Jornada nas Estrelas: Iguaçu escrita por Laertes Vinicius


Capítulo 15
O Não-Espaço




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/797315/chapter/15

A USS Iguaçu finalmente chegou aos limites da região chamada de Não-Espaço, sendo recepcionada cordialmente por uma nave patrulha da espécie attettana, que a escoltaria até a estação comandada pela coordenadora Sum Lattenara. Dentre todas as descobertas extraordinárias e fenômenos singulares vivenciados na galáxia anã do cão Maior, a mais intrigante, sem dúvidas, estava diante deles.

— Eu imaginava que teríamos uma definição melhor para isso do que “Não-Espaço”. – Disse Chelaar, olhando fascinada para a imagem azul clara projetada na tela principal. – Mas agora percebo que essa é a descrição perfeita.

— Alguma resposta da sonda que enviamos? – Perguntou Shion.

— Negativo. – Respondeu a alferes Harman.

— Comandante Chelaar, algum palpite? – Perguntou Vernon.

— Não, senhor. – Respondeu Chelaar, franzindo o cenho. – Ainda não encontrei nenhum modo de obter informações do que há além do limiar.

— Talvez nossos novos amigos aceitem compartilhar seu conhecimento sobre o Não-Espaço conosco. – Disse o Vernon. – Alferes Kwa, quanto tempo até a estação turística?

— Trinta e seis minutos, senhor. – Respondeu Kwa.

— Comandante Chelaar, reúna-se com a equipe de ciências e comece o estudo do Não-Espaço imediatamente. – Ordenou o capitão.

— Sim, senhor. – Disse Chelaar, empolgada com a oportunidade de estudar um fenômeno daquela magnitude.

— Se este lugar for tão insólito quanto aparenta, assim que voltarmos para a Via Láctea teremos que adaptar uma das áreas de carga para armazenar os prêmios e condecorações que receberemos pelas descobertas. – Comentou Shion, sorrindo.

Em meio a um grande fluxo de naves e cargueiros, a USS Iguaçu chegou à estação espacial turística gerenciada por Lattenara e seus sócios. Estendendo-se verticalmente por exatos três mil seiscentos e quatro metros, a impressionante construção possuía o formato semelhante ao de um cajado, com a ponta curvada em um grande arco. O material que cobria a superfície da estação refletia foscamente o azul claro do Não-Espaço e das naves ao seu redor, proporcionando um espetáculo de cores e luzes.

— Recebemos autorização para atracar na doca 8, anel de atracação primário. – Informou Giulia.

— Agradeça a gentileza, mas informe que vamos manter órbita, ao menos por enquanto. – Disse Vernon. – Solicite coordenadas para transporte e estude os protocolos necessários, repassando-os a todos os tripulantes.

— Sim, senhor. – Disse Giulia.

— O que tem em mente, capitão? – Perguntou Nhefé.

—Acredito que manter a Iguaçu atracada à estação seja um desperdício, pois, para estabelecermos relações com eles, basta que transportemos a bordo nossa delegação, equipes de intercâmbio e demais interessados em aprender sobre estes povos. – Explicou Vernon. – Enquanto isso, a nave poderá examinar o Não-Espaço mais de perto.

— Senhor, a coordenadora Lattenara está nos chamando. – Disse Giulia.

— Na tela. – Disse Vernon.

— Bem-Vindo à Estação Não-Espacial Cetro, capitão Vernon. – Saudou a attettana. – Soube que preferiu não atracar sua nave, há algum problema?

— De modo algum. – Respondeu o capitão, cortês. – Acontece que boa parte da tripulação está muito excitada com a descoberta do Não-Espaço, e anseia pela oportunidade de aprender mais sobre ele.

— Eu compreendo. – Disse Sum Lattenara. – Muitos vêm até aqui apenas para contemplar a beleza do maior mistério científico do quadrante, então não me admira que sua tripulação também esteja interessada.

— É um fenômeno sem precedentes para nós. – Disse Vernon. – Mas alguns de nós, é claro, estão igualmente interessados em conhecer sua estação e os povos que a visitam. Pretendo me transportar a bordo assim que obtivermos a liberação do seu chefe de operações.

— Considere seu transporte autorizado. – Disse a coordenadora. – Pedirei que encaminhem as coordenadas do salão de transportes norte, reservado para uso de embaixadores e clientes especiais.

— Muito obrigado. – Agradeceu o capitão Vernon.

— Aguardarei o senhor no centro de operações. – Disse a alienígena. – Lattenara desliga.

Vernon se virou para Nhefé, levantando uma sobrancelha.

— A oferta de amizade dela parece legítima. – Disse o conselheiro. – Além do mais, a pluralidade de naves e espécies presentes nas adjacências da estação indica que as possibilidades de uma emboscada são mínimas.

— Isso basta, para mim. – Disse Vernon, levantando-se. – Imediato, o comando é seu. – Ele fez um gesto para que Nhefé, Da’Far e Giulia o seguissem. – Leve a Iguaçu para o Não-Espaço e me mantenha informado.

— Sim, senhor. – Disse Shion.

O capitão Vernon e outros vinte e dois tripulantes se transportaram para a estação turística, rematerializando-se no luxuoso salão de transportes norte. O ambiente era amplo e quase totalmente revestido em madeira entalhada, com tapeçarias e vasos ricamente decorados ao longo das paredes, além de uma grande fonte de água cristalina em formato de ânfora, que ficava no ponto exato entre as duas saídas. Um grupo formado por quatro alienígenas de espécies diferentes, um deles dendroniano e outro attettano, estava a postos para receber os visitantes, dando-lhes as boas vindas e fazendo um breve registro de suas identidades.

Assim que as formalidades foram concluídas, o capitão dispensou a maioria dos tripulantes, com exceção apenas de Nhefé, Da’Far e Giulia. Enquanto os oficiais da ponte visitariam o centro de operações a convite da coordenadora Lattenara, os demais estariam livres para explorar a estação como quisessem, desde que respeitadas as diretrizes de primeiro contato.

— Por aqui, senhores. – Disse o alienígena attettano, conduzindo-os por um largo corredor.

— O comandante Hashimoto adoraria esse lugar. – Comentou Giulia.

— Ele terá tempo de sobra para explorar esta estação. – Disse o capitão Vernon. – De fato, pretendo que todos os tripulantes possam vir a bordo em algum momento, uma vez que pretendo permanecer aqui por pelo menos cinco dias.

Guiados pelo anfitrião alienígena, eles tomaram um elevador panorâmico muito elegante, que contava com uma impressionante vista para o Não-Espaço.

— A divisa está há aproximadamente onze milhões de quilômetros da estação. – Informou o alienígena. – É uma unanimidade entre os povos desta região que este é o ponto mais bonito do Não-Espaço, pois suas cores são mais vivas e brilhantes do que em qualquer outro ponto conhecido.

