Jornada nas Estrelas: Iguaçu escrita por Laertes Vinicius


Capítulo 4
Incursão Cruzada




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Após a breve estadia em órbita do curioso planeta dos baomates, a USS Iguaçu deixou aquele sistema e seguiu seu curso em direção a uma nuvem molecular classe LL. Boa parte da divisão de ciências e alguns tripulantes de outras áreas se manteriam ocupados por toda a viagem, mas alguns poderiam se dar ao luxo de um breve descanso. O capitão Vernon, no intuito de aprofundar a relação com seus colegas, convidou a comandante Shion e o conselheiro Nhefé para um jantar em seus aposentos, preparando-lhes um prato tradicional feito com frango e abóbora. O conselheiro, embora evitasse aglomerações e comemorações, parecia sentir-se à vontade em ambientes mais reservados.

— Sempre apreciei a culinária terráquea. A mistura de sabores é muito rica, diferente de qualquer prato típico de meu planeta natal. – Comentou Nhefé, adicionando molho agridoce à sobrecoxa de frango. – Em Veniáth Cyrnóa, cada refeição tem apenas um sabor, incluindo as bebidas.

— Então se a comida é salgada, a bebida também o é? – Perguntou Shion.

— Exato. – Respondeu Nhefé. – E esta é uma tradição levada a sério, principalmente pelos mais velhos. Lembro-me que dois dias após meu aniversário de quinze anos, minha avó me encontrou bebendo uma bebida amarga enquanto comia a refeição doce, exigindo que meu pai me punisse severamente.

— Se me permite a pergunta, conselheiro, qual era a roupa que sua avó vestia nesse dia? – Perguntou o capitão Vernon.

— Ela vestia uma blusa de entreconto marrom, com ombreiras esverdeadas, uma calça larga dourada e sandálias parómã extremamente bregas. – Respondeu Nhefé, sorrindo.

— A memória dos venianos é impressionante. – Disse Vernon, servindo suco de maçã em sua taça. – Quando soube que o conselheiro do ex-presidente Kim havia se candidatado à vaga na Iguaçu, tive certeza de que o escolheriam sem hesitar. Afinal, poucos na Frota Estelar tem tanta bagagem, e a maioria deles não consegue lembrar dela de maneira tão precisa quanto o senhor.

— Se conhece a fama de nossa memória, deve conhecer também a fama, merecida, de nosso “pessimismo”. – Sorriu Kómóg Nhefé. – Dezesseis espécies do quadrante alfa utilizam a expressão “conselho de veniano” com o significado de mau agouro.

— Não os humanos. – Retrucou o capitão Vernon, levantando o garfo. – E certamente não nesta nave.

— Os andorianos, tampouco. – Acrescentou Shion. – Na verdade, admiramos sua forma de lógica, pois lhes permite ver mais possibilidades do que a maioria de nós.

— Acreditem, eu vejo inúmeros desdobramentos desfavoráveis para quase tudo que é feito ao meu redor. – Continuou Nhefé. – Mas, com o tempo, aprendi a compartilhar apenas o necessário.

— Eu aceitaria se compartilhasse a travessa de abóboras comigo, conselheiro. – Sorriu Shion.

— Aqui está, comandante. – Disse Nhefé, alcançando a travessa à Shion. – Vejo que aprecia a culinária humana tanto quanto eu.

— Ela é uma legítima terráquea. – Disse Vernon. – Nascida na Antártida, se bem me lembro. Ainda é a maior colônia andoriana fora do sistema de Andoria, certo?

— Sim, senhor. – Respondeu Shion, assentindo com a cabeça.

— Eu nasci e cresci a bordo da USS Hisaishi, na fronteira do espaço cardassiano. – Disse o capitão Vernon. – Meu pai me levou à Terra pela primeira vez quando eu tinha seis anos de idade.

— Uma andoriana terráquea. – Disse Nhefé, sorrindo para Shion. – A união de duas das culturas mais tenazes e determinadas que já conheci. Não me surpreende que a senhora tenha feito o que fez para estar presente nesta missão.

O capitão Vernon olhou para Shion, mas ela não pareceu aborrecida com o comentário.

