem, eu, sim, era eu ali também, ouvindo às escondidas uma conversa entre meu pai e seus imediatos. Tudo o que conseguia ouvir era que meu pai estava em Guerra com um Rei conhecido como “Coração de Leão”, por sua bravura.

E todas as vezes que a guerra chegava perto demais de nosso palácio, eu era obrigada a mudar de lar, meu pai poderia ser até um cavalheiro quando se tratava de guerrear, mas ele disse que jamais me usaria como moeda de troca para alcançar a paz com o distante Reino da Inglaterra.

Foi em 1191, que tornei a ver o Capitão dos Templário. Com a derrota do exército de meu pai na batalha de Açurfe, novamente estava sendo transportada de Alepo para Jerusalém, e, em uma intercessão do caminho, nossa caravana foi interceptada. Como disfarce, estávamos viajando como peregrinos e comerciantes, com roupas baratas e gastas, porém, quando fomos parados, mandaram revistar tudo e quem dava as ordens era justamente o Capitão.

Como a maioria das mulheres que ali estavam, mantive meu rosto baixo, os olhos sempre no chão, em sinal de respeito e medo. E, até determinado momento estava dando certo, quando minha ama, com medo de que algo pudesse acontecer, me empurrou para longe do Capitão. Esse movimento chamou a atenção do exército, e um deles fez menção de me puxar, para ser logo repelido por seu superior.

— Vocês vêm de onde? – Ele perguntou.

— Alepo. - Um dos homens de confiança de meu pai disse. – Somos comerciantes.

O Capitão parou na minha frente.

— Quero ver os rostos de todos. – Ordenou.

Isso era impossível, nós não mostramos o rosto para os homens, só para nossos maridos.

— Agora!

— Elas até podem levantar os rostos, mas entenda, nobre senhor, nossa cultura não as permite que mostrem o rosto a nenhum homem que não seja o seu marido.

— Então que me olhem.

Uma a uma, nós levantamos os rostos, e o Capitão passou como que em revista de tropa. Ele olhou para cada uma de nós e, quando ele parou na frente da minha ama, eu tinha uma certeza, ele me reconheceria. Pelos olhos.

O Capitão Templário parou na minha frente. Olhou bem nos meus olhos. Eu senti a minha pele ferver por baixo da burca, enquanto olhava no fundo dos olhos azuis dele, e depois, com um aceno de cabeça, nos deu passagem.

Não entendi, se ele me reconheceu, e eu sabia que ele havia me reconhecido, por que me deixou ir?

Voltava para o meu lugar na fila, quando ele passou perto de mim.

— Diga a Saladino, que a filha dele não merece morrer. – Ele sussurrou ao meu ouvido. – Eu jamais mataria uma mulher como você.

Eu só soube arregalar os meus olhos e discretamente olhá-lo.

— Nos veremos novamente. Acredite em mim, Princesa.

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Voltei à realidade com o meu telefone tocando. Procurei pelo celular e me dei conta de que era o aparelho da minha mesa.

— Nieminen. – Atendi.

— Katerina, o Mitchell do setor financeiro, está perguntando se é possível adiantar a reunião das 13:30? – Milena me perguntava.

Olhei para o meu serviço e para o horário.

— Para quando?

— Agora, se possível.

Eram onze e meia, não faria mal atrasar o meu almoço para me ver livre de uma das reuniões para a escolha do estagiário.

— Claro, pode falar para Mitchell subir.

— Sim, senhora.

Enquanto aguardava um dos Chefes de Sessão, pensei no meu sonho, o primeiro deles se passou em algo perto do Século VIII, por conta das navegações Vikings, o de hoje, era claro para mim que se tratava da época da III Cruzada, a presença de Saladino e de Ricardo Coração de Leão me falava que era aproximadamente 1191, ou até mesmo perto do Tratado de Ramla, que foi em 1192, pelo que diz a história.... quem diria!

Dois séculos completamente diferentes, três culturas completamente distintas e eu tinha o mesmo sentimento, sendo o Capitão um cristão e a Princesa uma mulçumana, eu temia que o fim dessa história fosse parecido com o casal Viking que eu já tinha visto.

— Será esse nosso destino? – Perguntei para mim mesma, enquanto arrumava as pastas e o tablet em cima da mesa de conferência.

