Jornada nas Estrelas: Iguaçu escrita por Laertes Vinicius


Capítulo 1
Canis Major, Parte I




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A chegada de uma nave estelar à doca de atracação zero chamou a atenção de todos que estavam no átrio principal da Estação Espacial Catadupa. Não era um dos maiores modelos da Frota disponíveis na década de 2440, mas certamente era o mais belo, com seu alinhamento clássico e linhas suavizadas. Muitos se aproximaram das janelas para observar os detalhes mais de perto, alguns apenas admirando em silêncio, outros conversando sobre seus pontos favoritos do design e alguns até mesmo especulando sobre as possíveis especificações técnicas da novíssima classe Void, à qual a nave ancorada pertencia.

Ela media quatrocentos e três metros de comprimento e cento e trinta e seis de largura, sendo operada por uma tripulação de duzentos e onze pessoas. A seção principal, onde ficava a maior parte dos alojamentos, áreas de uso comum e laboratórios, além da ponte de comando, era chamada de seção disco, em função de seu formato semelhante ao de um frisbee. Os motores e a engenharia ficavam na parte inferior central do disco, em um imenso cilindro que partia da popa e estendia-se horizontalmente, representando mais da metade do comprimento da nave. Na parte superior do disco, também partindo da popa, havia dois outros componentes cilíndricos, quase tão grandes quanto a engenharia, um a bombordo e outro a estibordo, chamados de naceles.

Equipada com recursos impressionantes, a nave contava com escudos de energia, sistemas repulsores de sondagens e camuflagem modulável, além de um casco composto por uma liga de oricalco-tritânio, capaz de resistir a danos físicos extremos, uma grande variedade de radiações e até mesmo algumas anomalias espaciais. Havia, também o raio trator, com alcance e potência maximizados, e quatro naves auxiliares, úteis em inúmeras situações que a nave poderia encontrar em espaço profundo. No caso de um encontro pouco amistoso com uma raça hostil, ou diante da necessidade de atravessar um campo gravitacional oscilante cheio de meteoritos, por exemplo, a nave dispunha de seis bancos fêiseres, torpedos fotônicos e ogivas de tricobalto, suficientes para superar a maioria dos desafios e desafiantes.

A propulsão ficava a cargo de um poderoso reator de dobra que, por meio da fusão de matéria e antimatéria, produzia energia suficiente para mover a nave centenas de vezes mais rápido do que a luz. Quando a velocidade exigida era sub-luz, o trabalho era feito pelos motores de fusão simples, chamados de motores de impulso. Ainda, haviam os manobradores, utilizados para deslocamentos discretos, como atracações em docas espaciais e navegação por nuvens superdensas de partículas. Na parte frontal da seção disco, que estava encostada na face principal da estação espacial, havia a inscrição: USS Iguaçu NCC-90D02, indicando o nome da nave e seu número de registro.

Entre os que observavam em silêncio, do centro da grande janela panorâmica, havia uma mulher vestindo um uniforme da Frota Estelar e segurando uma caneca de café já vazia. Seu nome era Giulia Naggi, Oficial de Comunicações. Ao contrário dos demais, que se levantaram e deixaram as mesas gradativamente após uma criança malcoriana anunciar a chegada da novíssima nave estelar, ela estava lá, esperando ansiosamente, há pelo menos meia hora.

Dois homens se aproximaram dela, ambos de uma espécie que ela desconhecia, de pele pálida e sardenta, cabelos alaranjados e espessos bigodes. Um deles era alto, esguio e levemente curvado, e o outro não tinha mais do que um metro e vinte de altura, com o tipo físico de um humano portador de nanismo. Eles conversaram entre si por alguns instantes e então o mais alto perguntou:

— Porquê todos estão tão alvoroçados com a chegada desta nave? – Sua voz era surpreendentemente aguda para o seu tamanho.

— Esta é a USS Iguaçu. – Respondeu Giulia, educadamente. – A irmã menor da nave capitânia da Frota. Hoje ela partirá em uma missão muito importante.

— Qual seria essa missão? – Perguntou o alienígena, forçando um sorriso.

