Jornada nas Estrelas: Iguaçu escrita por Laertes Vinicius


Capítulo 2
Canis Major, Parte II




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Giulia e Kwa, que haviam passado boa parte da manhã caminhando pela USS Iguaçu e conversando sobre as naves em que serviram anteriormente, agora estavam no refeitório, almoçando na companhia da oficial de ciências Chelaar e do chefe da segurança Da’Far, pouco antes de iniciarem seu turno na ponte. Era o quinto dia desde a partida, mas apesar do que os alienígenas tinham dito, o pêndulo não dava sinais de que estava desacelerando.

— Eu ainda não acredito que eles estivessem mentindo. – Disse Kwa, que estava comendo uma espécie de sopa de legumes muito densa e aromática. – Talvez o movimento pendular tenha se alterado desde que eles navegaram nele pela primeira vez, pois eles afiram que foi há vários milênios.

— Ou então o caminho inverso é mais rápido. – Sugeriu Giulia.

— Não sei. – Disse Chelaar, desconfiada. – Confio mais em meus instrumentos de sondagem e no material científico da Federação sobre o pêndulo do que naqueles dois. – Ela virou-se pra Kwa e disse. – Talvez, para você, seis mil anos represente muito tempo, mas para o universo é como um piscar de olhos. Forças cósmicas dessa magnitude não costumam apresentar oscilações assim nem em milhões de anos.

Giulia olhou para a tellarita com uma leve censura. Apesar da patente superior de Chelaar, elas eram amigas, e a oficial de comunicações tinha alguma liberdade, especialmente quando a amiga não controlava o comportamento rude marcante de sua espécie.

— Entendo. – Concordou Kwa, sorrindo. – Eu acho que sou apressada demais, e por isso acabo encarando o tempo dessa forma também.

Giulia sorriu diante da simpatia e da inocência de Kwa, que não se ressentira pelas palavras de Chelaar. Sua espécie, que tinha uma expectativa de vida muito curta para um humanoide (entre vinte e oito e trinta anos), era conhecida por dificilmente se sentir ofendida e raramente guardar mágoa. A piloto, embora tivesse certa experiência de vida, era considerada jovem para os padrões de seu povo, pois tinha apenas treze anos, e os miresitas atingiam a idade adulta aos seis e a velhice aos vinte e cinco.

Chelaar, notando o olhar de Giulia, mudou de assunto:

— Subcomandante Da’Far, como tem sido a movimentação dos nossos passageiros?

— Os apostadores permanecem no casco externo da nave. – Respondeu Da’Far. Eles haviam decidido se referir àquela espécie como “apostadores”. O capitão Vernon até havia tentado um novo contato com eles, no intuito de aprender mais sobre quem eram e quais eram seus costumes, mas fora completamente ignorado. – Eles têm se movimentado pouco, geralmente trocam de posição de duas a três vezes por dia. Neste momento eles estão na nacele de bombordo, jogando alguma espécie de jogo de tabuleiro que um deles trazia consigo.

Enquanto falava, Sinel Da’Far Sinel degustava uma espécie de crustáceo arroxeado, uma iguaria tradicional de seu planeta natal, Me’Chi. Ele era um chimarrita de menos de um metro e setenta de altura, mas de constituição física robusta e resistente. Sua pele era grossa como o couro de um búfalo e seus ossos tinham uma densidade superior à da maioria dos humanoides conhecidos. Algumas veias com sangue preto podiam ser vistas sob a pele de seu antebraço bastante avantajado, que era de um tom levemente mais claro do que o roxo do crustáceo que estava em seu prato. Seu rosto era plano, com dois pares de narinas laterais e sem protuberância nasal, além de um par de serenos olhos castanho-azulados.

Após a refeição, os oficiais tomaram o turboelevador principal até a ponte, assumindo os postos deixados pelos seus colegas do primeiro turno. Não havia muito o que fazer, já que a nave viajava em piloto automático pela singularidade, então os tripulantes aproveitavam o tempo para interagir e conhecer uns aos outros, com exceção do conselheiro Nhefé, que solicitara permissão para permanecer em seus aposentos estudando, até que sua colaboração fosse necessária.

