Pelos Olhos Teus escrita por Victoria Aloia


Capítulo 2
Capítulo 1 - Novos ares


Notas iniciais do capítulo

Olá você!

Desejo uma boa leitura e até as notas finais.



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Eu fui uma criança muito feliz. Hoje, sozinha em um outro país, com saudade de casa, mas não sabendo mais se onde passei minha vida era de fato minha casa. Morava ao lado de minha prima Cora, brincávamos todos os dias depois que chegávamos da escola e ainda tinha minha irmã mais nova, Cat. Passávamos horas as três brincando juntas na varanda ou da minha casa ou da casa de Cora. Éramos muito próximas mesmo tendo nossas diferenças, tanto que minha mãe ainda hoje conta a história de como pedi que ela e meu pai me dessem uma irmãzinha.

Na escola tinha amigas que me visitavam em casa frequentemente, na época em reforma para acomodar o segundo andar que meus pais estavam construindo. Falando neles, eu acreditava que eram felizes juntos e, quase três anos depois da reforma, minha mãe descobriu que estava grávida de um menino.

Lembro que estávamos na casa da minha tia para as festas de final de ano, nos preparando para a ceia de Natal, quando a bomba explodiu pouco tempo depois. Eu tinha apenas seis anos. Aquela noite passa como flashes de memória em minha mente. Todos esperando meu pai chegar do suposto plantão, apertados na sala minúscula do apartamento. Minha mãe ao telefone falando com a recepção da empresa. Minhas tias abraçando minha mãe que estava escorada na parede azulejada da cozinha e levando-a para o quarto da minha tia, ela dormiu até a manhã seguinte. Eu no sofá com a minha avó materna assistindo televisão perguntando o que tinha acontecido e onde estava o meu pai. 

Depois disso, tudo me parece um grande borrão. Cenas picadas vistas com meu olhar de sono semi-acordada. Aquele Natal desencadearia uma série de paranoias e inseguranças futuras. Não tenho mais raiva ou mágoa do meu pai, só não consigo entender porquê ele fizera aquilo com minha mãe. Porque ele fez aquilo com a gente. O que se passa na cabeça de alguém para trair uma pessoa? 

***

Não tenho mais tantas lembranças da época em que meus pais estavam juntos. Acho que aquele episódio foi  suficiente para meu cérebro apagar qualquer resquício de memória dos dois. Seria doloroso demais lembrar dos dois juntos e perceber que eles não têm mais isso, fora o fato de eu ser muito nova para me lembrar de algo muito além disso. Todas as memórias deram espaço a sonhos e eventos imaginários. Minha mente começa a revelar alguma coisa de quando eu tinha acabado de mudar de escola, do terceiro ano do ensino fundamental para frente. 

Depois de alguns anos minha mãe me contou toda a história, com os detalhes de como ela havia juntado cada peça do quebra-cabeça da traição que meu pai cometeu. Contou que ela contatou a amante e, mesmo assim, seu amor pelo meu pai era tão grande que ela ainda pensou em passar por cima disso, passar por cima da desconfiança que teria dali para frente e esquecer que um dia ele fizera isso. Mas não deu certo e eles resolveram pedir o divórcio.

Com isso, as coisas passaram a ficar complicadas em casa. Infelizmente dependíamos muito do salário do meu pai. Minha mãe trabalhava como autônoma e recebia valores que variavam. Ela não fizera faculdade pois seu grande sonho era se casar e formar uma família (maldito pensamento machista do século XX). Além de começar a ver os agrados de minha mãe como gastos extras que deveriam ser cortados do nosso orçamento, foi plantada em mim a semente do que hoje é chamado de empoderamento. Comecei a ter um pensamento mais crítico e responsável, o que fez com que eu percebesse que o fato de eu estudar em uma escola particular estava dificultando ainda mais nossa situação financeira. 

Então, quando minha mãe surgiu com a ideia de eu ir para uma escola pública, não hesitei. Faria tudo o que estivesse ao meu alcance para ajudar. Mas quando chegou o primeiro dia na escola nova, não tinha ninguém conhecido para me ajudar com a transição. Eu senti o baque que era ser a garota nova, e eu estava completamente sozinha, ali e em qualquer outro lugar. Dali pra frente seria eu por mim mesma. 