— Fascinante. – Disse Vernon.

— Muito sábio construir uma estação turística aqui. – Comentou Nhefé.

— Para dizer a verdade, não sabemos quem construiu a estação. – Disse o alienígena. – Alguns de meu povo a encontraram há oitenta e nove anos, completamente abandonada e sem nenhum componente de tecnologia ou registro que pudesse dar uma pista sobre seus detentores originais. Desde então, temos enriquecido cada centímetro dela com a arte e o talento dos povos dos sete mundos amigos, e ela se tornou símbolo da paz e das nossas conquistas.

— Sete mundos amigos? – Repetiu Giulia. – Lembro-me que os dendronianos que encontramos mencionaram que faziam parte de uma aliança, mas eles a chamaram de outra forma.

— Existem definições diferentes, de fato. O nome oficial é União Interplanetária, mas, de qualquer forma, trata-se uma aliança entre meu povo e as demais espécies que os senhores verão pela estação. – Explicou o alienígena, fazendo um gesto com a mão esquerda. – Nós deixamos nossas desavenças e conflitos de lado para que juntos pudéssemos alcançar algo que não seríamos capazes de alcançar divididos.

Nhefé e Giulia se entreolharam, admirados.

— O que você diz carrega muitas semelhanças com a história da Federação dos Planetas Unidos. – Disse o capitão Vernon. – A cooperação iniciada por quatro povos, humanos, vulcanos, andorianos e tellaritas, serviu de base para o que é hoje uma aliança formada por milhares de mundos e espécies diferentes.

— A coordenadora Lattenara ficou admirada quando viu que havia mais de uma espécie a bordo de sua nave, e que todas pertenciam à mesma Federação. – Disse o alienígena, abrindo a porta do centro de operações da estação. – A chegada da nave estelar Iguaçu representa a realização de um sonho para nossa aliança e...

— É a prova de que, alicerçados nos ideais corretos, podemos construir algo maior do que nós mesmos. – Disse a coordenadora Lattenara, aproximando-se deles e fazendo uma leve reverência. – Bem-vindos ao centro de operações da Estação Não-Espacial Cetro.

Com quase quinhentos metros quadrados e uma abóbada de vidro que permitia vislumbrar o Não-Espaço, o centro de operações não possuía tanto requinte quanto o salão de transportes norte ou os corredores da estação, mas era muito bem organizado. Dezenas de pessoas de várias espécies, a grande maioria delas attettanos, controlavam as mais diversas funcionalidades da estação, tais como comunicações, eventos recreativos, excursões, sistemas ambientais e disposição de pessoal.

— Permita-me apresentar o senhor Ymomo. – Disse Lattenara, indicando o alienígena atarracado que se aproximava deles.

A estrutura corporal de Ymomo lembrava um ovo, inclusive com ausência de pescoço e com o cocuruto de sua cabeça sendo pontudo e desprovido de cabelo. Seus braços e pernas eram desproporcionalmente magros, e tanto seus pés quanto os dedos de sua mão eram muito compridos, estes últimos quase encostando no chão. Ele vestia um elegante terno xadrez e sorria alegremente.

— Saudações, nobres viajantes! – Exclamou ele. – Regozijamo-nos com vossa presença em nossas humildes instalações.

— É uma honra estar aqui, e devo dizer que suas instalações são deslumbrantes. – Disse Vernon, polido e, em seguida, fez um gesto na direção de seus colegas. – Estes são Kómóg Nhefé, conselheiro da nave, tenente comandante Sinel Da’Far Sinel, chefe de segurança, e subtenente Giulia Naggi, oficial de comunicações.

— É um prazer conhece-los, nobres oficiais. – Disse Ymomo, fazendo uma reverência. – Em nome do povo eggoniano, eu lhes dou as boas sortes de uma chegada auspiciosa.

— O prazer é nosso. – Disse Nhefé, retribuindo a reverência. Da’Far e Giulia imitaram o gesto.

— Ymomo é o responsável pela construção e desenvolvimento do Restaurante Finito. – Informou Lattenara.

— Restaurante Finito? – Perguntou Vernon.

— Oh, sim! A obra prima da culinária e da tradição eggoniana. – Começou Ymomo, com seus olhos brilhando. – Minha espécie preza muito pela excelência gastronômica e pela exclusividade na degustação dos preparos e, especialmente, dos momentos. Afinal, de que vale um prato delicioso se o momento em que ele é saboreado não proporciona uma experiência igualmente memorável? – Ele estufou o peito. – No Restaurante Finito nós proporcionaremos ambos e, durante a única noite em que o restaurante existirá, memórias inesquecíveis serão confeccionadas, marcando esse dia para sempre em nossa história.

— O restaurante ficará aberto durante apenas uma noite? – Perguntou Giulia, curiosa.

— Sim, minha cara, e mais do que isso! – Disse Ymomo. – Ele existirá apenas por uma única noite. Será destruído assim que o último cálice de encerro for sorvido.

— Esta é uma prática bastante incomum. – Comentou Nhefé.

— Em meu planeta natal, consideramos que a existência de elementos tangíveis relacionados a lembranças é um fator determinante para o seu valor, ou seja, quanto menos objetos, cenários e recordações materiais, mais pura é a memória. – Explicou Ymomo. – Ao contrário de todas as outras espécies que conhecemos desde que passamos a explorar o espaço, não temos o costume de dar presentes em aniversários, casamentos, graduações e despedidas, e nem conservar itens de nossa infância ou de entes queridos que se foram. Na verdade, é nossa tradição destruir todos os objetos pessoais daqueles que partem.

— Fascinante. – Disse Nhefé. – Mas eu me pergunto como sua espécie procede em situações onde a lembrança é vinculada a uma condição impossível de se destruir, como, por exemplo, um belo pôr-do-sol, ou então uma memória ligada tão somente a uma pessoa?

— Sempre me perguntam isso. – Sorriu Ymomo. – E a resposta é que nossas tradições e costumes se desenvolveram como algo além da existência da natureza e dos indivíduos. Assim, não sentimos a necessidade de matar a pessoa amada ou secar um oceano para conservar a pureza de um encontro à beira-mar, por exemplo. Existem diversas correntes filosóficas sobre o assunto, e a grande maioria delas considera que nem a natureza e nem as pessoas são as mesmas duas vezes, ao passo que um objeto é apenas aquilo que foi feito para ser e nada mais. Uma noite enluarada, o vento nas palmeiras e o sorriso de alguém jamais serão exatamente iguais e, por isso, a existência deles é, de certa forma, destruída no momento seguinte à criação da lembrança.

— Entendo. – Disse Giulia, admirada com aquela cultura tão diferente. – Algumas percepções são naturalmente únicas, enquanto uma taça ou um broche, por exemplo, representam elos preservados com o passado e com as memórias de um momento específico.