— Desde que eu era uma garotinha eu sempre quis deixar minha marca na história. – Disse ela, com uma expressão nostálgica. – Mas como a Federação é composta de inúmeros mundos e culturas, é natural que existam milhões de pessoas proeminentes, gênios, conquistadores, líderes etc. Logo, é impossível que conheçamos a todos, sendo também natural que apenas aqueles com feitos realmente grandiosos ou inéditos sejam conhecidos e lembrados pela grande maioria das pessoas.

— Pessoas como Archer e Pstntkf. – Acrescentou Nhefé.

— Exatamente. – Continuou Shion. – É claro, nós, oficiais superiores da Frota Estelar, conhecemos inúmeros capitães inspiradores, assim como tenho certeza que o doutor Horvat conhece dezenas de grandes médicos. Mas duvido que um cidadão comum de Andoria saiba quem foi o capitão Maicá, mesmo ele tendo sido a terceira pessoa que mais fez primeiros contatos na história da Frota.

— Entendo seu ponto, comandante. – Disse Vernon. – Mas a senhora já conseguiu um feito impressionante ao se tornar a mulher mais jovem a comandar uma nave estelar. Suponho que isso seja o suficiente para colocá-la em um patamar de destaque, mesmo entre os grandes capitães que fizeram história na Frota Estelar.

— Sim, e me orgulho muito disso. – Disse Shion. – Mas este é um recorde que poderá ser quebrado indefinidamente. Todavia, estar presente na primeira missão intergaláctica da Frota é uma oportunidade que só aparece uma vez, e eu estaria nela mesmo que precisasse pedir rebaixamento a alferes. – Ela falava com muita convicção e sinceridade. – De fato, embora eu preferisse a posição de capitão, com todo respeito senhor, vejo a minha escolha pelo rebaixamento como um acréscimo interessante à minha biografia.

— Admiro sua determinação em seguir seus sonhos, comandante. – Disse o capitão. – Mas admiro ainda mais a forma ética e irrepreensível com que tem servido como meu imediato, mesmo não sendo exatamente o seu desejo inicial.

— Obrigada, senhor. – Disse ela. – Saiba que não é de meu feitio guardar mágoas ou ressentimentos de nenhum tipo. Se estou aqui, na posição em que estou, eu estou feliz e a honrarei, cumprindo com minhas obrigações da melhor maneira que eu puder.

Vernon ergueu a taça, cumprimentando Shion.

— Estou impressionado, comandante. – Disse Nhefé, também levantando a taça. – Mas esta conversa também me deixou curioso para saber quais foram as motivações do nosso digníssimo capitão.

Vernon fez silêncio, encarando o prato por alguns instantes.

— Eu cresci a bordo de uma nave estelar, viajando em velocidades incríveis, visitando mundos e conhecendo centenas de espécies e culturas, estudando sobre tecnologia, fenômenos cósmicos, política interestelar e história. – Começou Vernon, brincando com sua taça. – Mas sempre tive grande curiosidade e admiração pelos antigos desbravadores, de todas as épocas, que se lançavam ao completo desconhecido, indo aonde ninguém jamais havia ido. A medida que eu amadurecia, passei a perceber que nós vivíamos em uma época onde praticamente tudo ao nosso alcance já fora descoberto. – Ele virou o olhar para um quadro de uma nave muito antiga, pendurado na parede atrás de Nhefé. – Temos fronteiras definidas, fenômenos catalogados e uma sociedade estável. Nós conseguimos deixar a galáxia pequena, de certa forma, e agora as oportunidades de explorar o desconhecido se limitam a viagens absurdamente longas aos outros quadrantes da galáxia ou então à invasão de territórios hostis, como os da Assembleia Tholiana. Assim sendo, quando soube da missão Cão Maior e da possibilidade de me tornar um verdadeiro desbravador do desconhecido, minha alma aventureira despertou novamente e eu não pude resistir.

— Um brinde aos descobridores. – Disse Nhefé, levantado a taça. – Que nossas biografias sejam tema de estudo por séculos!

Vernon e Shion levantaram as taças, rindo.

No dia seguinte, os sensores da nave detectaram uma singularidade de aproximadamente seiscentos milhões de quilômetros de diâmetro, emitindo diversas partículas intrigantes e uma radiação desconhecida. Para estudar o fenômeno, o capitão Vernon ordenou que a nave se aproximasse a uma distância segura e lançasse uma série de sondas, as quais ora desapareciam, atraídas pela gravidade, ora voltavam com as mesmas informações já captadas pelos sensores principais.

