Jornada nas Estrelas: Iguaçu escrita por Laertes Vinicius


Capítulo 5
Manme




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Havia duas salas de transportes na USS Iguaçu, ambas com capacidade ideal para seis tripulantes por vez, embora pudessem transportar até vinte indivíduos ou o equivalente a esse volume em objetos. A principal delas, chamada de sala de transportes 1, situava-se na parte superior da nave, na popa do deque 15, dois deques abaixo da ponte. A outra, chamada de sala de transportes 2, situava-se na proa, deque 9, próxima aos laboratórios. Em cada uma, por turno, trabalhava uma dupla formada pelo operador do transporte e por um segurança, de prontidão para qualquer emergência ou necessidade. A sala número 1 era mais utilizada pelos grupos avançados formados, sobretudo, pelos oficiais superiores e tripulantes da ponte, além de ser o caminho principal para convidados. A sala número 2, por sua vez, era utilizada principalmente pelos grupos avançados de estudo científico e para transporte de cargas. Além de transportar pessoas e coisas de dentro da nave para fora e vice-versa, elas também eram responsáveis em transportar algum tripulante diretamente para a enfermaria, por exemplo, em caso de emergência médica, entre outros transportes internos, quando necessário.

Na sala de transportes 1, um grupo avançado composto por Da’Far, Hashimoto, dois membros da divisão de operações e um da engenharia, liderados pela comandante Shion, aguardava autorização da ponte para ser transportado. O destino era uma nave abandonada na órbita de um maciço planeta rochoso, localizado em um sistema de apenas dois planetas e uma estrela supergigante vermelha. Ela não emanava nenhum tipo de ruído de deslocamento subespacial ou energia residual, e fora descoberta em meio às inúmeras luas fragmentadas do planeta, após uma série de sondagens padrão. Além de estar inerte do ponto de vista mecânico e energético, não havia sinais de vida biológica a bordo, e havia uma moderada radiação multicisurânica, tornando o ambiente impróprio para a maioria dos humanoides conhecidos.

Um minuto restante para o final da varredura de antipólarons. — Ouviu-se a voz de Chelaar, transmitida da estação de ciências da ponte. – Os níveis de radiação multicisurânica já estão em parâmetros aceitáveis, mas vamos dar uma margem de segurança.

— Entendido. – Disse Shion.

A nave alienígena tinha um aspecto obtuso, com uma inclinação diagonal incomum e dezoito protuberâncias cônicas á estibordo, tendo cerca de um sexto do tamanho total a Iguaçu. As sondagens indicavam que a tecnologia de propulsão era absurdamente ultrapassada para os padrões da Frota Estelar, podendo, aparentemente, atingir velocidade máxima de dobra 1,5. Os sistemas de escudos e armamentos eram igualmente arcaicos, compostos de polarizadores variáveis e canhões de plasma.

Varredura completa.— Informou Chelaar.

— Obrigada, comandante Chelaar. Vamos nos transportar agora. – Disse Shion. – Sra. Alfredsson, energizar.

Um instante depois o grupo avançado estava na ponte da nave alienígena, a qual era pequena e apertada, com o teto baixo se comparado ao da USS Iguaçu, e apenas quatro estações de trabalho, alinhadas lado a lado. Todos os painéis eram negros, feitos de uma liga metálica pouco resistente, contendo inúmeros botões quadrados e alavancas, além de telas ovaladas, as quais estavam desligadas devido à ausência de energia.

— Não há sinais de que essa nave tenha passado por um combate ou um acidente. – Disse Hashimoto, examinando o painel central desligado. – Apesar do evidente abandono, se a engenharia estiver em tão bom estado quanto a ponte, eu não me surpreenderia se o reator pudesse ser ligado com alguns reparos simples.

— Vá até a engenharia, comandante. – Disse Shion à Hashimoto. – Veja o que consegue. Alferes Lobo e subtenente De León, acompanhem-no. Nós ficaremos aqui e tentaremos obter alguma informação dos painéis principais.

— Sim, senhor. – Disse Hashimoto, e os três deixaram a ponte pelo corredor da lateral esquerda, em direção à engenharia, que ficava no meio da nave.