Pelo tom de sua voz, Giulia suspeitou que ele não buscava descobrir uma informação nova, mas sim apenas confirmar o que já sabia de antemão. Contudo, percebendo que a conversa chamara atenção de outras pessoas e de um grupo de jovens, decidiu que faria uma explicação adequada, elevando levemente o tom da voz ao responder:

— Há quase cinquenta anos um grupo de cientistas teorizou sobre uma força cósmica de proporções incomensuráveis que, em homenagem ao líder dessa pesquisa, foi nomeada como Pêndulo de Xavier-Rose. A referência ao pêndulo se dá porque essa força se move entre nossa galáxia e a galáxia anã do cão Maior com velocidades que variam de maneira semelhante ao movimento pendular, embora absurdamente mais rápidas do que a velocidade de dobra convencional. Uma vez que foram coletadas evidências suficientes para provar a existência dessa força, e desde que foi possível mapear seu trajeto, o corpo científico da Frota trabalhou para encontrar um meio de utilizá-la como uma espécie de estrada para nossa galáxia vizinha, já que, embora ela esteja “encostada” na Via Láctea, torna-se impossível atravessar os campos gravitacionais extremos utilizando naves estelares. É claro, pegar carona em uma onda de energia cósmica parcialmente desconhecida e que se move a velocidades inimagináveis não é uma tarefa fácil, mas a solução encontrada foi muito criativa. – Giulia fez uma pequena pausa, para criar um pouco de expectativa nos jovens que a estavam ouvindo. – O ponto mais lento conhecido do movimento pendular passa por este setor e, por cerca de quinze minutos a cada dois anos, entre ida e volta, atinge a velocidade equivalente a dobra 9,98135. – Continuou ela. – Eu sei que pode parecer bastante rápido, afinal temos aqui a nave mais rápida da Frota, com capacidade de atingir dobra 9,982. Mas acreditem, mesmo nossa nave mais veloz ainda não chega nem perto do movimento pendular quando reinicia a aceleração em direção à Cão Maior. E é aí que entra a solução criativa. A USS Iguaçu vai atingir dobra máxima quando o movimento pendular estiver para atingir seu ponto mais lento e, em seguida, vai desacelerar apenas o suficiente para se igualar a velocidade do Pêndulo, iniciando uma audaciosa manobra em espirais para unir seu campo de dobra à corrente cósmica dele, pegando um atalho até a galáxia anã e abrindo um novo e riquíssimo campo de pesquisa e exploração científica. A previsão de retorno é daqui há dois anos, quando o Pêndulo voltar para nossa galáxia. – Concluiu Giulia, satisfeita com o resumo que fizera.

— E qual a chance de sucesso? – Perguntou o alienígena de voz fina.

— As pessoas mais qualificadas da Federação trabalharam por anos no projeto desta nave e desta missão, e a tripulação foi escolhida a dedo. – Respondeu Giulia, que não esperava uma pergunta tão fria. – Confiamos que as chances de sucesso estão próximas de 100%.

— Aposto que eles não conseguem unir-se ao pêndulo. – Disse o alienígena mais baixo, com uma voz grave e rouca.

— Aposto que sim. – Retrucou seu companheiro mais alto e, sem nem mesmo olharem para Giulia, deram as costas e saíram em direção ao bar.

Giulia ficou um pouco confusa com essa atitude, mas ela já havia conhecido tantas espécies com comportamentos sociais curiosos que logo esqueceu os dois alienígenas e voltou a admirar a nave. Ficou ali, absorta em pensamentos, por mais alguns minutos, até que ouviu uma voz feminina dizer:

— É fantástica, não é?

Por um momento, diante do grande número de pessoas conversando ao seu redor, ela pensou que o comentário tivesse sido feito por algum dos jovens que ouviram sua explicação. Mas olhando rapidamente para o lado, notou que havia outra pessoa ali, com uniforme idêntico ao seu e olhando fascinada para a USS Iguaçu. Era uma miresita, com seus olhos completamente negros, seu cabelo bege semelhante à lã de carneiro e pele morena, com a presença de pequenos riscos horizontais em seu rosto, como se fossem sardas.

— Sim – Sorriu Giulia. – Giulia Naggi, Oficial de Comunicações, prazer em conhecê-la.

— Kwa, Piloto. – Respondeu a mulher, com um sorriso muito animado. – E o prazer é todo meu.

Giulia levantou as sobrancelhas.

— Você quer dizer “a” piloto? A pessoa que vai controlar o leme no momento que a nave entrar no pêndulo?

— Isso mesmo. – Respondeu Kwa, orgulhosa.

— Deve estar ansiosa, alferes. – Comentou Giulia. – Não há registros de ninguém que tenha feito algo semelhante, e alguns poucos ainda acreditam que é um feito impossível.

— Ansiosa? – Kwa desviou o olhar para a nave e então se voltou novamente para Giulia. – É claro, mal posso esperar para pôr as mãos no leme e mostrar que é possível. Afinal, foi para isso que me candidatei para a missão.