Mitchell apareceu dez minutos depois e nós dois começamos a discutir os prós e os contras da dupla candidata, ele tinha uma leve inclinação pelo estudante de Berkeley, apesar de que o currículo dos dois estudantes fosse bem parecido para mim.

— Você quer fazer a entrevista? – Perguntei.

— Não é assim que fazemos por aqui!

— Bem, estou vendo que você realmente estudou os dois currículos aqui. – Apontei para as pastas. – E eles vão trabalhar sobre suas ordens. Se quiser, fique à vontade.

— Sim, vou preferir.

— Ótimo, só me deixe saber qual dos dois. Parecem ser excelentes.

— Sim, senhora.

— Marque com o RH a data da entrevista. O dia que lhe for melhor.

E, depois de passar pelo assunto estagiários, passamos para discussão do departamento. Eram 12:45 quando ele saiu da minha sala. Minha secretária estava no horário de almoço e eu ainda pensando no sonho. Resolvi que pularia o almoço e faria um jantar para mim em casa, assim, outro bule de chá foi posto para ser preparado e eu voltei ao meu trabalho.

Segui a minha agenda normalmente e consegui, quase no final do expediente, organizar os relatórios e colocar tudo mais ou menos em dia. Tinha sido um bom dia, apesar de que meu sonho e a minha constatação ainda assombrassem os meus pensamentos.

Às 18:30 os funcionários começaram a sair, minha secretária, que tinha distribuído relatórios entre minha sala e os setores e vice-versa, por praticamente todo o dia, se despediu e brincou que no dia seguinte viria de tênis para conseguir completar essa maratona sem cansar os pés.

Fiquei mais um pouco no escritório, terminando os relatórios financeiros e mandando os seus resumos para Londres, tinha coisa que era possível enxugar, outras requeriam um aumento nos repasses, e tudo isso foi devidamente transcrito e informado para o Conselho Geral.

Ouvi a equipe da faxina começar seus trabalhos e me lembrei de uma promessa feita na parte da manhã. Assim, desliguei os computadores, a TV, arrumei o que estava fora de ordem e guardei todos os relatórios em armários seguros, quando coloquei o pé para fora de minha sala, Fátima Fuentes, a Chefe das Faxineiras, quase morreu de susto.

— Senhora!

— Boa noite, Fátima! Desculpe-me pelo susto e nada disso de me chamar de senhora! É Katerina, por favor.

— Não foi nada! Está precisando de algo?

— Não, já estou indo, não vou atrasar o trabalho de vocês novamente.

— Não atrasou, Katerina. – Ela confirmou. – Precisa que limpemos algo a mais?

— Não. Tudo está no lugar, é a faxina de sempre. E muito obrigada! Tenham uma boa-noite! – Falei ao entrar no elevador. As faxineiras ficaram me olhando como se eu tivesse três cabeças.

Ao chegar no estacionamento, novamente só havia o meu carro e, novamente, eu me senti sendo observada. Caminhei apressadamente e destranquei as portas e não fiz hora para sair dali, confesso que senti falta de saber que Alex estaria na calçada me esperando.

Liguei o rádio, só para ouvir como estava o trânsito, ainda meio engarrafado, ou seja, sem novidade alguma, resolvi por desligá-lo e coloquei uma música bem calma que não me estressaria mais do que o trânsito parado. Depois de longos cinquenta e cinco minutos de agonia, consegui chegar em casa, e até os meus cachorros estranharam a minha presença dentro do apartamento tão cedo e vieram me receber fazendo uma festa incomum.

— Sim, eu sei, é cedo, são 20:00 horas, mas me deem um desconto. Além do mais, vocês dois precisam sair! – Acariciei as cabeças de meus fiéis amigos peludos, fui para meu quarto trocar de roupa e, menos de dez minutos depois, estava dando uma volta com eles. Thor como sempre tinha que farejar até a própria sombra, já Loki caminhava mais tranquilo ao meu lado. Minha voltinha foi maior hoje para compensar a segunda-feira que ambos passaram presos. Quando me virei para retornar para minha casa, me senti novamente sendo observada. Olhei em volta, não vi ninguém, os carros que passavam não eram suspeitos assim como os demais pedestres que cruzavam meu caminho, mas, pelo bem ou pelo mal, eu andei em um passo mais rápido, nada que cansasse a dupla, só para garantir que logo estivesse na segurança do meu apartamento.