— Se queremos respostas satisfatórias sobre essa singularidade, nossa única alternativa é a aproximação. – Disse Chelaar, examinando os monitores em sua estação.

— Qual é a chance de sermos puxados para dentro? – Perguntou Shion.

— É bastante alta. – Respondeu Chelaar. – Mas, com os escudos levantados, poderemos nos aproximar um milhão de quilômetros a mais do que as sondas, multiplicando a eficiência dos nossos sensores.

— Não sabemos nada sobre essa radiação. – Disse Nhefé ao capitão. – Pode ser perigoso se nos aproximarmos demais.

— Alferes Kwa, nos leve para quinhentos mil quilômetros além da posição da última sonda que retornou intacta, um quarto de impulso. – Disse o capitão. – Quero descobrir o máximo sobre essa singularidade, mas não pretendo empreender uma aproximação maior até que tenhamos certeza dos riscos. – Ele se ajeitou em sua cadeira. – Subcomandante Da’Far, escudos ao máximo. Acionar.

A USS Iguaçu se aproximou cada vez mais da singularidade, sem obter quaisquer leituras conclusivas sobre sua natureza. Os resultados das sondagens indicavam apenas que a radiação emitida por ela era inofensiva, e que as partículas não alteravam o subespaço o suficiente para oferecer perigo. Assim, levando em conta também que a atração gravitacional era estável, o capitão autorizou uma série de aproximações com intervalos de meia hora, seguindo os protocolos para estudos desse tipo de fenômeno.

Por fim, tendo reunido informações suficientes, e percebendo que não haveria como continuar sem arriscar demasiadamente a segurança da nave e da tripulação, Vernon ordenou que se afastassem da singularidade, em força de impulso.

— Sem efeito, capitão. – Disse Kwa, após acionar os motores de impulso. – Não nos movemos nem mesmo um centímetro.

— Comandante Chelaar, explique. – Disse o capitão.

— Não posso, senhor. – Respondeu a tellarita, ligeiramente tensa. – Embora nossos motores estejam funcionando perfeitamente, não produzimos deslocamento algum. É como se nossa propulsão estivesse tendo o efeito contrário, nos fixando ainda mais à esta camada da singularidade. – Ela hesitou. – Estamos encalhados.

— Seria seguro nos afastarmos em dobra? – Perguntou Shion

— Teoricamente sim, não há nenhum elemento impeditivo para a criação de um cambo de dobra estável. – Respondeu Chelaar.

— Neste caso, tire-nos daqui em dobra 2, alferes. – Disse o capitão, olhando para a tela. – Acionar.

A nave toda sofreu um violento solavanco, faíscas saíram de vários consoles e um barulho metálico ecoou pela ponte.

— Alerta vermelho. – Ordenou o capitão, segurando-se em sua cadeira. – Relatório de danos, quero saber o que aconteceu!

— Nenhum ferido, senhor. – Informou Da’Far. – Os escudos aguentaram, mas caíram a 93%.

— Estamos sendo puxados para a singularidade, senhor, colisão com o centro de massa em vinte segundos! – Disse Chelaar, exaltada. – Nosso campo de dobra está sendo atraído como um ímã!

— Parada total! – Ordenou a comandante Shion.

— Sem efeito, senhor! – Disse Kwa.

— Ponte para engenharia! – Chamou o capitão, com urgência. – Precisamos de uma parada total agora!

— Cinco segundos, senhor! – Disse Chelaar, aflita.

Então, sem explicação, a nave parou. A tela principal não mostrava nenhuma singularidade, mas sim o espaço aberto, com estrelas visíveis ao longe. Os tripulantes se entreolharam, confusos e aliviados, mas a tranquilidade durou apenas alguns instantes e logo a nave chacoalhou novamente.

— Estamos sob ataque, senhor! – Exclamou o tenente Rose, do posto tático.

— Impacto direto nos escudos traseiros. – Informou Da’Far. – Escudos a 80%.

— Na tela! – Ordenou o capitão.

Uma dúzia de naves amareladas, com formato alongado e naceles de dobra arredondadas e horizontais, atirava incessantemente na direção da USS Iguaçu.