Saí de uma vida simples e planejada, tão boa quanto um presente de natal amarrado com uma fita e um grande laço em cima, para saltar à uma completa desconhecida e desordenada. E assim, eu, com toda minha ingenuidade e visão utópica do mundo, pensei que seria mais fácil. Mas nunca é. Nenhum começo é simples, fácil, dado de mão beijada a ninguém. Imaginei que seria apresentada para a turma depois que conhecesse a escola. Isso não aconteceu. Nenhuma das duas coisas, ser apresentada à turma ou conhecer o prédio. A primeira foi um alívio. Eu corava com extrema facilidade e não seria nada confortável me apresentar para o que parecia ser uma sala com pelo menos trinta crianças completamente diferentes, de mim e entre si.

Porém, o alívio durou pouco pois, assim que a coordenadora me levou da secretaria até a sala de aula, todos já estavam lá dentro com olhares alguns curiosos, outros de desdém. Me perguntei o motivo, mas hoje parece bastante óbvio: quem vai para uma escola sem nenhum material? 

A sala de aula era grande, com paredes pintadas em um tom bem claro de amarelo, janelas por toda a extensão da parede oposta à da porta. A lousa de giz com escrita colorida não lembrava em nada o quadro branco que tinha na minha antiga escola. As carteiras com mesas grandes e uma espécie de bandeja na parte de baixo da mesma cor que a cadeira, um verde vivo que doía os olhos se olhasse por muito tempo. Todos sentados um atrás do outro, enfileirados. 

Era o início do terceiro ano do ensino fundamental, então todos naquela sala já se conheciam dos dois anos anteriores, pelo menos. Eu, além de não conhecer ninguém e não ter levado material, começava a me sentir completamente idiota parada na frente do quadro negro esperando a coordenadora terminar de falar com a professora, que mal pareceu se importar com a minha presença, ou fazer alguma questão de me recepcionar. Eu realmente era uma estranha no ninho e continuava a ser observada por uma horda de crianças uniformizadas com camiseta branca e calças azul celeste. 

Não tinha razão para eu não levar o material escolar, mas estava crente que a escola seria apresentada para todos, o que não fazia o menor sentido exceto na minha cabeça. Quando encontrei um lugar próximo às janelas, última carteira, a salvo dos olhares daquelas pessoas estranhas, a professora passou uma folha de papel para colocarmos nossos nomes como uma chamada. Ao final da lista assinei o meu nome, com uma caligrafia tão caprichada quanto a caligrafia de um aluno do terceiro ano pode ser. 

Devolvi a caneta que tinha pedido emprestada à garota sentada à minha frente e a professora parou ao meu lado. Ela me encarou como se eu fosse uma alienígena com penas roxas, antenas brilhantes e oito olhos. 

— Onde está o seu material? 

Ela era baixa, devia ter no máximo um metro e cinquenta e cinco de altura, tinha o cabelo bem ralo e grisalho, preso em um coque frouxo e baixo que batia na gola alta de sua camisa estampada com flores enquanto andava. Com certeza ela tirou a cortina da casa da minha avó para fazer aquela camisa. Por cima desse horror fashion, como diria Marcus (amigo de Cat), ela usava um avental branco com bordado nas pontas e bolsos que não combinava em nada com o sapato branco de enfermeira que ela usava.

— Err… Eu não trouxe. Achei que fossem apresentar a escola. - falei já sentindo o rosto quente com a vermelhidão e sua expressão ficou carrancuda, e pude ver mais uma ruga se formar em sua testa e acentuar os pés de galinha.

— O que fez você pensar isso? Não importa - ela balançou a cabeça negativamente e pousou a mão direita sobre o ombro da garota sentada à minha frente - Mariana, leve essa menina à secretaria e peça um pouco de folhas sulfite e uma caneta para ela. Qual seu nome, aliás?

— Olívia. Olívia Maria Dubois, professora. - Minha voz saía como um sussurro e eu poderia facilmente ter torcicolo pela curvatura do meu pescoço, tão baixa estava minha cabeça.

Todos estavam me olhando com uma cara que dizia “que garota idiota!” enquanto me levantava e seguia a garota à minha frente, cujo nome aparentemente era Mariana,  até a porta da sala. Assim que a fechamos atrás de nós, ela desatou a falar. Parecia estar se desculpando pela atitude rude da professora.