— Creio que vá além disso, subtenente. – Disse Nhefé, pensativo. – Um objeto é capaz de se tornar a personificação de uma lembrança e, consequentemente, converte-se em um elemento totalmente contrário à noção de pureza, estabelecida pelos eggonianos, para suas lembranças.

— Exatamente, nobre conselheiro. – Disse Ymomo, satisfeito com a compreensão de Nhefé sobre sua espécie.

— Conte-nos mais sobre seu restaurante, senhor Ymomo. – Disse o capitão Vernon.

O alienígena estufou o peito, orgulhoso.

— Ao longo de minha vida eu sempre persegui o ideal da lembrança perfeita, proporcionando aos meus clientes a chance de viverem experiências únicas e inimitáveis e, com este restaurante, chegarei mais próximo desse ideal do que qualquer eggoniano. – Começou ele. – Planejei todos os detalhes para serem meticulosamente exclusivos. Talheres, utensílios de cozinha, mesas, decorações, tudo será descartado após uma única utilização. Da mesma forma, o contrato de cada cozinheiro, garçom e responsável pelo entretenimento especifica que apenas uma função poderá ser executada, sendo imediatamente demitido logo após a realização da mesma.

— Quer dizer que um garçom anota apenas um pedido, entrega na cozinha e seu contrato é sumariamente encerrado? – Perguntou Giulia.

— Exato, assim como cada músico executará apenas uma canção e cada cozinheiro preparará apenas um prato. – Respondeu Ymomo. – Nossa escala de trabalho conta com três mil e vinte e quatro pessoas, cuidadosamente organizadas e dispostas de modo a atender todas as necessidades dos clientes sem precisar repetir uma única atividade. Será uma experiência sem igual, e as lembranças daqueles afortunados em participar dela terão um valor verdadeiramente inestimável!

— E quando será o grande jantar? – Perguntou o capitão Vernon.

— Daqui há seis dias. – Respondeu Ymomo. – Estou supervisionando pessoalmente os últimos detalhes, pois muitos convidados chegarão a partir de amanhã.

— A maioria de sua própria espécie, eu suponho. – Falou Nhefé.

— De fato, pois poucos além dos eggonianos são capazes de apreciar o que estamos prestes a realizar. – Disse Ymomo. – Todavia, como é de costume em nossa União Interplanetária, a coordenadora Lattenara e alguns outros cidadãos ilustres se farão presentes. – Ele juntou as mãos nas costas e olhou para Vernon. – Capitão, sendo o senhor o representante da Federação dos Planetas Unidos nesta galáxia, e diante da importante relação de amizade que iniciamos, gostaria de lhe convidar, e a outros dois membros de sua tripulação à sua escolha, para nosso grandioso e memorável evento a se realizar no Restaurante Finito.

— Será uma grande honra, senhor Ymomo. – Respondeu o Capitão, fazendo uma leve reverência.

— A honra será nossa. – Disse Ymomo, retribuindo a reverência.

— Agora que o convite foi feito, permita-me mostrar aos nossos convidados o comando de nossa estação. – Disse a coordenadora Lattenara, que até então ouvira a conversa pacientemente.

— Como desejar, coordenadora. Voltarei imediatamente à minha inspeção dos resfriadores, preciso garantir que tudo esteja perfeito antes que os carregamentos de banana-bronze cheguem. – Disse Ymomo, polido. – Com licença, senhores.

O capitão Vernon, Nhefé e Giulia se despediram do alienígena com um aceno de cabeça.

— Siga-me, capitão. – Convidou a coordenadora Lattenara. – Gostaria que o senhor visse nossos diagramas de afluência interna.

Vernon assentiu, seguindo a alienígena que se movia à passos largos em direção a um grande painel lateral.

— Ymomo foi muito cortês em convidar três de nós para o evento em seu exótico restaurante. – Comentou Giulia para Nhefé, em voz baixa. – É uma pena que em situações como essa o protocolo da Frota exija que o capitão, seu primeiro oficial e conselheiro sejam os representantes da tripulação, pois eu fiquei realmente entusiasmada com a ideia.

— Talvez não seja apenas cortesia. – Disse o conselheiro Nhefé, também em voz baixa. – Afinal, nossa presença agregaria ainda mais valor aos memoráveis momentos vivenciados pela espécie eggoniana durante o prestigiado jantar.

— Faz sentido. – Concordou Giulia, sorrindo.

Os quatro oficiais da ponte passaram as horas seguintes conhecendo melhor a estação e respondendo a diversas perguntas sobre a Via Láctea, a história da Federação e da Frota Estelar, participando também de um coquetel de boas-vindas repleto de canapés muito saborosos, preparados por habilidosos cozinheiros eggonianos.

Há mais de dez milhões de quilômetros da Estação Cetro, a USS Iguaçu navegava pela orla do Não-Espaço em busca de respostas para os muitos mistérios científicos que aquele fenômeno único apresentava.

— Os dados fornecidos pela coordenadora Lattenara são equivalentes às nossas conclusões preliminares sobre o Não-Espaço. – Disse Chelaar, desapontada. – É incrível que um povo, mesmo com tecnologia relativamente obsoleta, tenha descoberto tão pouco sobre um fenômeno que conhece há séculos.

— A senhora deveria estar grata pela fragilidade da pesquisa científica feita por nossos novos amigos, comandante. – Disse Shion, comandando a nave da cadeira do capitão. – Isso nos dá a chance de descobrir as melhores coisas por nós mesmos.

Chelaar assentiu.

— A sonda número três cruzou o limiar do Não-Espaço e instantaneamente parou de transmitir, exatamente como as duas anteriores. – Informou a alferes Harman.

— Se eu estiver correta, os sensores das sondas seriam tão incapazes de penetrar o Não-Espaço quanto os da Iguaçu. – Explicou a tellarita. – Não existe subespaço além das bordas dessa nuvem azul, nem matéria, antimatéria, energia, radiação, gravidade ou qualquer coisa que faça parte da nossa física tradicional, pelo menos não que possamos detectar. – Ela balançou a cabeça. – Inclusive eu acredito que, se quisermos estudar esse fenômeno, teremos que desenvolver novos instrumentos e sensores do zero.

— Fascinante, mas acho que temos tempo para mais algumas tentativas. – Sorriu Shion. – Comandante Chelaar, prepare uma quarta sonda, desta vez com um circuito navegacional elíptico que a traga de volta para o espaço normal.

— Sim, senhor. – Disse Chelaar, ajustando os parâmetros da sonda diretamente do painel de sua estação. – Sonda lançada rumo 188 marco 12, com retorno programado para cinco minutos após cruzar o limiar.

— Excelente. – Disse Shion, cruzando as pernas. – Alferes Harman, alguma novidade dos sensores?