— Força auxiliar para os escudos. – Disse Vernon. – Subtenente Naggi, abra um canal para a nave líder e pergunte por que nos atacam. Não pretendo abrir fogo contra eles a menos que seja inevitável.

— Apenas ruído, senhor. – Disse a Giulia.

— Escudos a 65%. – Alertou Da’Far.

O capitão balançou a cabeça negativamente.

— Tenente Rose, disparar fêiseres. Mire nos sistemas de armas. – Disse o capitão, levantando-se de sua cadeira.

Nesse instante, porém, as naves hostis cessaram seu ataque e entraram em dobra, sumindo de vista.

— Alguém, por favor, tem alguma ideia do que acabou de acontecer? – Perguntou o capitão, sentando-se.

Após alguns segundos de silencio, durante os quais a tripulação da ponte absorvia o ocorrido, Kwa disse:

— Senhor, estamos perdidos.

— Perdidos? – Disse o capitão.

— Não há sinais da singularidade, de nenhuma estrela ou ponto conhecido em nosso sistema de navegação. – Explicou ela. – É impossível determinar em que ponto do universo estamos.

— Ponte para astrometria. – Chamou o capitão. – Qual é a nossa posição?

Desconhecida, senhor.— Respondeu Solek, a vulcana chefe da astrometria. – Este espaço não corresponde a nenhum dos mapas estelares que possuímos, tampouco condiz com o mapeamento que temos feito de Cão Maior.

— Obrigado, tenente. Shion, Chelaar e Nhefé, me acompanhem. – Disse o capitão, indo em direção à porta da sala de reuniões. – Da’Far, a ponte é sua.

Sem dizer nenhuma palavra, o chefe de segurança deixou seu posto e assumiu a cadeira do capitão. Logo em seguida, na sala de reuniões da ponte, os oficiais convocados pelo capitão ocuparam seus lugares e passaram a avaliar a situação em que se encontravam.

— Fomos atacados por uma frota desconhecida e não temos a menor ideia de onde estamos. – Disse Vernon, tamborilando os dedos na mesa. – Francamente, nada disso me agrada.

— Talvez a singularidade fosse uma espécie de fenda espacial instável, nos transportando para algum ponto desconhecido de Cão Maior ou até mesmo de outra galáxia. – Especulou Shion.

— Ou talvez ainda estejamos dentro da singularidade. – Disse Chelaar. – Existem diversas teorias sobre microespaços contidos em singularidades blindadas hipermassivas.

— São teorias interessantes, mas ainda assim não ajudam a esclarecer por que fomos atacados de maneira tão repentina e estranha. – Disse o capitão. – Nem como faremos para encontrar a singularidade novamente, se é que ela seria capaz de nos levar de volta ao nosso ponto de partida em Cão Maior.

— Embora haja uma possibilidade altíssima de fracasso, creio que nossa única opção é tentar contato com a espécie que nos atacou. – Disse Nhefé, sério. – No improvável caso de nos derem ouvidos, teríamos mais respostas do que se passássemos um ano deliberando entre nós mesmos.

— De acordo. – Disse Vernon. – Partiremos assim que os reparos estiverem concluídos.

A nave havia sofrido poucos danos durante o ataque e o mergulho na singularidade e, em menos de uma hora, os escudos foram levantados e eles iniciaram a busca pelas naves alienígenas. No início, o rastro de todas seguia a mesma direção, mas, a partir de certo ponto, uma a uma, elas pareciam ter tomado outros rumos.

— Qual rastro seguiremos, senhor? – Perguntou Kwa.

— O que me diz, imediato? – Perguntou Vernon a Shion.

— Sugiro extrapolarmos a direção original da frota. – Respondeu ela.

— Senhor, captei uma assinatura de energia no rumo 132 marco 54. – Disse Chelaar. – Parece ser originária de uma ruptura de um reator de dobra.

— Neste caso, sugiro que investiguemos. – Disse Shion, movendo as antenas. – Se houver sobreviventes, mesmo que em módulos de fuga, nossa ajuda poderá ser de grande valia para o estabelecimento de uma relação amigável com esta espécie.

— De acordo. Srta. Kwa, marque um curso, dobra 9. – Disse o capitão. –Acionar.