— Bem-vindos ao tão esperado quinto dia. – Disse a comandante Shion quando os quatro adentraram na ponte. – Eu estava contando ao capitão Vernon que por muito pouco não tive Kwa como piloto na Voroth. Na época em que recebi o comando da nave e estava solicitando alguns membros para minha tripulação, ouvi falar de um jovem timoneiro miresita que cruzara a Nebulosa de Zhota’Kahaar em meio a uma tempestade termoaxiônica. Eu simplesmente não pude deixar de solicitar sua transferência, mas é claro, o capitão Sarah não quis abrir mão de você. Mas veja como as coisas são, aqui estamos nós, enfim a bordo da mesma nave estelar.

— Tive que insistir muito até que o capitão Sarah permitisse minha candidatura à missão Cão Maior, ele negou meu pedido três vezes antes de aceitar. – Comentou Kwa, sem um pingo de arrogância. – Ele realmente não queria que eu deixasse o leme da Autentica.

— Capitão! – Chamou a alferes Harman, auxiliar de instrumentos, operando a estação à direita de Shion. – Há uma leitura de variação na velocidade pendular.

— Comandante Chelaar, identifique a causa. – Disse o capitão, assumindo uma postura mais séria.

A oficial de ciências foi rapidamente até o painel e disse:

— Senhor, é a desaceleração! – E fez uma expressão de perplexidade enquanto avaliava os dados disponíveis. – Mas está acontecendo muito mais depressa do que quando entramos do outro lado. Nesse ritmo o pêndulo atingirá a velocidade mínima em doze minutos.

— As manobras espirais serão muito mais difíceis se a desaceleração acontecer nesse ritmo – Disse o capitão.

Todos olharam para Kwa, apreensivos, mas ela não parecia demonstrar hesitação ou medo. Na verdade, parecia apenas alguém que está concentrado e focado diante de um desafio difícil, mas longe de ser impossível.

— Eu consigo. – Disse ela, e sua autoconfiança tranquilizou Giulia.

— Tenho certeza que sim, alferes. – Disse o capitão, e passou a distribuir ordens para a tripulação. – Capitão chamando conselheiro Nhefé: preciso de todos na ponte, a hora chegou. Ponte para engenharia: preparar reator para propulsão de dobra padrão. Capitão para todos: dentro de dez minutos iniciaremos as manobras de desaceleração e, se tudo correr bem, em breve estaremos em algum lugar de Cão Maior, portanto segurem-se e estejam preparados.

— Os apostadores estavam certos, afinal de contas. – Comentou o tenente Rose.

Giulia olhou de canto para Chelaar, que virou os olhos.

— Da’Far, quero escudos ao máximo e camuflagem quando a manobra começar. – Continuou o capitão. – Rose, mantenha os fêiseres carregados, não sabemos o que encontraremos do outro lado.

— Aposto que os eles serão interceptados por batedores Verdevos logo que chegarem. – Disse o alienígena de voz grave, materializando-se, juntamente com seu amigo, ao lado do capitão.

— Aposto que a civilização Verdeva não existe mais. – Disse o segundo alienígena, apertando a mão do primeiro.

O alerta amarelo automático foi acionado, mas o capitão ordenou a Da’Far:

— Cancele o alerta. Estou curioso para saber a que devo a honra dessa visita.

— Ora, capitão. – Explicou o alienígena de voz fina, em tom polido. – Apreciaremos melhor sua chegada triunfal daqui. – Ele fez uma pausa, olhando para o teto da ponte. – E, é claro, fizemos algumas apostas sobre as formas com que vocês reagirão à chegada.

Nesse momento, o conselheiro Nhefé entrou na ponte, admirando-se com a situação.

— Curioso. – Disse ele, e sentou-se em sua cadeira, tranquilo.