— Você é muito confiante. – Disse Giulia. – Não me admira que tenha sido selecionada.

— E você, o que a fez se candidatar para esta missão, subtenente? – Perguntou Kwa.

— Eu tenho servido com o capitão Vernon a bordo da Ganímedes desde que me formei na academia. – Respondeu Giulia. – Na verdade, posso dizer que ele é como um pai para mim, eu o respeito e admiro muito. Quando ele pediu que eu me inscrevesse, não pensei duas vezes em aceitar.

— Compreendo – Disse Kwa, juntando as mãos nas costas. – Ainda não tive oportunidade de conhecê-lo pessoalmente, mas sua reputação é notável.

— E é merecida. – Concordou Giulia, levantando as sobrancelhas. – Bom, o que acha de irmos ao auditório? Creio que esteja quase na hora da recepção oficial.

— De acordo. – Disse Kwa, e ambas deixaram o átrio principal, mas não sem antes dar uma última olhada na nave ancorada do lado de fora da estação.

Em meio ao grande fluxo de pessoas que se dirigiam para o auditório, as duas encontraram vários futuros colegas da tripulação, todos vestindo o uniforme padrão da Frota Estelar, composto de calça e sapatos pretos, camisa na cor da respectiva divisão (vermelho, azul ou amarelo), com a gola, onde ficavam as insígnias que indicavam a patente do tripulante, e parte da manga, entre o pulso e mais da metade do antebraço, também na cor preta. Giulia, cuja camisa era vermelha representando a divisão de comando, acenou para um enfermeiro de uniforme azul, que também servira na USS Ganímedes, e que certa vez havia cuidado dela após ter sofrido uma grave lesão no tornozelo durante uma missão avançada em um planetoide classe D. A maioria das pessoas estavam seguindo o mesmo caminho, entusiasmados por poder presenciar aquele momento histórico para a Federação, e muitos cumprimentavam os tripulantes, desejando boa sorte e sucesso.

O auditório, com capacidade para mais de duas mil pessoas, estava sendo rapidamente preenchido por pessoas de inúmeras espécies e planetas, que disputavam, amistosamente, os melhores lugares. Nas primeiras fileiras, logo atrás das personalidades da Federação e convidados ilustres, ficavam os lugares reservados para a tripulação, aos quais Kwa e Giulia se dirigiram, sentando-se imediatamente ao lado do corredor central. Nos lugares à frente delas estavam dois alferes, um tellarita e um humano, que conversavam:

— Você viu o capitão? – Perguntou o tellarita.

— Qual deles? – Perguntou o humano levantando uma sobrancelha. – Ainda não me acostumei inteiramente com a ideia de ter dois capitães em uma só nave.

 Correção, alferes. – Disse uma voz tranquila ao lado de Giulia, dirigindo-se ao humano. – Só haverá um capitão na USS Iguaçu.

Em pé ao lado delas estava uma mulher andoriana, de pele azul, com o cabelo quase branco arrumado em uma pequena trança, e duas antenas no alto da cabeça. Ela vestia um uniforme de gala vermelho com divisas de comandante e carregava uma expressão séria no rosto, embora não parecesse zangada. Os dois alferes se viraram assustados, como quem é pego no flagra cometendo um erro que poderia custar a carreira.

— Perdão, comandante, eu... – Gaguejou o humano.

— Já basta. – Interrompeu a andoriana, sorrindo para um almirante que acenava para ela do palco. – Teremos tempo suficiente a bordo para estabelecer quem é quem dentro da estrutura hierárquica da nave. – E, sem dizer mais nada, foi em direção ao almirante, deixando os dois alferes afundados nas cadeiras, envergonhados.

Giulia e Kwa sabiam quem era aquela oficial andoriana e, assim como a grande maioria dos que estavam ali, estavam a par de suas polêmicas escolhas. Seu nome era Kan Shion, e há aproximadamente dois anos ficara conhecida por ser a mulher mais jovem a assumir a cadeira de capitão em uma nave da Frota Estelar, a USS Voroth. Determinada e competente, ela rapidamente conquistou uma reputação invejável e participou de importantes missões por todo o quadrante, inspirando uma geração de novos cadetes da academia. Quando foram abertas as inscrições para formar a tripulação da USS Iguaçu, cerca de seis meses antes do lançamento da missão, ela prontamente se candidatou ao posto de capitão, criando grande expectativa entre aqueles que admiravam seu trabalho. Contudo, quando ficou claro que o comando da Frota optaria por alguém com mais experiência para liderar a expedição, ela tomou a ousada e surpreendente decisão de pedir rebaixamento a patente de comandante, para que assim pudesse se candidatar ao posto de primeiro oficial. Logo, sendo indiscutivelmente a pessoa mais qualificada entre os concorrentes e carregando o respeito e a confiança de muitos almirantes, a decisão de escolhê-la foi unânime.