— Curioso. – Disse Shion. – Não há sinais de formas de vida ou cadáveres, mas os módulos de fuga permanecem atracados.

— Talvez eles tenham sido sequestrados por adversários de superior tecnologia. – Sugeriu Da’Far. – Com os escudos primitivos desta nave, nós, por exemplo, conseguiríamos transportar facilmente toda a tripulação para nossa área de carga antes que eles pudessem se dar conta de que estavam sob ataque.

— Ou então ela passou por sérios problemas técnicos e a tripulação foi transferida para uma outra nave antes que a energia acabasse totalmente e ela ficasse à deriva. – Arriscou o tripulante Slane.

— Improvável, tripulante. – Disse Da’Far. – Esta nave está em ótimas condições, não haveria razões para não a terem rebocado e consertado, ou até mesmo a desmontado e utilizado seus componentes em outras naves.

— Talvez desconhecessem os meios para neutralizar a radiação multicisurânica. – Insistiu Slane. – Poderia ser fatal para a espécie deles.

Shion mexeu as antenas, ponderando as hipóteses.

— Eu adoro um bom mistério. – Disse ela, examinando os painéis escuros.

Enquanto o grupo avançado iniciava o reconhecimento da nave abandonada, a oficial de ciências Chelaar se dirigiu ao laboratório 2, onde passou a examinar alguns dados com o auxílio do doutor Horvat.

— Inicialmente eu pensei que a radiação tivesse sido fruto de um defeito ou colapso das bobinas de transferência de plasma. – Explicou a tellarita. –Todavia, ao rever o mapa de dissipação percebi que o foco não estava na engenharia, mas sim no controle de suporte de vida, ao lado dos geradores atmosféricos. – Ela apontou um ponto na planta virtual da nave, exibida na tela do monitor. – Possivelmente ela era emitida a partir desses reatores, se é que posso chamá-los assim.

— Entendo. – Disse o médico. – Você supõe que a radiação multicisurânica era um componente natural para a espécie que estava a bordo daquela nave.

— Exatamente. – Assentiu Chelaar. – Mas não sei se existem precedentes de espécies que sobrevivam à uma exposição prolongada desse tipo de radiação, muito menos que necessitem dela para viver. Por isso presumi que o senhor gostaria de dar uma olhada, pois soube que é um especialista em funções biológicas exóticas.

— Está correta. De fato, eu nunca ouvi falar de nada desse tipo. – Concordou Horvat, embora não parecesse genuinamente empolgado com a possível descoberta. – Não consigo imaginar como seria a fisiologia de um indivíduo capaz de tal resistência à radiação, e muito menos qual seria a função biológica dela.

— Contatei o grupo avançado e pedi que examinassem a central de suporte de vida assim que possível. – Disse Chelaar, um pouco frustrada com a reação fria do médico. – Com as sondagens detalhadas, poderemos entender melhor o seu funcionamento e, com sorte, descobriremos uma espécie única.

Horvat apenas assentiu com a cabeça, olhando fixamente para o monitor.

— Algo errado, doutor? – Perguntou Chelaar, contendo o impulso de insultar sua falta de ânimo.

— Não é nada, comandante. – Respondeu ele. – Apenas estava pensando que este seria o tipo de descoberta que minha esposa daria tudo para ter feito.

— Bom, o senhor pode compartilhar com ela quando retornarmos à Via Láctea. – Disse Chelaar, embaraçada com a saudade exagerada que Horvat demonstrava sentir pela esposa. – Se nossas suspeitas estiverem corretas, poderemos até mesmo nomear essa relação bio-radioativa em sua homenagem, tenho certeza que ela ficaria lisonjeada.

— A senhora é muito gentil, comandante, mas isso é impossível. – Disse Horvat, pesaroso. – Ela está morta.

— Perdão, doutor. – Desculpou-se Chelaar, corando. – Eu não sabia, imaginei que...

— Tudo bem, comandante. – Interrompeu Horvat, amigavelmente. – Felizmente nem todas as pessoas são inclinadas às fofocas sobre o passado dos seus novos colegas, principalmente dentro da Frota Estelar. Por outro lado, não é nem de longe um segredo que eu guarde ou tenha intenção de guardar.