— Cinquenta segundos, capitão. – Alertou Chelaar.

— Estamos em suas mãos, alferes. – Disse o capitão para Kwa, enquanto os batimentos dos corações de quase todos na nave aceleravam.

A miresita não respondeu, pois estava muito concentrada iniciando as complicadas manobras elípticas. Desta vez, com o intuito de se soltar do movimento pendular, as manobras deveriam acontecer em uma tangente perfeita, aliadas ao reestabelecimento dos motores da nave como força principal de propulsão, em velocidade equivalente ao ponto mais lento do pêndulo.

A nave vibrava mais do que da primeira vez, e algumas luzes se apagavam momentaneamente e em seguida voltavam a funcionar. Por toda a nave a tripulação se segurava como podia, sem deixar de observar pelas janelas o espetáculo de cores e luzes que se formava do lado de fora. Grandes linhas brancas e amarelas se entrelaçavam como se estivessem em uma dança suave e elegante, cercadas por milhões de pequenos pontos brilhantes e círculos translúcidos que se moviam na direção oposta.

Contudo, apesar das turbulências, as manobras foram executadas com precisão e, com um forte soco, a nave enfim se libertou do Pêndulo de Xavier-Rose e irrompeu na galáxia anã do cão Maior.

— Parada Total! – Ordenou o capitão Vernon, eufórico. – Chelaar, informe.

— Saímos senhor! – Respondeu ela, sem esconder a empolgação. – Os sensores astrométricos ainda estão se ajustando, mas é certo que estamos em Cão Maior.

— Senhor Da’Far, estamos sozinhos? – Perguntou o capitão, abrandando o tom de voz.

— Aparentemente sim, Senhor. – Respondeu Da’Far, atento ao painel de sua estação. – Sem leituras de naves ou formas de vida nas proximidades.

— Meus parabéns, alferes, você conseguiu. – Disse o capitão à Kwa. – Este foi um feito realmente incrível, digno de uma comenda por excelência. – Em seguida, dirigiu-se a todos na nave. – Bem-vindos à galáxia anã do cão Maior. Os senhores são testemunhas vivas do início da exploração espacial que marcará profundamente a história da Federação e de todos os povos que a compõe. Aguardem novas instruções e, é claro, estão todos convidados para brindar o sucesso da missão conosco hoje á noite, no bar panorâmico. Capitão desliga.

— E nossos visitantes? – Perguntou o conselheiro Nhefé.

O alienígena baixo, com muita má vontade, entregava uma grande quantidade de fichas ao seu companheiro, que exibia um largo sorriso no rosto.

— Não se preocupe conosco. – Disse ele, com sua voz mais aguda do que o habitual. – Agora que retornamos para casa, deixaremos vocês e partiremos para reencontrar alguns velhos conhecidos, bem longe daqui.

— Aposto que seu irmão está morto. – Desafiou o alienígena mais baixo.

— Aposto que ele está vivo e ainda não saiu da lua de Enertia. – Retrucou o outro, fazendo um gesto com a mão esquerda.

— A questão, cavalheiros. – Interrompeu a comandante Shion – É como vocês farão isso. Pois, e se o que nos disseram é verdade, os senhores não têm condições de se mover livremente pelo vácuo do espaço.

— E nem pretendemos. – Disse, surpreso, o alienígena de voz fina. – Adeus, pessoas da Via Láctea. Aposto que nos encontraremos de novo.

— Aposto que não. – Disse o outro, com sua voz entediada, sacando uma espécie de cubo emborrachado de um dos bolsos e apertando-o com a mão direita. No instante seguinte os dois desapareceram, mas de uma maneira diferente dos desaparecimentos anteriores, desta vez com uma fina fumaça rosa anuviando o ar ao redor deles.

— Alguma ideia do que foi isso? – Suspirou o capitão Vernon.

— Nada foi captado nos sensores, senhor. – Informou Da’Far. – Também não há sinal dos apostadores nem dentro nem fora da nave.