— Não, senhor. – Respondeu Harman. – Tentamos todos os ajustes conhecidos, mas sem sucesso.

— Wong e Manhaún estão trabalhando em novas modulações para os sensores, além de em um coletor quântico experimental. – Informou Chelaar. – Ele estará pronto para testes em menos de oito horas.

Alfredsson para ponte.— Ouviu-se a voz da oficial de transportes.

— Prossiga, tenente. – Disse Shion.

Falhamos em tentar transportar matéria do Não-Espaço, senhor.— Informou Alfredsson. – Parece ser virtualmente impossível focalizar em qualquer coisa além do limiar. É como se não existisse nada lá.

            – E os demais testes? – Perguntou Shion.

Tentei transportar uma massa de teste para coordenadas hipotéticas dentro do fenômeno, mas é impossível determinar se houve sucesso.— Respondeu Alfredsson.

— Aguarde novas instruções, tenente. – Disse a andoriana, mexendo as antenas. – Shion desliga.

— O Não-Espaço é mesmo muito teimoso. – Comentou Kwa.

— “Teimoso” é uma definição interessante. – Disse Chelaar. – É como se ele deliberadamente resistisse a todas as nossas tentativas de entende-lo.

— Passaram-se cinco minutos sem que houvesse o retorno da sonda número quatro. – Informou Harman.

— Parece que o único meio de obter respostas é mergulhando. – Comentou Rose.

— Segundo os dados fornecidos pela coordenadora Lattenara, várias expedições ao Não-Espaço foram feitas no passado, mas nenhuma nave jamais retornou. – Disse o tenente Gravil, ocupando a estação de Da’Far enquanto o chefe de segurança acompanhava o capitão Vernon na estação. – A maioria dos cientistas attettanos acredita que qualquer coisa que cruze o limiar é imediatamente destruída, e os que discordam disso creem que se trata de um lugar onde a tecnologia convencional não funciona e por isso as naves que entram ficam à deriva para sempre.

— Se ao menos o raio trator funcionasse além do limiar. – Lamentou Chelaar. – Poderíamos manter uma sonda ou até mesmo uma nave auxiliar a uma distância segura.

— Que outras vantagens tecnológicas temos em relação às naves das espécies nativas deste quadrante? – Perguntou Shion.

— Praticamente todos os nossos sistemas são consideravelmente mais eficientes, desde o controle de navegação aos relés acionadores dos bancos fêiseres. – Respondeu Chelaar. – Arrisco dizer que nossas naves auxiliares são melhores e mais bem equipadas do que a maioria das naves convencionais de grande porte utilizadas por eles.

— Isso não é o suficiente. – Disse Shion. – Precisamos de algo que nos leve além do que eles conseguiram ir em relação ao Não-Espaço.

Chelaar hesitou por um instante.

— Talvez a nossa vantagem não esteja em nossa tecnologia propriamente dita, mas em nossa capacidade de utilizá-la de modo mais... arrojado. – Disse ela, por fim.

— Continue. – Disse Shion, levantando-se e andando em direção à estação da oficial de ciências.

— Enquanto teorizávamos sobre a natureza do Não-Espaço, chegamos à conclusão que ele e o espaço convencional interagem de modo semelhante à água e o óleo. – Começou a tellarita. – Ao contrário de uma nebulosa, de uma singularidade exótica ou do próprio subespaço, o Não-Espaço não está contido ou interligado ao espaço comum, mas sim virtualmente tão separado que podemos determinar que ambos são duas coisas totalmente distintas. Esta é, teoricamente, a razão que tanto dificulta o envio e o retorno de sondas, ondas portadoras e feixes de energia.

— Fascinante. – Disse Shion.

— Ainda não temos como determinar a razão dessa divisão, nem sequer como confirmá-la de fato. – Continuou Chelaar. – No entanto, traçando um paralelo com a tendência natural dos fenômenos espontâneos em atingir seu estado de maior probabilidade, é como se a entropia da união entre o Não-Espaço e o espaço convencional não fosse máxima, tornando a interação entre eles tão impossível de acontecer quanto um perfume evaporado voltar ao seu estado líquido por conta própria. Diante disso, eu especulei que seria possível interagir com o Não-Espaço ao modificar o nosso próprio espaço, fazendo com que ele se contraia e se expanda controladamente. Em teoria, uma vez que o espaço convencional se contraia, o Não-Espaço automaticamente preencheria essa diferença, voltando em seguida às dimensões originais. – Ela fez uma breve pausa, respirando fundo. – O comandante Hashimoto acredita que é possível modificar ogivas de tricobalto e torpedos fotônicos para criar uma dispersão antigravitônica no limiar, provocando uma contração duradoura o bastante para que uma sonda, posicionada nas coordenadas a serem preenchidas pelo Não-Espaço, tivesse tempo de coletar dados antes que houvesse a expansão e consequentemente a estabilização dos limites naturais entre os dois espaços.

— É uma teoria interessante. – Disse Shion, levantando as sobrancelhas. – Mas como uma sonda poderia manter uma posição estática em relação ao Não-Espaço? Não é extremamente provável que ela seja carregada pela onda gravimétrica formada pela explosão e consequentemente permaneça em nosso espaço convencional?

— Foi nesse ponto que abandonamos essa teoria, senhor. – Explicou Chelaar. – Chegamos à conclusão que tal experiência só poderia ser realizada se, ao invés de uma sonda, uma nave auxiliar fosse colocada no ponto de impacto.

Shion mexeu as antenas e estreitou o olhar.

— Seria necessário o acionamento dos motores de impulso no momento exato da explosão, de modo que, em perfeita sincronia, a nave auxiliar atravessasse a onda gravimétrica e fosse engolida pela expansão do Não-Espaço. – Continuou Chelaar. – Em condições normais, esse tipo de manobra simplesmente salvaria a nave de um poço de distorção, lançando-a em segurança para o espaço adjacente. No presente caso, contudo, não havendo espaço convencional adjacente, seria igualmente necessário que a nave auxiliar efetuasse uma parada total no instante em que cruzasse o limiar, para que pudesse permanecer nas mesmas coordenadas teóricas após a expansão do espaço convencional.

— Seria possível programar uma das naves auxiliares para que efetuassem essas manobras sem a necessidade de um piloto? – Perguntou Shion.

— Poderíamos programá-las, é claro, mas o que houve com nossas sondas indica que sistemas autônomos são desativados ou não funcionam corretamente após cruzar o limiar. – Respondeu Chelaar.