— Não liga para ela, não. O pessoal do quarto ano falou que ela é frustrada porque o marido dela a largou para ficar com uma mulher de 25 anos com tudo em cima. Ela não está nos seus melhores momentos, sabe? 

De repente um sentimento começou a pesar em meu peito, algo que fazia eu não saber o que fazer, que me desnorteava. Eu comecei a chorar naquele instante. Queria ir para minha casa. Queria que meus pais não tivessem se separado, que eu não tivesse que mudar de escola. Minha mãe tinha me explicado na semana anterior o que acontecera e dito que meu pai não voltaria para casa. Caramba! Eu era apenas uma criança de oito anos, não era para me envolver nisso tudo, para eu estar a par da situação. Me frustrei e escorreguei pela parede do corredor com as portas das salas de aula todas fechadas.

— Não chora. Vai ficar tudo bem. É só o seu primeiro dia, vai melhorar. Eu prometo. - Mariana tinha se sentado ao meu lado e me abraçou pelos ombros

Na época ela tinha cabelos alisados, pretos como chumbo, presos em um apertadíssimo rabo de cavalo no alto da cabeça. O rosto bem arredondado e a pele negra bem lisa com grandes bochechas. Seus olhos castanhos-claro eram reconfortantes como seu abraço que me envolvia em seus braços roliços e dedos curtos com unhas pequenas pintadas de rosa-shocking. 

Depois desse primeiro dia catastrófico na minha visão de criança, Mariana me apresentou Breno, um garoto mais baixo que nós duas e bem magro, com grandes olhos castanhos e cabelo arrepiado, Wallace que ao contrário de Breno era bem alto e um pouco mais forte, também de olhos castanhos e sobrancelhas grossas, e Lúcia, que tinha cabelos com longos cachos dourados e pele bem clara, como a minha. 

Era um grupo bem esquisito, mas o bom da escola pública é que ninguém está nem aí para de onde você vem, como se veste ou como se comporta. E eu fiquei extremamente feliz em poder pertencer àquele grupo de “não-desajustados”.

***

Já era o terceiro ano que estava ali e eu havia perdido completamente o contato com as poucas amizades que tinha feito na escola primária e, sinceramente, não me fazia falta nenhuma. Não era como se eu fosse tê-los pelo resto da vida, e eu era muito nova para ter amizades verdadeiras e duradouras. Naquela época, queria distância dos meninos por serem nojentos e muito brigões, e as meninas brigavam por prendedores de cabelo. Quando fui para  a escola pública, as pessoas tinham problemas de verdade e brigavam por coisas um pouco mais sérias (não que brigar na porta da escola por um garoto fosse tão sério ou maduro assim). 

Pela primeira vez não me sentia deslocada como no colégio anterior, onde todas as meninas eram basicamente uma cópia da boneca Barbie e só se importavam em onde passariam as férias: na casa de praia ou na Disney, e eu estava bem com todos ao meu redor. Lá cada um tinha uma característica própria e era isso que eu gostava no nosso grupo de amigos: todos eram diferentes, mas nos dávamos muito bem. Mariana devorava os livros da biblioteca, Lúcia era um gênio da matemática e ciências, Wallace jogava muito bem e poderia ser escolhido para ser o capitão do time de futebol nos jogos interclasse quando fôssemos para o sexto ano, e Breno simplesmente era o piadista da turma, mas não atrapalhava as aulas então estava tudo bem. Já eu amava as aulas de História e produção de texto. De fato éramos complexos.

Quando o pai de Lúcia disse que eles voltariam para o Nordeste para cuidar da avó dela que estava muito doente e não tinha mais nenhum parente que pudesse ajudá-la, o grupo se afastou um pouco. Nos dividimos, praticamente, quando Paula, uma garota de cabelos longos e claros com um corpo bem esguio, se juntou a mim e à Mariana e quando um aluno novo foi para o lado dos meninos. Não fazia ideia de como a entrada daquele garoto na nossa turma afetaria todo o resto da minha vida.

Estávamos na aula de História, lendo sobre Grécia Antiga, quando ele entrou na sala acompanhado da nova coordenadora, que era bem mais gentil que a de quando eu cheguei na escola. Ele tinha um cabelo cacheado precisando de corte, olhos castanhos bem profundos e era a personificação da palavra normal. 