— Suponho que tenha sido algum tipo de tecnologia de transporte. – Conjecturou Chelaar. – Talvez estivessem longe demais para acioná-la de nossa galáxia, mas uma vez aqui, puderam utilizá-la normalmente.

— Ou então apenas apostaram que não utilizariam ela até voltar para Cão Maior, ou algo assim. – Sugeriu o conselheiro Nhefé. – Podemos perguntar a eles em nosso próximo encontro.

— Como pode estar tão certo de que os encontraremos de novo? – Perguntou o capitão Vernon, curioso.

— Não vimos o alienígena mais baixo ganhar nenhuma aposta. – Respondeu o conselheiro. – E ele apostou que não nos encontraríamos novamente. Logo, suponho que, se vamos apostar, apostemos no mais alto. Ainda nos veremos de novo.

— Acho que você está certo. – Riu o capitão e, em seguida, sentou-se em sua cadeira. – Aos seus postos, quero os resultados de todas as sondagens preliminares e os relatórios astrométricos em duas horas. Declaro esta exploração oficialmente iniciada!

O clima de comemoração perdurou por todo aquele dia, inclusive durante os turnos de trabalho, já que os tripulantes de todas as divisões e turnos trabalhavam empenhados em obter o máximo de informações possíveis sobre a galáxia anã, mas, por questões de segurança, a camuflagem foi mantida e a nave permaneceu em parada total. Contudo, à medida em que os relatórios não traziam qualquer indício de naves ou ameaças, o capitão decidiu que partiriam logo após a comemoração, que aconteceria mais tarde, no bar panorâmico. O que mais surpreendeu a todos, no entanto, foi o fato de que os relatórios e sondagens não apontavam apenas a ausência de naves, mas também a ausência de sistemas, nebulosas, asteroides ou qualquer coisa que pudesse ser estudada. Ao que tudo indicava, o Pêndulo havia deixado a nave em um ponto completamente isolado e externo do aro galáctico. Segundo o mapeamento feito pela astrometria, o objeto mais próximo era uma estrela amarela classe G, a qual ficava há oito dias de viagem da posição atual, em dobra máxima.

Embora parecessem frustrantes, essas informações não abalaram, a princípio, o entusiasmo da tripulação, que, em sua maioria, optou por encarar a ideia positivamente. Afinal, considerando que havia a possibilidade de que saíssem do pendulo diretamente para uma situação de extremo perigo como uma nebulosa classe E, um poço gravitacional, uma distorção subespacial ou, ainda, uma frota de naves hostis, o cenário estava incontestavelmente a favor deles, propiciando tranquilidade para que pudessem dar os primeiros passos seguros em território desconhecido.

A comemoração da chegada em Cão Maior se iniciou às 20h, logo após o término do turno principal, e os tripulantes da ponte foram diretamente ao bar panorâmico, com exceção do conselheiro Nhefé, que optara por voltar aos seus aposentos. Os tripulantes que operavam a ponte no turno da noite foram autorizados a revezar para que também pudessem comparecer e festejar.

O bar panorâmico era um recinto muito agradável, localizado na proa superior da nave, e ocupando parte dos deques 13 e 14, onde haviam três espaços distintos. No deque 13 ficava o principal ambiente, com um longo balcão, várias mesas e um pequeno palco para apresentações, sendo bem iluminado e com grandes janelas, que proporcionavam uma vista espetacular. No deque 14, podendo ser acessado por uma escada ou pelo turboelevador, haviam outros dois ambientes, um deles mais reservado e com poucas mesas, e o outro uma espécie de camarote, conjugado com o ambiente principal. O bar funcionava em contra turno com o refeitório, com o qual compartilhava a mesma estrutura geral de cozinha. Excepcionalmente nesta ocasião, ambos estavam abertos, possibilitando a presença de um número maior de pessoas.