O auditório transbordava em excitação enquanto os oficiais superiores subiam ao palco um a um, posicionando-se ao lado do almirante que acenara para a comandante Shion. Por fim, vindo pelo lado esquerdo, acompanhado por outro almirante, subiu ao palco o capitão Víbio Vernon, recebendo uma calorosa salva de palmas. Então, educadamente, a plateia fez silêncio.

— Saudações a todos. – Disse o almirante que estava inicialmente no palco, abrindo os braços. Sua voz ecoou por todo o auditório enquanto as luzes diminuíam e uma projeção da USS Iguaçu se formava acima da plateia, deslizando lentamente. – Eu sou o almirante Helius, e é com imenso prazer que, em nome do Comando da Frota Estelar e da Federação dos Planetas Unidos, saúdo todos os presentes, em especial os corajosos e exemplares oficiais da Frota Estelar que hoje embarcarão na missão mais intrépida deste século, audaciosamente indo onde ninguém jamais esteve! – A plateia vibrou mais uma vez, aplaudindo as palavras do almirante, que continuou. – Capitão Vernon, acredito que todos querem ouvir algumas palavras suas.

— Saudações a todos. – Disse o capitão Vernon, dando um passo à frente. Antes de continuar, ele fez uma breve pausa, enquanto percorria o auditório com o olhar. – Seria egoísmo de minha parte apenas dizer que estar ao lado de oficiais tão renomados e capazes, diante de uma plateia vibrante e prestes a dar o maior passo da minha carreira, é a realização de um sonho. Dizendo isto, estaria me apropriando deste sonho, quando na verdade ele não é apenas meu. Ele pertence também aos cientistas que descobriram sobre o Pêndulo de Xavier-Rose, aos que dedicaram suas carreiras e suas vidas no estudo da viabilidade da utilização dessa singularidade intrigante e complexa. Ele pertence a todos que trabalharam incansavelmente no planejamento desta missão, desde o desenho da primeira planta da nave até a seleção da tripulação que está aqui ao meu lado e diante de mim, com os quais terei honra em servir. E, acima de tudo, ele pertence à cada cidadão da Federação dos Planetas Unidos, pois este sonho simboliza a essência do que uniu incontáveis espécies e mundos: o desejo de explorar o universo em busca de conhecimento e compreensão.

Novamente, o capitão recebeu uma calorosa salva de palmas.

— Há não muito tempo atrás, muitos de nós poderiam pensar que a exploração de pontos além da nossa galáxia estaria reservada para um futuro distante. – Continuou o capitão. – De fato, com nossa atual tecnologia, até mesmo viagens a outros quadrantes estão longe de serem fáceis. No entanto, assim como uma vez foi teorizada e então descoberta uma fenda espacial estável que leva ao quadrante delta, foi também teorizado sobre o Pêndulo de Xavier-Rose, que une nossa galáxia à galáxia anã do cão Maior. Desde então, foram exaustivamente estudadas as possibilidades, e inúmeras pessoas trabalharam numa forma de utilizar essa singularidade a nosso favor e permitir uma exploração que talvez caberia apenas aos nossos netos. – Ele inclinou a cabeça para os assentos onde estava a tripulação, e por um instante seu olhar encontrou o de Giulia – Sei que existem riscos. Sei, também, que há uma probabilidade de que não consigamos aderir ao movimento pendular e que tenhamos que voltar aos cálculos até uma nova oportunidade surgir, o que não aconteceria antes de pelo menos dois anos. Mas eu acredito com todo meu coração e com toda minha racionalidade que, ainda hoje, esta tripulação estará em Cão Maior e que, quando retornarmos, traremos conosco material suficiente para manter os pesquisadores da Federação ocupados por décadas.

O capitão Vernon então passou a palavra ao outro almirante, que o acompanhara até o palco, o qual fez uma breve explicação sobre as especificações técnicas da USS Iguaçu e de como ela seria capaz de atingir o feito de se unir ao movimento pendular, pegando carona até algum ponto ainda desconhecido da galáxia anã do cão Maior. Em seguida, após mais algumas palavras de agradecimento, foram apresentados os oficias comandantes: Kan Shion, a primeiro oficial andoriana, Emilian Hashimoto, o engenheiro-chefe e Chelaar, a oficial de ciências tellarita.