O doutor Horvat se sentou em uma das cadeiras brancas do laboratório, e Chelaar sentou-se ao seu lado, prestando atenção ao que ele dizia.

— Ao contrário da maioria das pessoas aqui, eu nunca quis participar dessa missão. – Continuou ele. – Eu estava satisfeito com meu posto a bordo da Chabouté que, sem falsa modéstia, é uma das melhores naves médicas da Frota, com uma tripulação muito competente e criativa. – Ele sorriu de modo saudosista. – Ivana e eu servíamos juntos há quase oito anos, catalogando as doenças existentes em planetas pré-dobra e utilizando as descobertas para desenvolver nossa própria base de dados sobre curas e tratamentos. Nossa missão secundária era, inclusive, desenvolver curas para as doenças exclusivas das espécies estudadas e arquivá-las até que fosse possível compartilhá-las sem que houvesse quebra da Primeira Diretriz. – Horvat franziu o cenho. – Minha esposa, no entanto, ficou fascinada quando soube da Missão Cão Maior e, a despeito de nossa situação estável, inscreveu-se para o cargo de oficial médico. Eu resisti no início, mas por fim a apoiei, pois sabia que a exploração médica de fronteira e a exobiologia eram suas antigas paixões, responsáveis pelo seu alistamento na Frota Estelar. Ela foi selecionada, é claro, pois era uma excelente pesquisadora e profissional médico. – Ele sorriu, orgulhoso, mas logo seu semblante entristeceu novamente. – Porém, menos de dois meses antes da partida da USS Iguaçu, o transporte que ela pegou para se apresentar ao comando do corpo médico foi atingido e destruído por uma violenta tempestade tetriônica. Eu sofri um duro golpe, fiquei arrasado por vários dias, mas, em respeito à sua memória, tomei a decisão de me candidatar como seu substituto e assim viver o sonho que ela gostaria de ter vivido.

— Entendo como o senhor se sente. – Disse Chelaar. – Nós, tellaritas, temos um lento processo de superação do luto. Quando meu avô paterno faleceu, minha avó ficou reclusa em sua choupana por quase dez meses, sem contato com ninguém da nossa família. Poucos da minha espécie teriam a determinação que o senhor teve em assumir para si o sonho de outro, e eu o admiro por isso

Horvat sorriu e inclinou levemente a cabeça para o lado, e os dois deram continuidade à discussão sobre uma possível relação entre a radiação e o suporte de vida da nave alienígena.

O engenheiro-chefe, auxiliado pelos membros do grupo avançado presentes na engenharia da nave abandonada, trabalhava para encontrar a razão dela estar à deriva no espaço.

— Este reator é incrivelmente compacto. – Disse Hashimoto aos colegas, enquanto tentava abrir um anteparo. – Quando nós utilizávamos reatores desse tipo, séculos atrás, eles tinham pelo menos quatro vezes esse tamanho.

O engenheiro fez um gesto para que a alferes Lobo lhe entregasse uma das ferramentas disponíveis.

— Certa vez, a nave em que eu servia foi capturada por uma espécie hostil, quando eu ainda era tenente júnior, durante uma expedição ao quadrante gama. – Disse Hashimoto, examinando um emaranhado de componentes atrás do anteparo que ele havia retirado. – Após um engenhoso plano do nosso oficial tático, a maioria de nós conseguiu escapar e retomar à nave, mas eu e outros oito tripulantes permanecemos prisioneiros na gélida lua de Sidom II. Após o combate que se seguiu, os alienígenas bateram em retirada, nos levando para uma de suas colônias, e nossa nave estava avariada demais para segui-los. Após três meses de trabalho forçado e condições de vida sub-humanas em um campo de prisioneiros, consegui encontrar uma velha nave de dobra 3 e restaurei o motor e os principais sistemas, empreendendo fuga juntamente com meus colegas sobreviventes.

— Impressionante, senhor. – Disse o subtenente De León, que também examinava alguns componentes em outro canto da sala.

— Ah, se você visse o estado daquela nave. – Continuou Hashimoto. – Eu não tinha nada com o que trabalhar e a maioria das peças estava completamente danificada.

— O senhor acha que esta nave está em condições de uso, comandante? – Perguntou a alferes Lobo.