As conversas eram animadas e esperançosas, girando principalmente em torno das expectativas sobre as pesquisas a serem desenvolvidas em Cão Maior. No campo profissional, especialistas e estudiosos das mais diversas áreas trocavam conhecimentos e se aproveitavam da ocasião para apresentar seus mais recentes trabalhos. No campo pessoal, buscavam conhecer um pouco mais dos colegas com quem conviveriam nos próximos dois anos, plantando numerosas sementes de amizade. Alguns, é claro, conversavam com aqueles com quem já haviam servido anteriormente, relembrando episódios marcantes do passado. Outros, como Giulia e Chelaar, mantinham-se junto daqueles com quem estavam servindo na mesma nave antes da transferência para a USS Iguaçu, mas incluíam, com prazer, novos colegas, como Kwa.

Foi uma noite muito agradável, com o barman fazendo questão de mostrar sua habilidade ao preparar uma grande variedade de drinques, desde os clássicos e conhecidos da grande maioria até os mais exóticos, trazidos de todos os cantos da Federação. A pedido do capitão, ele preparou uma rodada de champanhe eminiano e, após um brinde, os motores foram acionados e a nave partiu rumo ao sistema estelar mais próximo.

— O capitão aprovou o curso preliminar sugerido pela astrometria. – Disse Chelaar, apontando para a vulcana que solicitava uma bebida ao barman. – Seguiremos em sentido anti-horário, desenhando um círculo que nos trará de volta ao ponto de partida a tempo de embarcarmos novamente no pêndulo.

— Espero que ela tenha calculado com uma boa margem de erro. – Comentou Da’Far. – Nós estamos em uma autêntica missão de exploração em território desconhecido, e é impossível determinar com exatidão quais serão nossa rota e velocidade.

— Eu examinei o curso apresentado. – Disse Chelaar. – Devo admitir que é muito sensato e leva em conta a base estatística das missões de espaço profundo. – Ela bebeu um gole do champanhe. – Mas nunca se sabe, podemos encontrar tantas formas de vida e fenômenos cósmicos desconhecidos, que nem mesmo chegaremos à metade desse curso e teremos que dar meia volta.

Eles riram e brindaram, conversando demoradamente sobre suas expectativas para a missão, verdadeiramente satisfeitos por serem os primeiros exploradores da Via Láctea a porem os pés em Cão Maior. Quando a comemoração já estava chegando ao fim, o capitão se juntou a eles, seguido por Shion, que surpreendeu Giulia com seu bom-humor e profissionalismo. No fundo, a oficial de comunicações tinha a impressão de que, pelo fato da andoriana já ter sido capitão, haveria algum orgulho, ressentimento ou até mesmo vergonha de estar em uma posição inferior, especialmente diante dos vários tripulantes que anteriormente serviam sob seu comando na USS Voroth. Entretanto, ela parecia tão feliz quanto qualquer outro, e demonstrava o devido respeito ao capitão Vernon, fazendo jus às qualidades que a levaram a ser a mais jovem capitã da história da Frota.

A realidade da missão, no entanto, foi se mostrando muito diferente da qual eles haviam imaginado. Após oito dias de viagem, tudo que encontraram foi a estrela amarela, sem planetas em sua órbita, tão comum quanto outras milhares da mesma classe no quadrante alfa. Aquela parte da galáxia era um ermo, onde cada sistema era distante do outro no mínimo o dobro do que costumava ser na Via Láctea. Como se isso não bastasse, após cada viagem, que as vezes levava dias, encontravam outro sistema comum, sem o menor sinal de formas de vida ou descobertas científicas significantes.