A cerimônia durou cerca de uma hora e meia, sendo finalizada com um brinde e uma belíssima apresentação de um violoncelista vulcano. A seguir, todos foram convidados a se dirigirem ao átrio principal, bares panorâmicos e demais lugares com janelas que permitissem acompanhar a partida da USS Iguaçu, que ocorreria em instantes. A tripulação foi orientada a seguir pelos corredores de acesso à doca de atracação principal, previamente isolados para impedir o trânsito de pessoal não autorizado e, após as verificações de segurança, todos embarcaram na nave e tomaram seus postos. Giulia, Kwa e uma alferes de uniforme amarelo, auxiliar de instrumentos, foram os últimos a entrar na ponte, sendo cumprimentados pelo capitão e demais colegas com um aceno de cabeça.

A ponte tinha um tamanho mediano, mas a disposição estações de trabalho a fazia parecer mais ampla do que realmente era. O design unia primorosamente o melhor do estilo clássico com as nuances mais modernas da nave capitânia da Frota, causando uma impressão de elegância tecnológica ímpar. O carpete não continha um único grão de poeira, os assentos de couro sintético não tinham ranhuras ou imperfeições, os detalhes em madeira reluziam como se tivessem sido encerados há poucos minutos e o contraste das luzes nos painéis realçava a resolução altíssima das telas.

Como de costume nas naves estelares, a grande janela dianteira também servia como tela, com a diferença que neste modelo ela se estendia em cada lateral cerca de quinze por cento a mais do que o convencional. Logo à frente dela ficava o leme, tendo à sua esquerda e sua direita, respectivamente, as estações do oficial tático e do auxiliar tático, ambas levemente recuadas e inclinadas, de modo de que os ocupantes ficavam num ângulo de quarenta e cinco graus do piloto. Centralizada atrás do leme ficava a cadeira do capitão, tendo ao seu lado direito, ligeiramente à frente, a cadeira do primeiro oficial e ao seu lado esquerdo, também ligeiramente à frente, a cadeira do conselheiro. Ainda na parte mais baixa da ponte, à direita do primeiro oficial, ficava a estação do auxiliar de instrumentos e, à esquerda do conselheiro, ficava a estação do oficial de comunicações, as duas viradas de costas para o centro da ponte. Logo atrás da cadeira do capitão havia uma leve rampa que dava acesso à parte mais alta da ponte, na qual estavam situadas as estações do chefe de segurança e do oficial de ciências, à direita e à esquerda, respectivamente. Ao fundo dessa parte elevada estava o acesso para a sala de reuniões e para o turboelevador principal, o qual também podia ser acessado por qualquer uma das duas rampas que suavemente se inclinavam a partir do centro da ponte, circulando as estações de segurança e ciências e dando acesso à outras partes da nave.

Presentes todos os tripulantes da ponte, o capitão Vernon subiu a rampa atrás de sua cadeira e virou-se na direção deles. Era um homem de quarenta e cinco anos e, apesar do olhar sereno, seu rosto ovalado trazia uma expressão rígida, emoldurada por seu volumoso cabelo, já com alguns fios brancos. Seu porte ereto e constituição física denunciavam que ele era um atleta, e que não abandonara as atividades físicas mesmo com as grandes responsabilidades inerentes ao comando.

— Esta nave possui uma pequena, porém extraordinariamente qualificada tripulação. – Disse o capitão, depois de olhar brevemente nos olhos de cada um. – Eu diria que é a melhor da Frota, não apenas pela formação acadêmica ou experiência de alguns, mas pela coragem e pelo desejo de explorar a fronteira final em busca de conhecimento e grandes realizações, afinal, este é o cerne da Frota Estelar. Tenho orgulho em dizer que conheço muito bem o trabalho da subtenente Naggi e da comandante Chelaar, que estão ao meu lado já faz algum tempo. – E acenou para as duas com a cabeça. – Mas também estudei as fichas de cada um dos senhores e demais membros de minha tripulação e, vendo-os aqui diante de mim, enxergo refletidos os ideais da Federação. Será uma honra servir ao lado dos senhores. Aos seus postos.