— É muito arriscado, não sabemos o que há além do limiar. – Disse Shion, dividida entre a possibilidade de sucesso da operação e o perigo que ela representava ao tripulante que pilotaria a nave auxiliar. – Mesmo que seja possível sobreviver e navegar do outro lado, é provável que os controles do leme e dos motores falhem, impedindo a parada total necessária para retornar ao espaço convencional. Isso sem considerarmos outras questões mais complexas, como a própria existência ou não de tempo no Não-Espaço. Como podemos garantir que um minuto aqui não represente milhões de anos lá? – Ela fez uma pausa, mexendo as antenas. – E, levando em consideração os riscos e incertezas, não vejo que diferença haveria entre essa operação complexa e o simples envio de uma nave auxiliar pelo limiar.

— Até o momento, não sabemos o que efetivamente acontece quando se cruza o limiar. – Explicou Chelaar. – Cogitamos que a matéria de nosso espaço possa ser instantaneamente distorcida ou desintegrada, ou que as condições no interior do Não-Espaço sejam tão adversas que causem a morte imediata de qualquer organismo vivo e que, mesmo havendo sucesso, o retorno seja impossível. Em face disso, embora os riscos e incertezas sejam os mesmos de enviar uma nave auxiliar diretamente pelo limiar, a operação de contração e expansão do espaço convencional proporcionaria chances maiores de reavê-la para estudos, mesmo que ela fosse seriamente danificada e o piloto estivesse... estivesse morto.

— É um risco demasiadamente alto para um aumento tão inconclusivo nas chances de sucesso. – Disse Shion, balançando a cabeça. – Não pretendo ordenar que nenhum tripulante se exponha a tamanho perigo apenas para satisfazer nossa curiosidade científica.

— Isso não será necessário, comandante. – Disse Kwa, virando-se para Shion. – Eu me ofereço para pilotar a nave auxiliar.

A andoriana se voltou para ela, espantada.

— Fora de questão, alferes. – Disse Shion.

— Eu estou ciente dos riscos, senhor. – Insistiu Kwa. – Mas, para que a operação seja um sucesso, é necessário um piloto que esteja acostumado a navegar em anomalias e condições adversas. – Ela olhava para Shion com um olhar determinado. – E, afinal de contas, se tudo correr bem, eu serei a primeira pessoa a entrar no Não-Espaço e voltar com vida, e meu nome será lembrado para sempre.

Shion encarou Kwa por um momento, vendo nela o mesmo espírito aventureiro e a vontade de realizar grandes feitos que ela mesma possuía. A andoriana era capaz de entender perfeitamente o desejo de sua colega, pois em seu lugar, ela também teria se oferecido.

— Siga-me, alferes. – Disse Shion, indicando que preferia discutir a questão de maneira reservada.

— Sim, senhor. – Disse a miresita, deixando o leme e seguindo a primeira oficial até o gabinete do capitão.

— Srta. Kwa. – Começou Shion, encostando-se na beirada da mesa e cruzando os braços. – Desde que entrei para a Frota Estelar, ofereci-me para muitas missões perigosas e com poucas chances de sucesso. No entanto, raras foram as vezes em que meu oficial superior as permitiu, e confesso que isso me frustrou em diversas ocasiões. Agora, na posição de oficial comandante, sinto-me obrigada a manter em segurança a nossa piloto, tripulante de grande valor e peça fundamental para nosso retorno à Via Láctea.

— Senhor, eu... – Começou Kwa, mas Shion levantou de leve uma das mãos, ainda com os braços cruzados, indicando que não havia terminado de falar.

— Todavia, parece-me um grande equívoco negar essa oportunidade a você. – Continuou a andoriana. – Mas preciso ter certeza que sua decisão em se voluntariar não foi temerária, tomada apenas no impulso de realizar um feito heroico. – O olhar de resoluto de Kwa indicava que nenhuma ressalva a faria desistir da missão, mas Shion continuou falando mesmo assim. – O comandante Hashimoto levaria pelo menos uma hora e meia para aprontar as ogivas e, se eu autorizar esta operação, quero que você me dê sua palavra de que aproveitará esse tempo para refletir sobre todas as possíveis consequências, especialmente no caso de fracassarmos.

— Eu prometo que ponderarei cuidadosamente todas as hipóteses, senhor. – Disse Kwa, empertigando-se.

Shion contemplou a miresita por alguns instantes, não vendo nela quaisquer indícios de dúvida ou hesitação.

— Então está decidido. – Disse ela, por fim. – Daremos início à operação imediatamente. Dispensada.

Kwa fez uma leve reverência com a cabeça, virando-se para deixar o gabinete, e Shion a acompanhou com o olhar, como se estivesse vendo uma versão mais jovem de si mesma. Em seguida, a primeiro oficial também retornou à ponte, onde comunicou sua decisão de prosseguir com a operação que Chelaar havia apresentado.

Menos de duas horas depois, as ogivas de tricobalto, modificadas pelo engenheiro-chefe para provocarem uma poderosa dispersão antigravitônica, foram posicionadas na beirada do espaço convencional, apenas há algumas centenas de quilômetros do Não-Espaço. No ponto médio exato entre o limiar e as ogivas, a nave auxiliar Camauro, pilotada por Kwa, aguardava ordens.

— A explosão controlada deverá gerar uma contração espacial de trinta e cinco segundos, permitindo que a Camauro permaneça dentro do Não-Espaço por pelo menos trinta, mais do que o suficiente para que possamos ter uma ideia do que há do outro lado. – Informou Chelaar, observando as especificações transmitidas por Hashimoto.

— Iguaçu para Camauro. – Chamou Shion.

Prossiga, Iguaçu.— Ouviu-se a voz de Kwa.

— Acione os escudos traseiros, ligue os motores de impulso e prepare-se para impacto. – Disse a primeiro oficial. – Detonaremos as ogivas ao meu sinal.

Sim, senhor. — Disse Kwa.

Shion respirou fundo e disse:

— Tenente Rose, detonar.

Mesmo a uma distância segura, a USS Iguaçu sacudiu com a fortíssima explosão de antigrávitons, a qual produziu precisamente    o efeito teorizado por Chelaar, contraindo o espaço normal e permitindo a expansão temporária do Não-Espaço. A nave pilotada por Kwa rapidamente foi engolfada pela nuvem azul clara e desapareceu, fazendo com que todos os tripulantes da ponte prendessem a respiração e aguardassem ansiosos o desfecho da operação, dando-lhes a impressão de que o tempo passara a correr mais devagar.

— Dez segundos. – Informou Chelaar, monitorando a expansão do espaço normal, após a dispersão completa dos antigrávitons.

— Só mais um pouco. – Disse Shion, baixinho.

— Vinte segundos. – Informou Chelaar novamente, desta vez quase ofegante.

— Vamos, Kwa! – Exclamou Rose, torcendo que a miresita tivesse sido bem-sucedida em efetuar a parada total.

— Trinta segundos. – Disse Chelaar, e todos mantinham os olhos fixos na tela principal.

            Um modesto alerta sonoro precedeu a identificação visual da pequena nave auxiliar que, totalmente inerte, retornava ao espaço normal à medida em que o Não-Espaço se retraía aos seus limites originais.