Assim que entrei e coloquei a porção de ração correspondente ao jantar de meus cachorros, cheguei na sacada e olhei para baixo, tentando descobrir se eu não estava ficando louca. Não vi nada de suspeito, e não tinha nenhuma pessoa parada perto do prédio.

Balancei a cabeça e resolvi fazer algo para comer, afinal, minha última refeição decente fora o café da manhã que Alex tinha trazido.

Pela hora, não comeria nada pesado e comecei a preparar uma receita bem basiquinha que mataria a minha fome e enquanto eu fazia meu jantar, meu pensamento voou para a noite anterior, o jantar que tive, e, claro, para a companhia que tive. Foi então que resolvi mandar uma mensagem para ele.

Já saiu do seu tão misterioso trabalho? Espero que tudo tenha dado certo por aí...

Esperei a resposta imediata. Não veio. E me vi decepcionada ao saber que jantaria sozinha. Comi distraída, ora pensando em Alex, ora meu pensamento vagava para o sonho ou visão que tive durante o dia.

— Eu nem sabia que Saladino teve filhos.... – Comentei em voz alta. – Mas verdade seja dita, sempre estudei mais o lado do Rei Ricardo I... – Continuei falando sozinha, o que atraiu a atenção de meus cachorros.

Acabei o meu jantar, arrumei a cozinha e como eu, deliberadamente, não trouxe serviço para casa, porque tinha praticamente colocado tudo em dia, resolvi por a roupa para lavar e, enquanto isso, fazer uma breve pesquisa nos meus livros que já haviam chegado, procurando algo sobre as Cruzadas.

Minha estante era lotada de livros, todos que foram lidos estavam ali, os que esperavam leitura, estavam em uma caixa...

— Vamos lá, eu tenho que ter algo sobre as Cruzadas... – Murmurei.

Na verdade, eu tinha mais de um livro, a biografia de Ricardo Coração de Leão e um livro de história mais geral.

Abri o primeiro em busca de uma parte específica. É claro que muito do que estava ali eram fatos históricos que foram provados, jamais publicariam um livro sobre algo que as pesquisas provaram.

Vasculhei o capítulo que tratava da Queda de Jerusalém e do Tratado de Ramla. Não falavam nada sobre Saladino ter uma família.

Troquei de tomo e busquei na história, menções à Família de Saladino, eu sabia que seria praticamente impossível ler alguma coisa, mas a esperança é a última que morre.

Cansada do trabalho e esperar por alguma resposta de Alex, decidi por tomar um banho e ir para cama, tendo como leitura, as Cruzadas.

Estava para desligar a luz dos abajures quando meu celular vibrou na cabeceira. Peguei para ver quem poderia ser.

Me desculpe por não ter te respondido mais cedo, o trabalho levou mais tempo do que eu pensava. E eu achando que poderia te fazer companhia no jantar hoje... não sei se você está acordada, Kat, boa noite, amanhã levo o nosso café da manhã, se você não se importar.

Fiquei olhando para a mensagem, com um sorriso no rosto. Era meu dever devolver o boa-noite.

E depois sou eu quem trabalha demais... – Mandei a primeira.

Não vou dizer que gostei de jantar sozinha dentro de casa, porque não gostei. Senti a sua falta.

Vá descansar, nos falamos amanhã bem cedo.

Boa noite, Alex! Beijos!

Voltei para a minha leitura, não tinha o que eu queria saber, mas uma passagem me chamou atenção. Era minúscula, porém interessante, dizia a respeito da morte de Saladino, que ocorreu em 1193. E, ao terminar de contar como foi o funeral dele e onde ele está enterrado hoje, menciona a seguinte passagem.

Depois da morte daquele que foi conhecido como Sultão, sua família acabou por se dissipar, afinal, toda a riqueza do patriarca foi doada para a caridade ainda em vida. Relatos dizem que sua irmã foi para o Egito, outros parentes permaneceram em Jerusalém e Alepo. E, algumas fontes históricas dizem que um de seus descentes chegou a embarcar para a Inglaterra de Ricardo I, porém, não há mais dados para se saber se efetivamente isso é verdade e quem seria essa pessoa.

Essa passagem me chamou a atenção e me deu a estranha esperança de que se tratava da Princesa. Será que ela tinha conseguido o seu final feliz?