Os dez membros da ponte tomaram seus lugares, com Giulia ao lado esquerdo do conselheiro e Kwa à frente de todos, no leme. O capitão então falou novamente, desta vez para a nave toda:

— Saudações a todos, aqui quem fala é o capitão Vernon. Bem-vindos á USS Iguaçu, a primeira nave de exploração intergaláctica da Frota Estelar. Dentro de instantes partiremos em direção ao ponto de convergência da força cósmica conhecida como Pêndulo de Xavier-Rose. Nos próximos dois anos, estaremos completamente isolados da Federação, viajando por algum ponto ainda ignorado na galáxia anã e Cão Maior, há milhares de anos luz daqui. Mas isso não me assusta, pois estaremos juntos e eu acredito inteiramente na capacidade de cada um dos senhores. É uma honra estar no comando desta missão e dou minha palavra que farei o possível e o impossível para conduzi-los em segurança e, é claro, trazê-los de volta. Capitão desliga. – Ele olhou para Giulia e continuou. – Subtenente Naggi, temos autorização para partir?

— Sim, senhor. – Respondeu Giulia, que já havia antecipado a situação, mantendo canal aberto com o comando da estação. – O almirante Helius autorizou a desatracação e nos deseja boa viagem.

— Ótimo. – Disse o capitão. – Vamos dar uma boa recordação para quem está nos assistindo. Srta. Kwa, iniciar procedimento de desatracação, afaste-se lentamente usando apenas os manobradores.

— Garras de atração liberadas, acionando manobradores de ré. – Disse Kwa, movendo os dedos rapidamente pelos comandos do leme.

— Ponte para engenharia. – Chamou o capitão. – Já temos nossos fogos preparados?

Engenharia falando, senhor. – Ouviu-se a voz do engenheiro-chefe nos alto-falantes da ponte. – Preparados e prontos para o show.

— Perfeito. – Sorriu o capitão. – Acionar.

Das muitas janelas da estação, centenas de pessoas assistiram admiradas as magníficas explosões multiespectrais lançadas pela USS Iguaçu, como um grande show de fogos de artifício, e aquele dia ficou marcado em seus corações para sempre.

Após uma viagem de menos de meia hora, em dobra 6, a USS Iguaçu chegou às coordenadas marcadas para início da jornada, encontrando a USS Jannar, cuja missão era acompanhar o desenrolar da operação e com isso registrar os dados necessários para o Comando da Frota. O capitão Vernon saudou os colegas e, após conversas técnicas, despediu-se e recebeu os votos de sucesso em nome da tripulação.

— Sondagens de longa distância captam a aproximação de uma onda de jórions. – Disse Chelaar, a oficial de ciências. Embora tivesse a altura média para uma tellarita, com a pele grossa e o rosto marcado por profundas linhas de expressão ao redor dos seus profundos olhos, ela era relativamente magra para alguém de sua espécie, e mantinha seu cabelo firmemente preso em um coque. Diferentemente dos seus colegas da ponte, ela tinha o hábito de usar saia ao invés de calças.

— Tempo para interceptação? – Perguntou Shion, a primeiro oficial andoriana.

— Dois minutos e trinta e seis segundos. – Respondeu Chelaar.

— Alerta azul. Todos aos seus postos. – Ordenou o capitão, levantando-se da cadeira. – Alferes Kwa, estamos em suas mãos. – E, fazendo um gesto com a mão esquerda, disse. – Dobra máxima, acionar.

— Certo, capitão. – Respondeu Kwa, tranquila, acionando os motores da nave, que disparou em grande velocidade, no mesmo sentido do movimento pendular.

Nesse momento, dois indivíduos surgiram entre o leme e a tela principal da ponte, um alto e levemente encurvado e outro baixo, com braços e pernas curtas. Todos ficaram momentaneamente perplexos com a situação, exceto Giulia, que os reconheceu como sendo os dois alienígenas que haviam conversado com ela na estação, perguntando detalhes sobre a missão da USS Iguaçu.

— Alerta de Intruso. – Disse Shion, levantando-se.

O oficial e o auxiliar tático levantaram-se e, juntamente com o chefe de segurança, posicionado em sua estação no lugar mais elevado da ponte, apontaram os fêiseres para os alienígenas.

— Identifiquem-se e declarem suas intenções. – Falou o capitão, em tom enérgico.

O alienígena mais baixo fez um muxoxo e tirou do bolso pequenos objetos redondos de metal, semelhantes a fichas, com furos no centro, e entregou ao seu companheiro, que disse satisfeito:

— Eu sabia que a fêmea andoriana iria dar o alerta.

Ambos pareciam alheios ao clima de tensão que surgira entre os tripulantes da ponte.

— Eu repito. – Disse o capitão, alteando a voz. – Identifiquem-se e declarem suas intenções.