            – Parece intacta, senhor. – Informou Chelaar, lendo as sondagens preliminares. – Mas está oito quilômetros abaixo do ponto onde foi atingida pela onda, e seu eixo direcional girou em mais de duzentos graus.

            – Iguaçu para Camauro. – Chamou Shion. – Informe.

Kwa falando. — Ouviu-se a voz da piloto, e os tripulantes da ponte sorriram e se entreolharam, aliviados. – Eu me sinto ótima e a nave está operando dentro dos parâmetros estabelecidos.

— Excelente, alferes. – Disse Shion. – Retorne para a Iguaçu imediatamente. A nave será inspecionada pelo comandante Hashimoto e você deve se dirigir à enfermaria para um exame médico padrão.

Sim, senhor.— Disse a miresita. – Kwa desliga.

— Alferes Harman, baixe os dados dos sensores da Camauro e comece uma análise imediatamente. – Ordenou Shion, levantando-se. – A comandante Chelaar e eu vamos à enfermaria para ouvir em primeira mão o que Kwa tem a dizer. Tenente Rose, a ponte é sua. – E saiu, seguida de perto pela tellarita.

            Pouco depois, tanto o exame médico de Kwa quanto à inspeção feita na Camauro confirmaram que era seguro permanecer no interior do Não-Espaço, mas essa constatação trazia consigo mais perguntas do que respostas.

            – Assim que a nave foi envolvida pelo Não-Espaço, todos os sistemas se apagaram. – Explicou Kwa, ainda na enfermaria, sob os olhares curiosos de Shion, Chelaar, Horvat e Yasna. – Eu não precisei fazer a parada total e até pensei que a tecnologia fosse inútil naquele ambiente. De certa forma eu estava correta, pois quando religuei os motores e os sensores, percebi que a esmagadora maioria deles era inútil, ora incapazes de efetuar leituras, ora apresentando resultados estrambólicos.

— As sondas que lançamos anteriormente devem ter se desativado assim que cruzaram o limiar. – Concluiu Chelaar.

— E quanto às naves alienígenas que outrora desapareceram? – Perguntou Shion. – Se o interior do Não-Espaço é seguro, por qual motivo elas nunca retornaram?

— Eu suponho que elas tenham se perdido lá dentro, senhor. – Respondeu Kwa. – Nenhum sensor de navegação foi capaz de determinar minha posição e, assim que eu passei, foi como se eu estivesse no meio de uma infinita nuvem azul clara. Arrisco dizer que, mesmo que o limiar estivesse há cinquenta centímetros de mim, eu não saberia identifica-lo.

— Faz sentido, pois a Camauro não retornou do ponto exato de onde havia entrado e nem mesmo possuía o mesmo ângulo de direção. – Disse Chelaar. – É provável que outras naves tenham dado meia volta no intuito de retornar ao espaço convencional e, sem saber, acabaram adentrando ainda mais no Não-Espaço.

— Você conseguiu identificar alguma outra coisa lá dentro? – Perguntou Shion.

— Nada, senhor. – Respondeu Kwa. – Era apenas uma imensidão azulada e...

Naquele instante, as luzes ambientes diminuíram e os sinais luminosos e sonoros do alerta vermelho tomaram a atenção de todos na enfermaria.

Ponte para comandante Shion! — Ouviu-se a voz do tenente Rose, apreensivo. – Captamos diversas naves-masmorra descamuflando em torno da Estação Cetro.

Shion mexeu as antenas, muito preocupada, e olhou para os colegas, que ficaram igualmente tensos com a declaração do oficial tático.

— Estou indo. – Disse a andoriana, tocando em seu comunicador. – Doutor, prepare-se para eventuais baixas, Chelaar, alferes Kwa, sigam-me.

No comando secundário da engenharia, um andar abaixo da central de operações da estação, o capitão Vernon e Da’Far ouviam atentamente a apresentação de um engenheiro attettano sobre as melhorias recém feitas no mantenedor gravitacional, as quais permitiam que o equipamento operasse com um consumo de energia mínimo. Em uma bela sala panorâmica na extremidade do anel de atracação superior, Nhefé e Giulia, acompanhados por um anfitrião dendroniano, observavam a chegada de várias naves trazendo turistas e suprimentos.

— O que é aquilo? – Perguntou Giulia, percebendo uma distorção visual se formando do lado de fora da estação, em meio às naves que aguardavam liberação para atracação.

Antes que o dendroniano pudesse responder, ela entendeu o que estava acontecendo e levou a mão ao comunicador, mas nada pode dizer, pois a estação estremeceu violentamente, forçando a oficial de comunicações a se segurar num móvel de madeira entalhado.

— Vernon para tripulação. – Ouviu-se a voz do capitão. – Naves-masmorra descamuflaram nas proximidades da estação e abriram fogo. Escudos e armas caíram. Preparem-se para abordagem e procurem se agrupar tanto quanto for possível. Usem os comunicadores apenas em situações de extrema urgência. Capitão desliga.

O dendroniano que os acompanhava estava apavorado, olhando fixamente para a horrenda nave que havia surgido ao lado do anel de atracação. Ela tinha um formado muito confuso, quase cúbico, mas com diversas reentrâncias e protuberâncias cobertas pelo que pareciam ser ossos.

— Conselheiro, o capitão e o subcomandante Da’Far estão apenas dois deques acima. – Disse Giulia. – Sugiro que nos juntemos a eles.

— Creio que seria mais aconselhável irmos diretamente à central de operações. – Disse Nhefé calmo, porém alerta. – O capitão certamente procurará uma forma de contatar a Iguaçu, e os comunicadores de longo alcance estão concentrados na central.

— De acordo. – Disse Giulia, dando uma última olhada pela janela panorâmica e vendo as pequenas naves e cargueiros que tentavam desesperadamente combater as monstruosas naves-masmorra.

Percebendo que não havia nada que pudesse ser feito para reestabelecer a condição psicológica do dendroniano, que havia se encolhido em um canto e choramingava de medo, os dois tripulantes deixaram a sala sozinhos. Rapidamente, e sem se deixar distrair pelas pessoas desesperadas que encontravam pelo caminho, Giulia e Nhefé logo alcançaram o elevador de acesso principal e dirigiram-se para a central de operações. Todavia, assim que a porta se abriu, eles perceberam que o ambiente inteiro estava dominado pela mesma escuridão que os sádicos haviam utilizado em Suffodio, semanas antes.

— Capitão! – Chamou Giulia, em voz alta.

— Estamos aqui! – Ouviu-se a voz do capitão Vernon, vinda de algum lugar em meio à escuridão. – Da’Far estava com o um termo-sonar e conseguiu agir a tempo de neutralizar todos os sádicos que se materializaram aqui na central de operações. Infelizmente o ataque desabilitou a maioria dos sistemas, incluindo os transmissores, e não pudemos contatar a Iguaçu a tempo.