— Está brincando, alferes? – Riu ele. – Preciso apenas de uma célula de energia portátil para botar os sistemas em ordem e alguns cristais de dilítio para coloca-la de volta à ativa.

Dentro de alguns minutos, com a chegada da célula de energia, Hashimoto iniciou o procedimento de religação dos sistemas principais da engenharia e da ponte. O suporte de vida também foi acionado, para melhorar a qualidade do ar ambiente, mas, a pedido da comandante Chelaar, os geradores de radiação multicisurânica foram retirados e levados à USS Iguaçu para uma análise mais detalhada.

— Qual é a situação? – Perguntou Shion, reunindo-se novamente com Hashimoto e os demais tripulantes do grupo avançado.

— É como um animal acordando após a hibernação, comandante. – Disse Hashimoto, sem desviar o olhar dos monitores principais da engenharia.

— E este animal está saudável? – Perguntou Shion, aproximando-se.

— Saudável e pronto para voar um voo bastante lento. – Falou o engenheiro, acionando o reator, que passou a emitir uma fraca luz amarelada e um zunido baixo. – Descobriram alguma coisa lá em cima?

— Nada de relevante. – Respondeu a primeiro oficial. – Aparentemente eles não tinham o costume de gravar diários de bordo, ou então os apagaram antes do que quer que tenha acontecido aqui. Nosso pessoal está examinando a pequena base de dados que baixamos do computador principal, mas já me adiantaram que não há nada além de especificações técnicas da nave e alguns mapas estelares. Nada que já não tenhamos obtido com nossas sondagens astrométricas.

— Era de se imaginar, considerando o estágio de desenvolvimento tecnológico deles. – Disse Hashimoto. – No entanto, é uma pena que não haja maiores informações sobre sua espécie e civilização.

Shion assentiu e, após algumas horas, tendo o grupo obtido toda a informação possível, decidiram que era hora de partir. Logo, eles desativaram a célula de energia e removeram os cristais de dilítio, fazendo com que a nave retornasse ao estado inicial inerte, deixando-a à deriva e levando consigo apenas os resultados das sondagens, uma cópia da base de dados e o gerador de radiação multicisurânica.

Na manhã seguinte, Hashimoto colocou seu uniforme e, como de costume, dirigiu-se ao sintetizador localizado em seus aposentos para pedir o seu café da manhã.

— Tanuki udon e chá verde bem doce. – Disse ele, em voz alta e clara.

O sintetizador instantaneamente fez surgir um tanuki feito com macarrão udon e legumes, mas em alguns pontos havia uma espuma semelhante à espuma de sabão, assim como no chá verde.

— Hashimoto para Dorvahàl. – Disse o engenheiro, tocando em seu comunicador. – Tem algo errado com meu sintetizador, pedi meu café de manhã de costume e ele me serviu como acompanhamento um molho de bolhas.

Bom dia, senhor.— Respondeu a voz do efrosiano, encarregado dos sistemas de suporte de vida. – O mesmo defeito foi registrado incialmente nos aposentos entre a área de carga 1 e a enfermaria, há pelo menos três horas, espalhando-se rapidamente por toda a nave. Estou trabalhando para solucionar o problema. Enquanto isso, recomendo que o senhor tome o café da manhã no refeitório, a cheff Abrams está preparando refeições com comidas não-sintetizadas do estoque.

— Obrigado, subtenente. Vou examinar seu relatório assim que eu assumir meu posto. – Disse Hashimoto e, deixando seus aposentos, dirigiu-se ao refeitório, onde encontrou Chelaar e Giulia.

— Parece que ninguém gosta de bolhas de sabão. – Disse o engenheiro, sentando-se à mesa com elas.

— Apenas quando estou na banheira. – Disse Giulia, passando manteiga em uma torrada.

— Eu sempre tomo meu desjejum no restaurante. – Disse Chelaar. – O ensopado de raiz de grumulag da cheff Abrams é melhor que o da minha mãe.

— Alguma ideia do que pode ser esse defeito? – Perguntou Giulia, observando um tripulante da engenharia que examinava os circuitos de um dos sintetizadores do refeitório.