— Senhor, a onda vai nos interceptar em 30 segundos. – Alertou Chelaar.

O capitão então ordenou ao chefe de segurança:

— Crie um campo de segurança nível 10 ao redor dos intrusos. – E virou-se para Kwa. – Alferes, nós precisamos continuar com a operação a todo custo, desacelere até dobra 9,98135 e iguale o campo de dobra ao movimento pendular.

— Sim, senhor. – Disse Kwa.

— Tenente Rose e alferes Ribb, mantenham os fêiseres apontados para os intrusos. – Continuou o capitão. – Se eles tentarem qualquer coisa, têm permissão para disparar.

Apesar da cautela adotada pelo capitão, os alienígenas pouco pareciam se importar com a situação, observando curiosamente os tripulantes da ponte.

— Interceptação em cinco segundos. – Informou Chelaar, em tom de urgência.

— Alferes Kwa, iniciar manobras elípticas ao meu comando. – Disse o capitão, olhando para o monitor. – Agora!

Vários tripulantes prenderam a respiração, mas Kwa conduziu o leme habilmente, corrigindo instintivamente os cálculos para que a nave pudesse, em uma rota espiral precisa, atingir o ponto ideal teorizado para que fosse possível “pegar carona” no Pêndulo. Após alguns instantes de forte vibração, a nave se estabilizou alguns deles voltaram a respirar aliviados, incluindo Giulia, que respirou fundo e afastou uma mecha de seu cabelo loiro do rosto, com seu coração ainda batendo acelerado.

— Conseguimos! – Disse Chelaar, eufórica. – O campo de dobra foi absorvido pelo pêndulo, que passou a funcionar como se fosse nosso motor.

— Velocidade aumentando. – Disse Kwa que, com uma gota de suor escorrendo do lado do rosto. – Isso é incrível, senhor, nunca viajei a uma velocidade tão alta.

— Nenhum de nós, alferes. – Disse o capitão. – Eu havia planejado uma salva de palmas para a Srta., mas devido às circunstancias teremos que adiar. – E aproximou-se dos alienígenas, seguido pela comandante Shion. – Temos dois tripulantes indesejados e eu ainda não decidi o que faremos com eles.

Então, para surpresa de todos, os alienígenas desapareceram e reapareceram no espaço que havia entre Giulia e o conselheiro, que se levantou, afastando-se deles. Rose, Ribb e o chefe de segurança dispararam imediatamente, com os fêiseres em modo tonteio, mas nada aconteceu. O alienígena menor balançou a cabeça e entregou uma grande quantidade daquelas fichas ao seu companheiro, que as recebeu com um largo sorriso no rosto. Eles continuavam a ignorar os tripulantes e o que estava acontecendo na ponte, absortos em sua própria interação.

— Capitão. – Manifestou-se Giulia. – Eu já os vi antes, na Estação Espacial Catadupa, logo que a USS Iguaçu atracou. Faziam perguntas sobre nossa nave e missão, mas não tenho ideia de quem sejam ou porque tenham vindo a bordo.

— Pela última vez. – Disse o capitão, assentindo para Giulia e aproximando-se dos dois alienígenas. – Insisto que se identifiquem e declarem suas intenções. Nossos fêiseres e campos de força não tiveram efeito, mas juro que se não esclarecerem a razão de estarem aqui, encontrarei um modo de confina-los em uma cela até que cheguemos a Cão Maior. Não vou aceitar clandestinos em minha nave, nem mesmo se forem Q.

— Q? – Disse o alienígena alto, com sua voz fina. – Não somos Q!

— Criatura ignorante. – Disse o alienígena baixo, suspirando.

— Escute, humano. – Continuou o alienígena alto, de maneira quase impaciente, mas em tom de quem está falando com uma criança. – O universo não está dividido apenas entre bípedes de cérebro pequeno como vocês e entidades de poder imensurável como os Q. Por exemplo, enquanto eles são imortais e viajam pelo espaço-tempo a bel prazer com um simples estalar de dedos, nós vivemos apenas algumas dezenas de milhares de anos e temos a capacidade de nos transportar para qualquer lugar, desde que esteja em nosso campo de visão. Foi assim que, há muito tempo, nos transportamos para aquela nave que veio de Cão Maior para a sua galáxia utilizando uma propulsão semelhante à sua, e foi assim que nos transportamos da estação Catadupa para a sua nave e então para este centro de comando grosseiro. Se isso o deixa tranquilo, pense em nós como passageiros pegando uma carona de volta a Cão Maior.