Por mais que a tripulação tivesse ciência da possibilidade de que Cão Maior pudesse ser uma galáxia vazia e sem vida, era inegável que todos esperavam abundância e diversidade. Mesmo dispondo de vários laboratórios e pessoal qualificado, apenas alguns poucos setores, como a astrometria e as equipes de pesquisa geológica, trabalhavam em ritmo acelerado, coletando dados e catalogando informações obtidas nos estudos dos raros planetoides encontrados. Grupos de pesquisa arqueológica até tentaram identificar possíveis civilizações extintas, e os exobiólogos buscaram indícios de vida, mas sem sucesso. Após duas semanas nessa rotina, a empolgação se reduziu drasticamente e a busca por horários de holodeck cresceu vertiginosamente. O capitão chegou a convocar uma reunião para estudar uma mudança no curso, mas a conclusão foi de que isso seria inútil, pois essa parte da galáxia tinha a característica incomum de ser vazia e desabitada, e não havia nada a ser feito.

— O que eu não daria para encontrar um pulsar. – Disse Chelaar para Giulia, enquanto as duas se dirigiam para seu turno na ponte. – Eu poderia até dar seu nome para ele.

— Eu ficaria feliz com um simples gigante gasoso. – Respondeu Giulia. – Dá para acreditar que todos os planetas que encontramos até agora eram rochosos?

— Bom, pelo menos não fazemos parte da equipe de segurança. – Disse Chelaar abaixando o tom de voz. – Da’Far comentou comigo ontem à noite que, a partir de hoje, os treinamentos serão intensos e diários. Ele acredita que esse momento é perfeito para afiar as garras e aperfeiçoar os sentidos da tripulação.

— “Entrosamento é a chave para uma equipe eficiente”. – Disse Giulia, imitando a voz rouca de Da’Far. – Eu ouvi ele dizer isso pelo menos umas cinco vezes.

Chelaar deixou escapar um riso anasalado no exato momento em que o turboelevador se abriu, revelando a comandante Shion.

— Boas notícias. – Disse ela, cumprimentando-as com um movimento da cabeça. – Pela manhã, a astrometria detectou um planeta classe M há apenas dois anos luz daqui. Estamos a caminho.

— Como um planeta tão próximo não foi captado pelos sensores de longo alcance? – Indagou Chelaar, levantando as sobrancelhas.

— As leituras estavam estranhamente repetitivas, com um forte eco, então foi iniciada uma remodulação completa dos sensores, o que possibilitou identificar que se tratava de uma nebulosa fantasma, se estendendo ao longo de grande parte deste setor. – Explicou Shion enquanto elas saíam do turboelevador e entravam na ponte.

— Entendo. – Disse Chelaar, dirigindo-se para sua estação de trabalho. – É um fenômeno incomum.

— Segundo a base de dados, há registro de apenas uma no quadrante alfa. – Completou o capitão Vernon, levantando-se de sua cadeira. – E seu tamanho não chega a um décimo desta aqui.

— Permissão para deixar a ponte. – Pediu Chelaar. – Sei que acabei de chegar, mas eu gostaria de formar uma equipe e iniciar as pesquisas preliminares sobre a nebulosa.

— Concedido. – Respondeu o capitão. – Ponte para engenharia. Qual é a previsão para a conclusão da remodulação dos sensores?

Hashimoto falando, Senhor.— Ouviu-se a voz do engenheiro-chefe. – O conjunto de sensores deve estar operacional dentro de quarenta minutos.

— Certo. Prossiga, comandante. – Disse o capitão. – Subtenente Naggi, temos alguma coisa?

— Nenhum sinal de comunicações, senhor. – Respondeu Giulia. – Aparentemente estamos sozinhos.

— Então se houver alguém naquele planeta classe M, ainda não desenvolveu tecnologia de comunicação subespacial. – Disse a comandante Shion.

— Devemos considerar a possibilidade de que a nebulosa também esteja bloqueando sinais de comunicação. – Disse Da’Far. – Então, até que possamos confirmar uma posição segura, sugiro levantarmos a camuflagem.