Eles seguiram em direção à assinatura de energia por mais de uma hora, período no qual ela foi se tornando gradualmente mais fraca até que, inesperadamente, desapareceu.

— Como é possível que a assinatura da explosão de um reator de dobra desapareça à medida que nos aproximamos de sua fonte? – Perguntou Shion.

— Não sei explicar, senhor. – Disse Chelaar. – Mas isso permitiu que notássemos a presença de uma nave nas mesmas coordenadas da explosão. Já está em alcance visual.

— Na tela. – Disse Vernon.

A nave era semelhante as naves que os haviam atacado, amarelada e alongada, com as naceles de dobra horizontais e arredondadas, embora fosse um pouco menor.

— A nave alienígena está seriamente danificada, senhor. – Disse Da’Far. – O reator de dobra deles apresenta sinais de degradação causada por choque inercial de antimatéria.

— Subtenente Naggi, abra um canal. – Disse o capitão.

— Canal aberto, senhor. – Disse Giulia.

— Aqui é o capitão Víbio Vernon, da Nave Estelar da Federação Iguaçu. – Disse ele. – Notamos que sua nave está correndo perigo iminente e oferecemos ajuda.

— Sem resposta, senhor. – Disse Giulia.

— A nave deles abriu fogo. – Alertou Da’Far. – Mas suas armas são incapazes de atravessar nossos escudos.

Assim que o tenente comandante falou isso, os escudos caíram.

— Senhor! – Disse a alferes Harman. – Houve um transporte não autorizado na engenharia.

— Intrusos? – Perguntou Vernon.

— Não, senhor. – Continuou ela. – O comandante Hashimoto foi transportado para a nave alienígena.

— Eles levantaram os escudos, capitão. – Informou Da’Far. – Mas estão mantendo posição.

— Alerta vermelho. – Disse Vernon. – Quero saber por que nossos escudos caíram e quero eles de volta agora mesmo! Alferes Kwa, esteja pronta para iniciar uma perseguição caso eles entrem em dobra, ou manobras evasivas caso eles nos ataquem. Tenente Rose, trave os fêiseres e os torpedos fotônicos. O senhor está autorizado a disparar nos motores e sistemas de armas ao meu comando. Subtenente Naggi, mantenha um canal aberto e transmita uma saudação contínua, exigindo explicações pelo ataque e a liberação imediata do comandante Hashimoto.

— Sim, senhor. – Responderam os triupulantes.

O comandante Emilian Hashimoto estava em seu posto, na engenharia, iniciando um diagnóstico para descobrir a razão pela qual os escudos haviam caído, quando foi transportado, de súbito, diretamente para a ponte da nave alienígena. Ela tinha um formato perfeitamente cúbico, com o acabamento inteiramente cromado, incluindo não mais do que cinco estações de trabalho e igual número de pessoas, de duas espécies diferentes, utilizando uma espécie de camisola negra.

Uma delas era mais baixa, com rosto quadrados e pele escamosa, apenas três dedos em cada mão e um tufo de cabelo marrom no topo da cabeça. A outra era careca, incrivelmente gorda, com mãos e braços compridos e várias camadas de bochechas. Um deles apontava uma arma estranhamente pontiaguda na direção da testa do engenheiro. Todos os tripulantes da ponte pareciam furiosas, gritando coisas como “você condenou a todos nós”, “você explodirá juntamente com sua nave”. Um dos alienígenas, que parecia ser o capitão, aproximou-se dele e disse “vá e diga ao seu capitão que logo ele terá que enfrentar uma frota inteira e vocês sofrerão torturas terríveis pelo que fizeram à minha tripulação”.

Em seguida, dois dos alienígenas escamosos pegaram Hashimoto com brutalidade e o arrastaram para fora da ponte. O humano tentava dialogar, explicando que haviam entrado naquela parte do espaço por engano, e que não haviam feito mal algum ao seu povo. Contudo, nada do que ele dizia parecia fazer algum sentido para os alienígenas, assim como nada do que eles diziam fazia sentido para ele. Logo os seguranças o deixaram na engenharia da nave, diante de um reator de dobra nitidamente comprometido, com vários tripulantes horrorizados ao seu redor.

Na ponte da USS Iguaçu, os tripulantes discutiam sobre o que havia acontecido e procuravam uma forma de resgatar o comandante Emilian Hashimoto.