— Nada ainda. – Respondeu Hashimoto. –Isso me lembra uma vez em que os sintetizadores da Estação Espacial Carina começaram a produzir um cheiro de ovo podre por toda a estação. Levamos menos de quinze minutos para consertar o defeito, mas o cheiro permaneceu empesteando o ar por dias.

O sintetizador em que o tripulante da engenharia trabalhava emitiu um ronco baixo, produzindo uma grande quantidade de espuma, desta vez mais esbranquiçada. Durante o restante da manhã, a situação piorou consideravelmente, e a maioria dos sintetizadores passou a produzir a espuma mesmo sem ativação direta, o que levou Hashimoto a assumir a investigação, auxiliado por Chelaar.

— Isolei a rede de energia desta seção, mas o sintetizador continua a produzir espuma, alimentando-se dos sistemas adjacentes. – Disse o engenheiro-chefe.

— O diagnóstico indica que o sistema de controle está operando de forma autônoma, processando as ações independentemente do comando recebido. – Disse Chelaar. – Mas não consigo encontrar a causa para isso, tudo parece estar funcionando corretamente.

Horvat para Chelaar.— Ouviu-se a voz do médico, vinda do comunicador da tellarita. – Comandante, terminei de examinar a amostra da espuma. Acho que a senhora gostará de ver o resultado pessoalmente.

Chelaar fez um gesto com a cabeça, convidando Hashimoto para que a acompanhasse, e ambos foram até o laboratório anexo à enfermaria, onde o doutor Horvat e a enfermeira Yasna examinavam uma grande quantidade de espuma dentro de uma espécie de incubadora.

— Ontem a senhora teve a bondade de me convidar para participar da descoberta de uma possível espécie capaz de sobreviver em uma atmosfera impregnada por radiação multicisurânica, então decidi retribuir a gentileza – Disse Horvat, cumprimentando-os. – Esta “espuma” é, na verdade, composta por trilhões de seres vivos microscópicos em estágio inicial de desenvolvimento, como se fossem larvas císticas.

— Se bem me lembro, quando sondamos com os tricorders, não captamos sinais de vida. – Disse Chelaar.

— E é por isso que esta é uma descoberta única. – Continuou o médico. – Nenhuma das minhas análises preliminares trouxe resultados, e a espuma parecia ser apenas uma série de elementos químicos inertes. Então, tive a ideia de bombardear a incubadora com radiação multicisurânica, causando uma agitação incomum na espuma. Mas, só após examina-la com um scanner biométrico, regulado para medição espectrométrica, pude identificar padrões compatíveis com um ser vivo microscópico.

— Fascinante. – Disse Chelaar. – Mas como isso pode ter sido produzido a partir dos nossos sintetizadores?

— Não tenho essa resposta. – Admitiu Horvat. – No entanto, devido à reação produzida pela exposição à radiação multicisurânica, tenho o palpite que existe alguma relação com a nave abandonada que encontramos ontem.

— O senhor acredita que essa espuma represente uma ameaça à nave ou a tripulação? – Perguntou Hashimoto.

— No estágio em que ela se encontra atualmente, creio que não. – Respondeu o médico. – Mas o fato de nossos sintetizadores estarem desabilitados já é um sinal de alerta, e ainda sabemos muito pouco sobre desenvolvimento desses micro-organismos.

— Vou alertar o capitão e sugerir que tracemos um curso de volta à nave abandonada. – Disse Chelaar. – Enquanto isso, sugiro que nós façamos alguns testes para tentar determinar a relação entre a espuma e os sintetizadores.

— De acordo. – Disseram Hashimoto e Horvat, juntos.

A investigação do fenômeno logo se tornou prioridade entre a tripulação, pois a situação piorava em uma escala assustadora. Ao longo da tarde, a espuma passou a ser produzida incessantemente, e já formava uma volumosa camada no chão dos ambientes equipados com sintetizadores, dificultando consideravelmente o trabalho na maioria das estações. Todo o pessoal não essencial, ou que não estivesse trabalhando diretamente no caso, foi direcionado para o hangar e para o holodeck, dois dos ambientes menos afetados.