— Vocês alegam ter vindo de Cão Maior. – Disse Shion, intrigada. – Podem provar?

— É inútil. – Disse o alienígena baixo para seu companheiro, parecendo visivelmente entediado com a situação.

— Aposto que consigo fazer com que cessem as hostilidades contra nós. – Retrucou o alienígena de voz fina.

— Feito. – Concordou o outro, fazendo um gesto com a mão esquerda.

Após respirar fundo, o alienígena de voz fina continuou:

— Vocês não são os únicos a terem descoberto este movimento cósmico que chamam de Pêndulo. Ao longo das eras, há registros de mais de uma espécie que desenvolveu tecnologia semelhante, uma delas há aproximadamente seis mil anos. Era uma nave gigantesca, feita para abrigar toda uma espécie que fugia da iminente aniquilação por parte de uma raça hostil. Eu e meu amigo estávamos fazendo algumas apostas do outro lado e acabamos apostando sobre o sucesso da missão deles. É claro, a única forma de descobrir o ganhador seria viajando com eles, e foi assim que acabamos em sua galáxia. – Ele parou, olhando para cima como quem busca uma lembrança quase perdida. – Eles se estabeleceram no primeiro planeta habitável que encontraram, aquele ao lado da sua estação espacial Catadupa. Foi tedioso por séculos.

— O planeta Catadupa III não é habitável. – Comentou Shion, ainda duvidando da explicação – E não há registros de que exista ou tenha existido uma civilização lá.

— Você deve procurar mais fundo se pretende encontrar vestígios de uma civilização que vive quilômetros abaixo da superfície, utilizando-se da energia geotérmica do planeta. – Explicou o alienígena de voz fina, como se fosse algo óbvio. – Embora eles já estejam extintos há séculos. Perdi essa aposta, poderia jurar que eles superariam a escassez de recursos após a guerra civil.

— Morreram todos de fome. – Completou o outro alienígena, satisfeito, batendo no bolso de seu casaco, aparentemente cheio de fichas.

— Então apostas são as únicas coisas importantes para vocês? – Perguntou Chelaar, enrugando a testa. – Confesso que é uma forma muito criativa de desperdiçar dezenas de milhares de anos de vida.

— Apostas... Exploração... qual a diferença? – Retrucou o alienígena, dando de ombros. – Aos nossos olhos, vocês é que estão desperdiçando suas vidas.

— Considero que isto basta como identificação. – Interrompeu o capitão Vernon. – Mas ainda preciso que esclareça melhor suas intenções para esta nave e esta missão.

— Estamos apenas voltando para o lugar de onde viemos e, uma vez lá, tomaremos nosso próprio rumo e vocês estarão livres para jogar fora suas curtas vidas com essas explorações que tanto amam. – Falou o alienígena, com um sorriso irônico.

O capitão trocou olhares com Shion, o chefe de segurança Da’Far e o conselheiro, ponderando em silêncio por alguns segundos. Por fim, falou em tom firme:

— Não temos meios para confirmar a veracidade do que dizem, mas não creio que sejam uma ameaça para esta nave. Sendo assim, permitirei que continuem conosco até que saiamos do movimento pendular, o que pode acontecer dentro de dois dias ou dois meses, ainda não sabemos. Até lá, ficarão em aposentos isolados do resto da tripulação, com monitoração constante, fui claro?

— Não será necessário, capitão. – Disse o alienígena, em um tom surpreendentemente educado. – Nós apreciamos mais a vista do lado de fora. – E, recebendo novamente as fichas entregues de mal gosto pelo seu companheiro, continuou. – A propósito, vocês sairão do pêndulo dentro de cinco dias.

— Aposto que Mmaauuyyhhaa estará nos esperando do outro lado. – Sugeriu o alienígena de voz grave.

— Feito. – Concordou o outro, fazendo um gesto com a mão esquerda.

Em seguida, os dois olharam pela tela principal e desapareceram, reaparecendo instantaneamente do lado de fora da ponte, onde seguiram caminhando pelo casco externo da nave até sumir de vista.

— Mal deixamos o quadrante alfa e já temos uma boa história para contar. – Sorriu o capitão. – Sr. Da’Far, mantenha um conjunto de sensores focados em nossos passageiros e programe um alerta amarelo para o caso deles se transportarem para o interior da nave. Quero saber imediatamente se isso acontecer. Não obstante, manteremos alerta azul até deixarmos o pêndulo.

— O que segundo eles será daqui há cinco dias. – Comentou Shion. – E algo me diz que eles estão corretos.

— Veremos. – Disse o conselheiro.


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