— Qual é a situação, subtenente Naggi? – Perguntou o capitão Vernon, inquieto.

— Nada, senhor. – Disse Giulia. – Há algo que impede um contato eficiente, mesmo com o canal aberto. Algum tipo de ruído subespacial.

— Não é apenas isso, capitão. Estamos obtendo leituras anômalas da nave e também do espaço e do subespaço. – Disse Chelaar. – Desde que passamos pela singularidade, constatei o que pareciam ser inúmeros defeitos em todos os conjuntos de sensores. No princípio, achei que tinham sido afetados pela radiação, mas temo que eles estejam fazendo leituras corretamente.

— Se os sensores não estão com defeito, então o próprio espaço é que está? – Perguntou Shion, levantando uma sobrancelha.

— Eu não diria “com defeito”. – Disse Chelaar. – Mas sim “diferente”.

— Capitão, o reator deles se estabilizou. – Disse Da’Far. – A nave não corre mais risco imediato de explosão em caso de impactos diretos.

— E, consequentemente, o comandante Hashimoto também não. – Disse Shion para o capitão.

— Tenente Rose, dispare os fêiseres contra o gerador de escudos deles. – Disse Vernon. – Ponte para sala de transportes 1. Tenente Alfredsson, assim que conseguir uma trava, transporte o comandante Hashimoto para a ponte. Não vou abrir mão de meu engenheiro-chefe.

Na engenharia da nave alienígena, o engenheiro-chefe da USS Iguaçu tentava se comunicar com seus raptores da melhor forma que podia.

— Quer que eu conserte isso? – Perguntou Hashimoto, após levar um soco nas costas. – É claro que eu ajudo, mas não precisam me bater, eu não sou mais o jovem forte e resistente de outrora.

O engenheiro começou a mexer no console e, embora não compreendesse a linguagem daquelas espécies, sua experiência o guiava quase sem falhas.

— Identifiquei o problema: houve um rompimento físico entre os controles de reação e o injetor de antimatéria. – Explicou ele. – A solução é muito simples, basta redirecionarmos um controle secundário e diminuirmos a intensidade da reação. Terei que utilizar o que eu chamo de soldagem de improviso, mas aviso que não é algo que vocês possam reverter com muita facilidade, embora garanta que vocês permaneçam seguros até que a ajuda chegue.

Ele abaixou-se, abrindo um anteparo e iniciando a o conserto. Para sua surpresa, os dois seguranças saíram apressados da sala, deixando apenas ele e os demais tripulantes alienígenas, todos com expressões bastante amedrontadas.

— Não há o que temer. – Disse ele, levantando-se e alterando a intensidade da reação do núcleo pelo console. – Eu já consertei coisas muito mais difíceis em situações bem piores. Certa vez, na Estação Espacial Signor AM, fomos atingidos por uma nuvem de energia flutuante, durante um ataque nausicano. Todos nós estávamos com metade do corpo paralisado, e eu precisava recuperar os controles ambientais antes que um gás venenoso se espalhasse por metade da estação. Tive menos de um minuto, mas se não fosse minha perspicácia em descobrir que a origem da nuvem de energia flutuante era o próprio cruzador inimigo, jamais teríamos enviado aquele feixe de quáions e mais de mil e quinhentas pessoas teriam morrido. – Ele limpou a testa suada com a manga da camisa. – Pronto, seu reator está operacional novamente.

Uma alienígena escamosa, à esquerda de Hashimoto, levantou rapidamente a mão e apertou um botão quadrado na parede cromada ao seu lado. A sirene de alerta que estava ecoando pela nave cessou imediatamente, mas todos permaneciam com expressões bastante assustadas.

— Meu nome é Emilian Hashimoto. – Disse ele, numa última tentativa. – Garanto a vocês que minhas intenções são as melhores possíveis. Sou engenheiro-chefe da nave estelar da Federação Iguaçu, e nossa missão é explorar novos mundos e fazer contato pacífico com novas civilizações, como a sua.

Nesse instante, enquanto todos arregalavam os olhos e viravam seus rostos, o comandante foi transportado de volta à USS Iguaçu, diretamente para a ponte.

                – O que aconteceu? – Perguntou o engenheiro, aliviado por estar de volta à nave certa.