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Oriente Médio, 1192/1193

Minha chegada à Jerusalém depois que nossa caravana foi interceptada pelos ingleses acabou sendo mais rápida do que eu e até mesmo meu pai, esperávamos.

Claro que o incidente foi contado aos mínimos detalhes para o Sultão. Meu pai, mais tarde, depois de se reunir com seu Conselho, me chamou em sua sala, para uma audiência particular.

Quando entrei, devidamente acompanhada por minha ama, ele a dispensou e me permitiu tirar a parte da burca que cobria meu rosto.

— Conte-me, com detalhes, o que lhe aconteceu durante a viagem.

Narrei o acontecido, deixando de fora somente a promessa do Capitão Inglês de que nos veríamos novamente.

— Ele disse que a filha de Saladino não merecia morrer?

— Sim, meu pai. Foi exatamente o que ele disse.

— E como ele te reconheceu?

— Pediram que levantássemos o rosto, meu pai, seguimos todas as tradições, estes forasteiros não viram nada mais do que nossos olhos.

Meu pai passou a mão pela barba comprida.

— Eu soube no momento que você nasceu que seus olhos e a cor de seus cabelos seriam um problema.

Abaixei minha cabeça em sinal de respeito. Eu poderia não concordar com o que ele dizia, mas eu jamais desrespeitaria a sua autoridade.

— Então este é o mesmo Capitão que interceptou a sua caminhada um ano atrás?

— Sim, para ter me reconhecido, sim.

Ele respirou fundo e mudou de posição em seu trono.

— O Rei Inglês quer uma trégua, e me propôs que casasse a sua tia com um primo dele... não quero fazer isso.

Dei um passo para trás, com medo do que viria a seguir.

— Deveria aceitar a proposta e terminar essa Guerra, mas ainda tenho esperanças de reaver Jerusalém. – O Sultão prosseguiu.

Continuei calada.

— Mas tenho medo do que isso possa me custar. – E Grande Sultão olhou bem para mim. – Esteja preparada para fugir, minha filha, se algo me acontecer, porque tenho a certeza de que você será disputada a golpes de espada, se eu cair em batalha.

— Alá não permitirá que caia, meu pai. – Afirmei.

— Não sabemos o que nos espera, somente Alá sabe. Mas esteja avisada. Mesmo dentro do Palácio, cuidado.

— Sim, meu pai. Terei cuidado.

Com um sinal de mão ele me dispensou. Recoloquei a minha burca sobre a cabeça e saí do salão, minha ama me esperava ao lado da porta.

O tempo passou, e eu era basicamente uma prisioneira dentro de minha própria casa. Eram raros os dias em que eu podia sair nas ruas, mesmo que para apenas um passeio.

E foi em um desses dias que eu o vi novamente. Estava sozinha, assim como ele que passou por mim, dentro de sua armadura e seguiu o seu caminho, para logo fazer a volta e parar a poucos metros de mim. Eu tinha parado em uma barraca no souk, onde vendiam joias, olhei para cada uma delas, desejando que pudessem ser minhas, e, fiquei por muito tempo com uma pulseira em minha mão. Era linda cravejada de pedras azuis, que me lembravam os olhos do Capitão. Ao ter esse pensamento, recoloquei a joia em seu lugar e fui continuar o meu passeio.

Não percebi que estava sendo seguida até que passos, definitivamente masculinos, começaram a fazer o mesmo percurso que eu. Essa era uma rota um tanto secreta para o Palácio, que me levaria para uma entrada escondida.

— Creio que a senhorita esqueceu isto. – O homem falou. A cadência de sua voz, o sotaque com o qual pronunciava o meu idioma, eram estranhamente familiares, porém não parei. Não podia ser vista sozinha com nenhum homem em nenhuma circunstância.

Meus passos curtos foram fáceis de serem alcançados, e o Capitão seguiu do meu lado, até uma curva do caminho, era justamente ao lado da murada do Palácio, um local onde nada, nem ninguém, poderia nos ver ou escutar.

— Por favor, espere. – Ele pediu.

Reduzi os passos e ele me cercou pela frente.

— Para você. – Me estendeu a pulseira que me encantara tanto.

Balancei negativamente a cabeça e tentei sair de seu cerco.

— Eu sei as suas tradições. Sei que não pode conversar comigo, mas aceite esse presente, sei que você pode dizer que a comprou, eu não ligo, não contarei a ninguém. Só aceite o presente, Princesa.