— É altamente provável que ela tenha notado a presença das naves agressoras e esteja a caminho. – Disse Nhefé.

— Espero que sim, conselheiro, ela é a nossa única esperança. – Disse Vernon. – Enquanto isso, montamos uma linha defensiva na lateral do console de comunicações, para o caso de haver uma segunda onda de invasores. Unam-se a nós, Da’Far vai orientá-los com o termo-sonar.

Nhefé e Giulia tatearam na escuridão em direção ao grupo, seguindo as orientações do tenente comandante Da’Far. As mais de trinta pessoas presentes estavam abaixadas, dispostas em um semicírculo, atrás dos anteparos da estação de comunicações.

— Antes que as comunicações caíssem, recebemos informações de que as naves da guarda da estação e as naves civis estavam dando combate aos sádicos. – Informou Vernon.

— Sim, nós as vimos do saguão panorâmico. – Disse Giulia. – Mas infelizmente seu poder de fogo parecia muito inferior à frota atacante.

— Frota? – Ouviu-se uma voz desesperada em meio aos funcionários da estação agachados.

— Já houve relatos, embora raríssimos, de duas ou três naves-masmorra se unindo temporariamente em um ataque, mas não há precedentes de uma mobilização nessa escala. – Explicou a coordenadora Lattenara, com a voz trêmula. – É alarmante que eles tenham se preparado tão coordenadamente.

— Como eles se conseguiram se aproximar sem serem notados? – Perguntou Giulia.

— Até onde temos conhecimento, a camuflagem que eles utilizam é baseada em descontinuidade fásica. – Disse Lattenara. – Os sádicos costumam vagar até estabelecer um ponto de ataque, entram em estado de descontinuidade e, uma vez que a nave é desfaseada e se torna impossível de detectar, eles aguardam pacientemente, as vezes por meses, até que irrompem para o espaço novamente, surpreendendo suas vítimas.

— É um método muito eficiente para ocultar uma nave, mas a torna inútil para qualquer outra coisa. – Disse Vernon. – Uma vez fora de fase, eles sequer conseguiriam saber o que encontrariam quando retornassem ao normal, pois estariam sem sensores e sem propulsão.

— Eles são criaturas miseráveis, capitão. – Disse Coordenadora. – Ao contrário de todas as espécies que conhecemos, eles não temem os riscos de permanecer fora de fase durante tanto tempo, logo, é razoável supor que também não se importam com sua segurança no momento em que descamuflam suas naves.

— Mas como eles poderiam ter engendrado este ataque? – Insistiu Giulia. – Não há como uma naves-masmorra chegar até aqui sem ser percebida pelo perímetro de sensores de segurança da estação.

— Talvez eles tenham entrado em descontinuidade fásica enquanto ainda estavam se deslocando pelo espaço. – Disse Nhefé.

— O que está sugerindo? – Perguntou Vernon.

— É possível que estejamos presenciando a conclusão de uma operação executada durante meses, capitão. – Explicou Nhefé. – Suponha que os sádicos tenham estabelecido um curso para esta estação, em força de impulso, calculando o tempo exato que levaria para chegar e, só então, ainda em movimento, tenham ativado sua camuflagem. Assim, eles seriam capazes de navegar pelo espaço apenas com a inércia, saindo de sua descontinuidade fásica em um momento previamente determinado.

— Impossível! – Exclamou Sum Lattenara, aflita. – Isso exigiria planejamento de altíssimo nível e colaboração ostensiva, duas qualidades que os sádicos jamais demonstraram.

— Talvez eles tenham mudado seu modo de agir, ou talvez estejam agindo sobre uma liderança única. – Sugeriu Nhefé. – Esta pode ser a primeira de muitas ações ofensivas arquitetadas por eles.

Muitos dos alienígenas murmuraram, horrorizados e assustados, e alguns começaram a chorar. O capitão Vernon teria repreendido Nhefé com o olhar, pela sua falta de tato, mas não era capaz de ver nada naquela escuridão.

Shion para Vernon.— Ouviu-se a voz da andoriana pelo comunicador do capitão.

— Vernon falando! – Respondeu o capitão. – Informe.

O clima de desespero entre os alienígenas começou a se dissipar imediatamente, dando lugar a um sentimento de esperança.

Ordenei meia volta assim que detectamos o ataque à estação.— Explicou ela. – Estamos combatendo há cerca de cinco minutos, mas só agora conseguimos destruir o bloqueador de sinal que uma das naves possuía. — Ela fez uma pausa, ouvindo uma informação dada por um dos oficiais da ponte. – Ainda é impossível baixar os escudos para transportá-los, mas o retorno das comunicações permitirá que coordenemos melhor nossos esforços de contra-ataque.

— Excelente, imediato! – Disse Vernon. – Há uma grande quantidade de civis que precisam ser evacuados da estação, e precisamos garantir uma rota de fuga segura para suas naves e cargueiros. Quero que as proteja a todo custo, mesmo que isso signifique posicionar a Iguaçu entre elas e as naves-masmorra. Enquanto isso, faremos o possível para coordenar as naves de defesa attettanas e demais disponíveis para combate.

Entendido, senhor.— Disse a primeiro oficial. – Shion desliga.

— Subtenente Giulia, entre em contato com todos os nossos tripulantes na estação e verifique se houve alguma baixa. – Ordenou Vernon. – Sr. Da’Far, prepare-se para nos orientar para fora desta sala. Chegou a hora de adotarmos uma postura mais ofensiva.

Enquanto se aproximava em alta velocidade, os tripulantes da USS Iguaçu tiveram tempo para compreender o caos que se espalhava ao redor da estação, onde dezenas de pequenas naves combatiam desesperadamente as disformes naves-masmorra.

— Alferes Kwa, manobra ofensiva pétala. Quero que vejam nossa chegada. – Ordenou Shion. – Tenente Rose, o alvo prioritário é a nave que está portando o bloqueador de sinal. Dispare tudo o que tivermos contra ela e contra qualquer outra que tente defendê-la.

— Sim, senhor. – Disseram Kwa e Rose, em uníssono.

Como Shion havia determinado, a USS Iguaçu entrou diretamente no coração da batalha, disparando vigorosamente e obrigando os sádicos a desfazerem sua formação ofensiva. Após um rápido e intenso combate, eles tiveram sucesso em destruir o bloqueador de sinal, danificando seriamente a nave-masmorra que o portava.

— Temos nossas ordens. – Disse Shion à tripulação da ponte, logo após a conversa com o capitão Vernon. – Alferes Kwa, manobras ofensivas alternadas, vamos tentar empurrá-los na direção do Não-Espaço. Isso dará às naves civis uma janela de fuga.