                – Tentamos contato exaustivamente e sem sucesso. – Respondeu o capitão Vernon. – Então, disparamos nos geradores de escudos da nave alienígena e conseguimos transportá-lo durante a fração de segundo que os escudos deles caíssem.

                – Poderia nos contar o que aconteceu a bordo da nave alienígena? – Perguntou Shion.

                – É claro, comandante. – Respondeu Hashimoto e, em seguida, descreveu os alienígenas e seu comportamento incompreensível, bem como os eventos ocorridos na ponte e na engenharia de sua nave.

                – Senhor, a nave alienígena está dando meia volta. – Alertou Rose.

                – Alferes Kwa, iguale velocidade e curso, ainda não desisti deste primeiro contato. – Disse o capitão. – O comandante Hashimoto pode ter deixado uma boa impressão e nós vamos nos aproveitar disso.

                – Improvável... – Comentou Nhefé, parecendo absorto em pensamentos.

                – Conselheiro? – Falou o capitão, estranhando o comentário.

                – Perdão capitão, eu estava apenas pensando em voz alta. – Explicou-se Nhefé. – Não foi minha intenção criticar o comandante Hashimoto. Contudo, estou examinando a situação e, se eu estiver correto, esses alienígenas jamais farão contato novamente conosco e em breve nos depararemos com uma nova singularidade idêntica à que nos trouxe aqui.

                O capitão Vernon ergueu as sobrancelhas.

                – Gostaria de entender melhor seu raciocínio, conselheiro. – Disse ele.

                – Em breve, capitão. – Disse Nhefé.

                – Capitão, a nave alienígena mudou de direção abruptamente. – Informou Kwa.

                – Senhor. – Chamou Chelaar, soando muito surpresa. – Os sensores captam uma singularidade à nossa frente, idêntica à que estudávamos antes de entrar nesta região do espaço.

                Todos olharam para o conselheiro Nhefé, que sorria satisfeito.

                – Acredito que o senhor está um passo nossa frente, conselheiro. – Disse o capitão. – Tem alguma sugestão? Devemos seguir a nave ou a singularidade?

                – A singularidade, é claro. – Respondeu ele. – Seguramente ela nos tirará desta região do espaço ou do que quer que isto seja. De fato, creio que não temos escolha.

                – Concordo com o conselheiro, senhor. – Disse Shion. – Não sabemos quando a singularidade voltará a aparecer e, se isso for uma espécie de fenda espacial, podemos estar há milhões de anos-luz de casa.

                – De acordo. – Disse o capitão. – Manter curso de interceptação com a singularidade, escudos ao máximo.

                O mergulho na singularidade aconteceu da mesma forma que na primeira vez, porém, com exceção do conselheiro Nhefé, todos estavam apreensivos.

                – Alferes Kwa, informe. – Disse o capitão assim que eles completaram a travessia.

                – Estamos em Cão Maior, senhor. – Respondeu ela. – Exatamente onde estávamos antes da colisão com a singularidade.

                – Ela sumiu. – Comentou Chelaar. – Não há sinais de radiação ou de partículas ionizadas. Se não fossem nossos registros, eu nem mesmo poderia dizer que ela havia estado aqui.

                – Talvez Nhefé possa nos esclarecer. – Disse Shion, olhando para o conselheiro.

                – Certamente, comandante. – Começou ele. – Falando francamente, eu não tenho conhecimento científico suficiente para entender o que era essa singularidade. Todavia, à medida que os eventos aconteciam, uma teoria me veio à mente. De alguma forma, talvez se tratasse de uma fenda espacial, como disse a comandante Shion, ou então de uma microespaço contido dentro da própria singularidade. Fato é que fomos transportados para um lugar completamente diferente de onde estávamos, onde os eventos ocorriam de maneira inexplicável e nossos sensores captavam leituras totalmente anômalas, levando-me a concluir que além de um deslocamento no espaço, também estávamos deslocados no tempo.

                – Sugere que era uma fenda temporal? – Perguntou Chelaar, incrédula. – Não captamos nenhuma distorção de táquions ou crônitons.