De fato, não tinha nada demais nele, exceto um ar um pouco arrogante que notei quando ele seguiu da porta até a carteira atrás da minha, me encarando de cima a baixo segurando um boné branco com uma escrita em vermelho na mão que também segurava a alça da mochila apoiada em apenas um dos ombros. Era a segunda aula, segunda semana do ano letivo, por que ele entrou agora? Não fazia o menor sentido, mas guardei meus questionamentos já que eu não era lá o melhor exemplo de lógica. 

Fui tirada de meus pensamentos curiosos quando senti uma pressão no meio das costas. Ele estava me cutucando. Virei-me e ele me pediu uma caneta emprestada dizendo que esquecera o estojo em casa. “Isso é sério?”, pensei. Peguei uma caneta e entreguei-a a ele, que agradeceu e eu rapidamente voltei para frente.

Outra pressão nas costas. Dessa vez ele pediu que dividisse o livro para que ele pudesse entender em que parte daquela “matéria chata e sonífera” estávamos. Aquele comentário foi demais para que eu aguentasse calada àquele insulto à minha disciplina favorita. Nem me preocupei em como ele, com seus onze anos, conhecia a palavra sonífera e sabia seu significado para aplicá-la em uma frase. Apenas o encarei e falei com os dentes cerrados:

— Se estudar história é tão chato assim, pode ficar sem ler o texto. - voltei minha atenção para frente, encarando o quadro e sentindo meu rosto queimar. 

Com toda a certeza havia ficado muito corada naquele momento. Normalmente eu não agia assim, mas algo naquele garoto com ar insolente despertou isso em mim. Ao final daquele período, fomos todos para o pátio aproveitar o recreio junto dos outros alunos de anos mais novos e deixei que ele se encarregasse de se enturmar.

Como sempre, eu fiquei no refeitório com Mariana e Paula comendo meu lanche de presunto e queijo e depois fomos para fora tomar um ar. Tínhamos só onze anos, mas o sentimento de maturidade que tínhamos ao observar as outras crianças correrem pelo pátio por quase vinte e cinco minutos enquanto ficávamos sentadas e conversando era inevitável. De alguma forma acreditávamos que já não tínhamos mais idade de ficar brincando por aí, e até paramos de chamar a hora do lanche de Recreio e passamos a chamar de Intervalo, o que era algo que apenas os alunos do sexto ano em diante faziam.

Quando voltamos para a sala de aula, o menino veio se desculpar e falou que não acreditava que alguém pudesse gostar de História, de verdade. Havia alguma coisa no olhar dele, como se ele realmente se arrependesse de ter feito o comentário.

— Tudo bem. Mas nunca mais diga aquilo! História é sensacionalmente importante para nossas vidas. - lembrando disso agora, parecia minha mãe falando 

— Aliás, meu nome é Augusto. - ele se apresentou

— Me chamo Olívia. - virei-me para frente e comecei a anotar o texto da lousa no caderno 

Eu ainda estava meio nervosa com isso, principalmente depois de ele ter me lembrado, mas aceitei suas desculpas e na última aula dividi a leitura do texto de Português com ele, que passou a se sentar ali todos os dias.

Mais de um mês se passou, estávamos no final de março e descobrimos que um outro aluno havia chegado na escola, dessa vez em outra turma. Se éramos diferentes, esse menino juntava todas as nossas peculiaridades nele mesmo e a externava em seus olhos puxados, seu cabelo preto e extremamente liso, apesar de arrepiado em alguns pontos, visivelmente rebelde. Ele não parecia ser do tipo mais sociável, e vendo-o quieto no canto sem conversar com ninguém, nos despertou interesse.

Depois de uma longa conversa e de ter comprado um chocolate com caramelo na cantina para a inspetora, conseguimos descobrir que seu nome era Júnior e que os pais dele tinham se mudado recentemente do interior para a cidade. Ele tinha, inclusive, um irmão mais novo que, quando cheguei em casa, descobri estar na mesma sala que Cat. Então, tive uma ideia e foi aí que aconteceu a primeira burrada da minha vida.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenha gostado.

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Até o próximo capítulo!



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