            Presente em praticamente todas as naves estelares da Frota, a tecnologia de camuflagem, que até o final do século XXIV representara uma grande vantagem militar para algumas espécies, sendo envolta em segredos e profundamente temida, e tendo seu uso restrito e protegido por tratados entre as principais potências da galáxia, tornara-se um equipamento banal e de pouca utilização. Depois que foram descobertos meios para identificar facilmente a presença de naves camufladas, essa tecnologia se tornara obsoleta e caíra em desuso, tanto por ser dispendiosa, energeticamente falando, quanto, e especialmente, por comprometer algumas funções importantes das naves, como os sensores, as armas e os transportes. Sua utilidade, em meados do século XXV, restringia-se ao estudo científico, principalmente de espécies que davam seus primeiros passos na exploração espacial, ainda sem ter desenvolvido tecnologia de dobra

— Capitão. – Disse o conselheiro Nhefé. – Acredito que, se aquele planeta possuísse uma civilização tecnologicamente avançada ao ponto de a considerarmos uma ameaça potencial, eles possivelmente também teriam condições de atravessar a nebulosa fantasma e explorar o espaço onde nos encontramos agora. Contudo, mesmo fora da nebulosa não detectamos nenhum sinal residual de dobra ou mesmo boias de comunicação.

O conselheiro da nave, Kómóg Nhefé, era um veniano de sessenta e oito anos de idade, detentor de uma vasta experiência e uma carreira notável na esfera política e diplomática da Federação dos Planetas Unidos. Como era muito comum entre os membros de sua espécie, ele tinha a pele muito manchada, sem a presença de pelos ou cabelos, seu porte físico era bastante esguio e seu rosto, ossudo e pouco expressivo, tinha tonalidades que variavam do dourado ao azinhavre. Em sua cabeça, além de orelhas invertidas verticalmente em relação às humanas, havia uma reentrância, com cerca de um centímetro de profundidade e três de largura, estendendo-se de têmpora a têmpora, dando a volta por trás de seu crânio cinzelado.

— De acordo. – Disse o capitão Vernon. – Não sinto que estejamos em uma situação de ameaça potencial, e o uso da camuflagem diminui consideravelmente a eficiência dos sensores. Além do mais, não sabemos o que encontraremos pela frente, então prefiro poupar energia sempre que possível. Srta. Kwa, mantenha-nos a uma distância de cinco milhões de quilômetros da nebulosa, um oitavo de impulso. Acionar.

— Sim, capitão. – Disse a piloto.

O estudo da nebulosa ocupou a tripulação por quase dois dias, pois se tratava de fenômeno raríssimo e bastante complexo. A equipe da comandante Chelaar concluiu que, apesar de algumas características semelhantes às da nebulosa fantasma encontrada no quadrante alfa, haviam diferenças fundamentais que exigiam até mesmo uma nova classificação.

— Eu acho que o nome mais adequado para este fenômeno seria “nebulosa espelho”. – Disse Chelaar, à mesa da sala de reuniões da ponte. – Mesmo tendo vários anos luz de extensão, ela é relativamente fina, com uma espessura média de vinte milhões de quilômetros, quase invisível a olho nu e com uma fortíssima radiação sigma, que praticamente devolve todas as sondagens convencionais, possivelmente de ambos os lados.

— Fascinante. – Disse Shion, observando o modelo 3D apresentado na tela principal da sala de reuniões. – A travessia é segura?

— Sim, senhor. – Respondeu Chelaar, apontando para uma linha vermelha que cortava a imagem nebulosa. – Estabelecemos um ponto e velocidade ideal para a travessia, que não deve durar mais do que alguns minutos. Mesmo assim, sugiro que levantemos os escudos por causa da radiação sigma.

— De acordo, ordenarei a Srta. Kwa que trace o curso imediatamente. – Disse o capitão Vernon. – Depois que atravessarmos, finalmente poderemos catalogar nosso primeiro planeta classe M em Cão Maior.

Eles deixaram a sala de reuniões com os ânimos renovados e adentraram na ponte, dando início à travessia da nebulosa espelho. Como Chelaar havia previsto, a passagem foi segura e, dentro de poucos minutos, eles haviam emergido às margens do sistema que continha o primeiro planeta com condições de suportar vida humanoide a ser estudado.


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