Eu fiz a única coisa que eu não deveria fazer. Eu olhei nos olhos dele.

— Por favor. – Ele estendeu a joia e fez a menção de me ajudar a colocá-la. Hipnotizada pelo azul de seus olhos, eu cedi. Não deveria, mas cedi. Estendi minha mão esquerda para ele que, com muito cuidado, envolveu meu pulso para levantá-lo mais alto e depois, colocou ali a pulseira, e, antes que eu pudesse tirar o meu braço de seu alcance, ele pegou a minha mão e a levou até os lábios. O toque de seus lábios em minha pele foi quente e me trouxe a estranha sensação de que eram conhecidos. Delicadamente ele soltou minha mão e me olhou. – Sei que não posso vê-la, mas não há nada que eu não daria só para ter um vislumbre de seu rosto, Princesa.

Eu ainda estava paralisada por seu ato, minha mão esquerda parecia que tinha sido queimada com brasa e minha pele estava quente. Em um ato insano, mas ao mesmo tempo voluntário, estendi minha mão direita até o seu rosto, passando a ponta de meus dedos desde a cicatriz em sua sobrancelha até os seus lábios. Ao sentir meu toque ele fechou os olhos.

— Obrigada, Capitão. Usarei este presente e sempre me lembrarei de ti. – Sussurrei.

Ele beijou a palma de minha mão e antes que ele abrisse os olhos eu andei até o portão escondido.

Como ele falara, a aparição de uma joia em meu pulso não foi questionada e a partir daquele dia, duas coisas aconteceram, eu carregava algo que sempre me remeteria a ele, e, toda semana, na mesma hora e local, nós passamos a nos encontrar. De início era rápido, depois, a cada dia, ficávamos mais tempo, até que eu comecei a não ir mais para o comércio e passava toda a minha tarde ao seu lado.

Meses depois que nossos encontros viraram rotina, o Sultão e o Rei fecharam um acordo. Jerusalém era dos Ingleses. Era final de 1192. Pouco tempo depois, Coração de Leão voltou para seu Reino, deixando o agora General para tomar conta de Jerusalém. Meu pai insistia que eu deveria me mudar para o território da Síria e estava planejando isso com o restante da família, já que eu era a única mulher ali. Meu coração se rebelou contra essa decisão e eu acabei tendo a ideia de fugir, fugir com o meu General.

Porém, eu não precisei fugir de meu pai. Logo no início de 1193 ele morreu, nunca soube de que, eu, como a única mulher entre os filhos e solteira, não tinha o que receber de herança, e, dias depois de seu funeral, fiquei sabendo que não havia fortuna nenhuma para ser dividida entre os homens da família.

Meus irmãos quase entraram em guerra, porém, acabaram por aceitar. E, com uma estranha felicidade, notei que nenhum deles queria assumir a responsabilidade de ser meu guardião até que me casasse. E foi diante disso, e da notícia de que Alexander, esse era o nome de meu General, iria voltar para a Inglaterra, que tomamos a decisão.

— Me espere na praia. Se possível, não use a burca, vou colocá-la na galé que nos levará até o porto de Roma.

— Eu estarei lá, ao raiar do dia.

Foi fácil deixar tudo para trás e seguir Alexander. E como poucos me conheciam sem a burca, mais fácil ainda trocar de nome, deixei Samira para trás para me tornar Katerina quando passamos pelo Porto de Alexandria.

Eu finalmente achei a minha felicidade, o meu lugar. Pena que nunca chegamos ao Porto de Roma. Uma tempestade no Mar Mediterrâneo afundou nosso barco.


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Notas finais do capítulo

Adendos históricos: Saladino realmente existiu, assim como Ricardo Coração de Leão.
A história de que Saladino morreu mas doou toda a sua fortuna para os pobres também é verdade. A única invenção na história é sobre a filha. Não tem nada falando sobre ela em lugar nenhum, Samira não existiu, foi licença poética minha. Quem quiser ter uma ideia do que foram essas batalhas, recomendo o filme Cruzada, com o Orlando Bloom.
Sobre os fatos aqui narrados, peguei muita coisa na própria Wikipedia e foi desbravando os temas, não está completo (nunca é, eu sei!), mas vale a leitura para quem ficou curioso!
Muito obrigada a quem leu! Apreciaria muito comentários, mesmo críticas!
Até a semana que vem!
xoxo



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