— Sim, senhor. – Disse Kwa.

— A subtenente Giulia acaba de informar que nenhum tripulante da Iguaçu foi raptado pelos sádicos, senhor. – Informou Chelaar, aliviada. – Parece que os sádicos encontraram mais resistência do que esperavam.

Não demorou para que as pequenas naves e cargueiros, protegidos atrás da linha defensiva recém traçada, começassem a transportar civis da estação e empreendessem fuga para longe do combate. Todavia, à medida em que o caos se transformava em uma evacuação sistemática e o número de naves em órbita diminuía, mais difícil ficava a situação para a USS Iguaçu. Alvo de um número cada vez maior de naves inimigas, os escudos já não eram capazes de suportar todos os ataques, e relatórios de danos começaram a chegar de vários deques.

— Mude o padrão evasivo, alferes! – Disse Shion, após um impacto direto nos escudos dianteiros, resultando em uma grande chuva de faíscas ao lado do posto de comunicações da ponte.

Vernon para Shion.— Ouviu-se a voz do capitão.

— Prossiga, capitão. – Respondeu Shion.

A evacuação está completa, imediato. Além do nosso pessoal, restaram apenas os seguranças e a coordenadora Lattenara.— Informou Vernon. – Eles serão transportados para uma das naves de defesa dentro de alguns instantes, e em seguida vão formar um perímetro para que a Iguaçu possa baixar os escudos e nos levar a bordo. Teremos menos de cinco segundos.

— Entendido, senhor. – Disse a andoriana. – Alertarei as salas de transportes.

Vejo vocês em breve.— Disse o capitão. – Vernon desliga.

Menos de dois minutos depois, a nave attettana que estava em órbita com a missão de transportar a coordenadora Lattenara e os últimos alienígenas da estação, juntou-se às outras seis naves da formação defensiva. Com a precária cobertura oferecida pelas naves aliadas, a USS Iguaçu pode se aproximar da estação e baixar os escudos tempo suficiente para transportar seu capitão e os demais tripulantes.

— Levantar os escudos e retornar ao combate. – Ordenou Shion, olhando para a imagem na tela, que mostrava uma das naves de defesa sendo destruída por um disparo conjunto dos disruptores sádicos.

— Bom trabalho, imediato. – Disse o capitão Vernon, entrando na ponte e indo em direção à sua cadeira. Junto com ele estavam Nhefé, Da’Far e Giulia, que cumprimentaram os colegas com o olhar e assumiram seus postos.

— Senhor, as naves attettanas não vão resistir muito mais, uma delas acaba de ser destruída. – Informou Shion.

— Duas, senhor. – Informou alferes Harman.

— Srta. Kwa, coloque-se diante das naves-masmorra. – Ordenou o capitão Vernon. – Subtenente Giulia, transmita às outras naves que iremos dar-lhes cobertura para que escapem. Tenente Rose, dispare tudo que ainda tivermos. Vamos mostrar do que uma nave estelar é capaz quando acuada!

Numa manobra ousada e muito poderosa, a USS Iguaçu se colocou novamente como alvo das várias naves-masmorras restantes, mantendo-as ocupadas com seus fêiseres e torpedos fotônicos, enquanto recebia violentos golpes e sacudia intensamente, com cascatas de faíscas irrompendo de vários anteparos.

— Escudos a 7%! – Informou Da’Far.

— As naves aliadas conseguiram escapar, senhor. – Informou Giulia. – Entraram em dobra.

— Brecha no casco dos deques 3, 8, 9 e 11. – Informou a alferes Harman.

— Meia volta, Srta. Kwa! – Exclamou Vernon.

Um forte impacto fez com que Chelaar fosse arremessada de sua estação, caindo aos pés de Da’Far.

— Impacto triplo na nacele de estibordo! – Informou Rose. – Perdemos a propulsão de dobra.

— Senhor, não conseguiremos escapar em força de impulso! – Informou Chelaar, levantando-se. – E nossos escudos não resistirão por muito tempo!

— Talvez resistam tempo suficiente para chegarmos ao Não-Espaço! – Disse Kwa, enquanto manobrava a nave na tentativa de desviar dos disruptores sádicos.

Vernon olhou para Shion, que mexeu as antenas.

— Tivemos sucesso em um teste com uma nave auxiliar pilotada. – Explicou Shion, sem perder tempo com detalhes. – Mas ainda não está claro se há como voltar para o espaço normal sem que outra nave do lado de fora para auxiliar. Também não sabemos qual é a percepção que os sádicos têm do Não-Espaço, eles podem muito bem ser originários de lá.

— Escudos funcionando com força auxiliar. – Informou Da’Far. – Apenas suporte de vida e sistemas críticos em funcionamento.

— Um dia eu morrerei heroicamente, imediato. – Disse o capitão Vernon, aprumando-se. – Mas enquanto houver uma chance, eu pretendo continuar vivo. Srta. Kwa, trace um curso para o Não-Espaço, impulso total.

— Sim, senhor. – Disse Kwa.

— Escudos de ré ao máximo. – Disse Shion. – Tenente Rose, lance ogivas de tricobalto atrás de nós. Vamos dificultar a perseguição.

— Sim, senhor. – Disse Rose.

Com muita dificuldade, resistindo bravamente ao ataque brutal das naves-masmorra restantes, a USS Iguaçu alcançou a fronteira com o Não-Espaço em questão de minutos e, sem hesitação, mergulhou na nuvem azul clara. No instante seguinte, um apagão completo desligou todos os sistemas da nave, mas de pronto eles foram religados pela equipe de engenharia e pelos tripulantes da ponte.

— Sem sinal dos sádicos, capitão. – Informou Da’Far. – Os sensores estão confusos, mas um exame visual permite essa confirmação.

— Parece que eles não têm coragem de entrar no Não-Espaço. – Disse Vernon, levantando-se e fitando a imensidão azul clara mostrada na tela principal.

— Isso é algo que me preocupa profundamente, capitão. – Comentou Nhefé.

— E o que faremos agora? – Perguntou Chelaar. – A nave precisa de muitos reparos. Se voltarmos ao espaço normal assim seremos destruídos.

— Não temos escolha. – Disse Shion. – Ficaremos aqui até que Hashimoto conclua os reparos. Enquanto isso, estudaremos um meio de estabelecer uma navegação confiável e uma forma de retornar ao espaço convencional.

— Eu nem sei por onde começar, teríamos que construir muitas coisas do zero. – Comentou Chelaar. – A nave estará recuperada em questão de dias, mas pode levar meses até que consigamos desvendar as leis da física deste lugar.

— Então, comandante Chelaar, não há alternativa senão prosseguir com nossa missão original. – Sorriu o capitão Vernon. – Vamos explorar o Não-Espaço.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Jornada nas Estrelas: Iguaçu" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.