Às 18h, o capitão Vernon, o conselheiro Nhefé e os oficiais superiores Shion, Da’Far, Chelaar, Hashimoto e Horvat, se reuniram para discutir os resultados obtidos, utilizando para isso uma sala de reuniões improvisada em um corredor no deque 15, já que a sala de reuniões oficial estava tomada de espuma. Entretanto, mesmo que o corredor estivesse relativamente longe de qualquer sintetizador, havia um pouco de espuma no chão e nas paredes.

— Inicialmente, tendo em vista se tratar de uma nova forma de vida ainda misteriosa para nós, optei por não tomar nenhuma ação agressiva. – Disse o capitão. – Mas, se não encontrarmos uma solução em breve, serei obrigado a eliminar o máximo dessa espuma que conseguir até que saibamos o que fazer com ela.

— O que vocês descobriram? – Perguntou Shion.

Chelaar indicou Hashimoto, que assentiu e disse:

— Após várias análises e teorias descartadas, o doutor Horvat e eu chegamos à conclusão que essa forma de vida em formato de espuma é, na verdade, apenas um estágio, possivelmente reprodutivo, no desenvolvimento de uma forma de vida baseada em energia.

— Impressionante. – Comentou o capitão, espantado.

— Nós confirmamos essa teoria quando terminamos as varreduras do padrão de expansão da espuma pela nave, ainda há pouco. – Explicou Chelaar. – Primeiramente, um sintetizador drena uma grande quantidade de energia, produzindo espuma, e posteriormente diminuindo esse consumo a próximo de zero, enquanto a espuma passa a se multiplicar por conta própria. Por fim, a expansão da espuma passa a diminuir de intensidade e o sintetizador volta a consumir maior energia, retomando o mesmo ciclo.

— Entendemos que a vida adulta dessa criatura é puramente energética, com a reprodução se dando com a utilização de matéria. – Concluiu Horvat. – Remodulamos uma série de sensores para procurar variações no fluxo energético entre os microconduítes e demais sistemas, encontrando padrões de deslocamento incomuns, os quais atribuímos aos micro-organismos de energia. Também refinamos a análise da espuma em si, percebendo diversos estágios de desenvolvimento, incluindo um estágio final, onde uma parte infinitesimal das partículas se auto converte em energia, unindo-se novamente aos sistemas da nave. Logo, grande parte da espuma não passa de resíduo, como um casulo de borboleta, deixado para trás quando o indivíduo atinge a maturidade.

— Espantoso. – Comentou Shion. – Levamos séculos para dominar a conversão de matéria em energia e vice-versa, e temos em nossa nave um micro-organismo capaz de fazer isso por conta própria!

— Existe a possibilidade de eliminarmos esses “casulos”, mantendo o volume da espuma estável? – Perguntou o capitão.

— Infelizmente não, senhor. – Respondeu o doutor Horvat, coçando a testa. – Fomos incapazes de encontrar um meio para transportar ou eliminar os casulos sem destruir os seres vivos.

— Bom, de qualquer forma, não podemos levar essa espécie, por mais impressionante que seja, durante toda nossa viagem. – Disse o capitão.

— E seria altamente desaconselhável. – Concordou Hashimoto. – O sistema de reprodução deles parece ter se adaptado muito bem aos nossos sintetizadores, o que leva a um consumo energético de crescimento exponencial. Demoraria anos, mas eles seriam capazes de drenar toda nossa energia.

— Estaríamos mortos muito antes disso. – Comentou Nhefé, suavemente. – Sufocados pela espuma.

— Acreditam que isso aconteceu à tripulação da nave que encontramos ontem? – Perguntou Vernon.

— Creio que não, senhor. – Respondeu Da’Far. – Examinei o banco de dados das operações efetuadas por eles e discuti as possibilidades com o conselheiro e com o tenente Rose. A explicação mais compatível com os registros é que eles optaram pelo esgotamento energético total da nave, como forma de retardar ou interromper a propagação da espuma, sendo resgatados por outra nave.

— É uma forma de explicar os módulos de fuga intactos e a ausência de corpos. – Disse Nhefé. – Mas, segundo o resultado do decaimento da atmosfera no interior da nave, o que quer que tenha acontecido, aconteceu há mais de cento e cinquenta anos.