                – Não exatamente. – Continuou Nhefé. – Vou explicar de outra maneira. Imaginem uma nave, a qual chamarei de USS Kómóg, que mergulhou em uma singularidade, emergindo em um espaço desconhecido. Essa nave chama a atenção uma nave alienígena, nativa daquele espaço, que muda seu curso para intercepta-la. A USS Kómóg então faz uma parada total, dispara contra a nave alienígena, derrubando seus escudos o tempo suficiente para transportar um tripulante diretamente para a engenharia. Esse tripulante rapidamente sabota o reator de dobra da nave alienígena, causando um efeito cascata irreversível que fatalmente levará à explosão da mesma. Os seguranças da nave alienígena capturam o tripulante e o levam ao seu capitão que, mesmo furioso, poupa o tripulante e o transporta de volta à USS Kómóg, com o intuito de que ele transmita a mensagem de que uma frota em breve os encontrará e os torturará como forma de vingança pelo que fizeram. A USS Kómóg então parte, deixando para trás a nave alienígena, que logo explode, mas seus sensores captam a aproximação de várias naves alienígenas, as quais se unem em uma frota de perseguidores. Por fim, a USS Kómóg é interceptada diante de uma singularidade idêntica à primeira, mas a frota alienígena tem tempo apenas de efetuar alguns disparos, pois a nave mergulha na singularidade, desaparecendo para sempre.

                – Está dizendo que o tempo para eles corria ao contrário? – Perguntou Rose, surpreso. – Eu jamais teria pensado nisso.

                – Isso não faz sentido. – Disse Chelaar. – Como o tempo poderia se comportar de maneira diferente para eles, enquanto para nós ele continuava linear.

                – Não creio que o tempo em si tenha se alterado, comandante. – Explicou Nhefé. – E sim que, naquele lugar, os eventos aconteciam de maneira inversa. Imagine uma estrada que leva do ponto A ao ponto B: enquanto nós seguíamos de A para B, eles seguiam de B para A, e coincidentemente nos encontramos na metade desse caminho.

                – Isso quer dizer que eu fui responsável pela sabotagem de uma nave e consequentemente a morte de sua tripulação? – Perguntou Hashimoto, perplexo.

                – Se adotarmos a teoria do conselheiro Nhefé, devemos assumir que, na forma de ver deles, infelizmente sim. – Disse Shion. – Pelo que o senhor nos contou, é condizente com os fatos que ocorreram a bordo da nave alienígena.

                – É bizarro, mas faz sentido. – Assentiu Hashimoto, ainda perplexo. – Se analisarmos os fatos pela ordem cronológica inversa, eu fui transportado da nossa ponte para a engenharia deles, e uma das tripulantes apertou um botão na parede, acionando um alarme de intruso. Em seguida eu sabotei o reator de dobra deles antes que a segurança pudesse me impedir. Então, quando chegaram até mim, me deram um soco e me arrastaram até o capitão deles, que ordenou que me transportassem de volta para a Iguaçu.

                – É difícil de acreditar. – Disse Chelaar, ainda cética. – Mesmo sem levar em conta tudo que entendemos de mecânica temporal, as implicações são muitas. Por que eles não se moviam “em marcha ré”, ou mesmo andavam para trás como em uma gravação exibida em modo reverso? Como Hashimoto conseguiu entender algumas frases do que eles diziam?

                – Acredito que nosso tradutor universal é capaz de entender uma língua, mesmo quando falada ao contrário. – Sugeriu Giulia. – De fato, a língua nativa em Bêtsêm XIII tem exatamente essa característica.

                – Concordo com Chelaar, isso é muito confuso. – Disse Vernon. – Mas, de outra forma, como Nhefé seria capaz de prever o reaparecimento da singularidade?

                – Não há registros de nenhuma nave da Frota Estelar que já tenha passado por uma situação semelhante a essa. – Disse Shion, mexendo as antenas. – Parece que estamos cumprindo rigorosamente nossa missão de explorar o desconhecido.

                – Comandante Chelaar, forme equipes para estudar tudo o que registramos durante nossa incursão pelo espaço desconhecido. – Sorriu o capitão. – Estou certo de que não vamos querer deixar as melhores descobertas para o corpo de ciências da Frota Estelar.

                – Sim, senhor. – Disse Chelaar, também sorrindo.

            – Srta. Kwa, retome nosso curso original, dobra 9. – Disse o capitão, ajeitando-se em sua cadeira. – Acionar.


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