— E como os micro-organismos permaneceram vivos sem energia, durante todo esse tempo? – Perguntou Shion.

— E como vieram parar na minha nave? – Perguntou o capitão, levantando as sobrancelhas.

— Acreditamos que eles permaneceram inertes durante esse período, numa espécie de estase. – Explicou Da’Far. – Quando o comandante Hashimoto instalou a célula de energia portátil, buscando recuperar os sistemas e a propulsão da nave, parte dos seres despertou e se alojou na célula, sendo posteriormente transportada conosco, estabelecendo-se nos sintetizadores.

— É irônico que uma espécie tão extraordinária seja também um parasita tão difícil de se lidar. – Disse o capitão, tamborilando os dedos na mesa. – Por outro lado, não pretendo condenar minha tripulação à morte por sufocamento em espuma ou ao frio e à fome em caso de esgotamento energético proposital.

— Há outra opção, senhor. – Disse Da’Far, inclinando a cabeça. – Diante da natureza dessa forma de vida, consideramos que um pulso de antipólarons, combinado com uma vibração precisa do campo de dobra, seria o suficiente para eliminá-la sem causar danos à nave ou à tripulação.

— Não viajei milhares de anos-luz para eliminar uma espécie potencialmente única. – Disse o capitão. – Preferia não ter que tomar essa decisão, se possível.

— Talvez haja um meio, capitão. – Disse Chelaar, levantando a mão esquerda. – Verificamos que essa espécie reage instintivamente à radiação multicisurânica, alterando seu comportamento de modo a sempre migrar para locais onde ela emana mais intensamente.

— Não seria sensato bombardear a nave com uma radiação desse tipo. – Comentou Nhefé.

— E não proponho que o façamos. – Disse Chelaar, franzindo a testa. – Minha ideia é instalar um gerador de radiação em uma das naves auxiliares, atraindo nossos caroneiros para ela e, em seguida, acionar o piloto automático para que ela trace um curso para fora Iguaçu.

— Eu poderia iniciar um procedimento de drenagem energética, apenas para que a nave auxiliar, repleta de radiação, se tornasse ainda mais chamativa. – Acrescentou Hashimoto.

— Ainda nos restaria um problema. – Disse o capitão. – Estaríamos deixando essa espécie à deriva e sem “alimento” suficiente para que mantenham seu ciclo de vida e reprodução.

— Pelo que sabemos, elas permanecerão vivas, embora inertes, assim como estavam na nave abandonada. – Disse Da’Far.

— E se nós restaurássemos os sistemas de energia da nave abandona, criando um ciclo de desligamento programado, com o intuito de fornecer a elas um meio ambiente sustentável? – Questionou Shion.

— É possível? – Perguntou Nhefé.

— Acredito que sim. – Respondeu Hashimoto. – Os sistemas daquela nave são bastante simples, podemos criar um ciclo redundante na matriz energética e programar os níveis de abastecimento do reator.

— Eu posso reinstalar os emissores de radiação multicisurânica, fazendo com que eles trabalhem em sincronia com as variações de energia. – Sugeriu Chelaar. – Assim, sempre que um ciclo for se encerrar, os micro-organismos serão atraídos para o ponto com níveis maiores de radiação, aumentando a eficiência do sistema.

— Ótimo, faremos isso. – Disse o capitão Vernon. – Preparem as modificações na nave auxiliar Camauro, quero que o lançamento seja feito assim que estivermos em alcance visual.

Os oficiais assentiram e se dirigiram aos seus respectivos postos, trabalhando da melhor maneira que podiam em meio ao crescente volume de espuma. Durante as duas horas que se seguiram, a energia foi cortada gradualmente dos setores que ficavam mais distantes do hangar, onde a nave auxiliar estava sendo preparada por Chelaar e cinco outros tripulantes. Eles instalaram, além dos emissores de radiação multicisurânica, um conjunto extensor de volume, que fora desenvolvido para situações onde o transporte de carga ou passageiros exigisse maior capacidade. Assim, com o volume de carga multiplicado, a pequena nave auxiliar conseguiria transportar toda a espuma que restasse após a redução máxima de energia. Enquanto isso, Hashimoto e Da’Far examinavam os esquemas da nave alienígena e planejavam as modificações para criação do ciclo energético.

— Ponte para hangar. – Chamou o capitão, quando a USS Iguaçu saiu de dobra. – Já estamos em alcance visual, qual é a situação da nave auxiliar?

A Camauro está pronta, capitão. – Respondeu a comandante Chelaar, do lado de fora do hangar. – Emissões de radiação multicisurânica ao máximo, com contensão radial de cinquenta metros.

— E nossos caroneiros? – Perguntou Shion.

Estimamos, baseado na última sondagem dos fluxos de energia, que 99,96% dos micro-organismos já estejam nos circuitos da nave auxiliar.— Explicou Hashimoto, que estava ao lado de Chelaar. – Os únicos indivíduos que ainda permanecem em estágio de matéria estão dentro do conjunto extensor, e o restante da espuma na nave é apenas resíduo.

— Entendido. – Disse o capitão Vernon. – Pode iniciar a sequência de lançamento, contagem em cinco minutos.

Com a autorização do capitão, Hashimoto iniciou o desligamento progressivo da energia nos locais em que ela ainda estava normal ou reduzida, como a ponte de comando, com o intuito de levar o restante dos seres energéticos para a nave auxiliar. Em menos de quatro minutos, sendo ela o único ponto em que a energia fluía normalmente dentro da USS Iguaçu, a Camauro passou a ser também um grande chamariz, atraindo todos os micro-organismos que ainda vagavam pelos conduítes e circuitos. Como a radiação multicisurânica forçava o amadurecimento da espuma, os poucos indivíduos nesse estágio que ainda preenchiam o hangar atingiram a fase adulta, unindo-se aos demais dentro dos sistemas da Camauro. Enfim, passados os cinco minutos programados, a nave auxiliar, operada remotamente por Da’Far, deixou o hangar e se afastou cinquenta quilômetros da USS Iguaçu, ficando entre ela e a nave abandonada.

O engenheiro-chefe aguardou mais cinco minutos antes de religar a energia, e o fez gradativamente, isolando os setores um a um, para que pudesse ter certeza de que não haviam micro-organismos nos sistemas e nos sintetizadores. Hashimoto era minucioso em seu trabalho, sondando cada conjunto de circuitos antes de ativar o seguinte. Levou mais de uma hora até que a energia fosse restaurada em todos os deques, mas o resultado foi o esperado, e a única coisa restante era o resíduo espumoso, que agora poderia ser eliminado tranquilamente.

O passo seguinte foi transportar um grupo avançado para a nave abandonada, a fim de implementar as modificações necessárias para a sobrevivência sustentável dos seres de vida mista, que receberam o nome de Manme, abreviação de Micro-organismo Anfíbio de Matéria-Energia. As alterações levaram mais de três horas para serem concluídas e, assim que o grupo retornou à USS Iguaçu, a nave auxiliar foi acoplada a uma das comportas da nave alienígena, sendo completamente desligada, para que o procedimento inverso pudesse acontecer e os Manmes migrassem para seu local de origem.

Por fim, foi feita uma varredura controlada de antipólarons, com o intuito de eliminar a radiação multicisurânica e tornar a nave auxiliar ainda menos atrativa para os seres energéticos. Ainda assim, prevenindo que o religamento da Camauro pudesse atrair alguns Manmes, o capitão optou por rebocar a nave auxiliar com o raio trator, restaurando sua energia apenas quando ela estava a uma distância segura da nave alienígena, e então pudesse ser manobrada novamente até o hangar.

“Diário do capitão, data estelar 118058.49. Após um dia de trabalho árduo e notável esforço criativo da tripulação, conseguimos devolver os formidáveis micro-organismos anfíbios de matéria-energia para o que nos pareceu seu habitat ideal. Segundo o comandante Hashimoto, com os ciclos programados de desligamento e religamento, a nave alienígena poderá permanecer em atividade por tempo indeterminado, já que obterá energia de reposição suficiente por meio dos painéis solares que ela possui. Assim, pudemos, ao mesmo tempo, manter a nave e a tripulação seguras e preservar essa que é uma das formas de vida mais intrigantes e singulares que já vimos”.


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