Jornada nas Estrelas: Iguaçu escrita por Laertes Vinicius


Capítulo 14
Abdução




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Assim que a energia de dobra foi restaurada, a USS Iguaçu prosseguiu em sua viagem pela galáxia anã do cão Maior, seguindo na direção da misteriosa região chamada pelos brasilanos de “zona diferenciada”. Apesar do incidente recente com os hologramas assassinos, o programa de treinamento de Da’Far não foi cancelado, e o capitão determinara que ele e Rose continuassem a selecionar e integrar os personagens que tivessem perfis compatíveis com o dos sádicos. Para a surpresa de Vernon, o número de voluntários para o treinamento subira consideravelmente após o incidente, demonstrando o desejo da tripulação em se preparar para situações como aquela.

— Soube que o comandante Hashimoto foi visitar Kwa na enfermaria, hoje à tarde. – Disse Vernon para o doutor Horvat. Eles estavam conversando em uma mesa do andar inferior do bar panorâmico que, devido ao horário, estava quase vazio.

— Amizades improváveis costumam ser as melhores. – Disse Horvat, levantando um dedo. – Não é verdade que Nhefé e Chelaar têm almoçado juntos às vezes?

O capitão Vernon assentiu, sorrindo.

— Eu me orgulho de como a tripulação tem se unido desde que viemos para Cão Maior. – Disse Vernon. – Isso é mais importante do que suas habilidades individuais, fichas de serviço e condecorações. Uma nave estelar é sustentada pela confiança e respeito entre seus tripulantes, e não pelo reator de dobra e pelos protocolos.

— Não deixe que os vulcanos o escutem dizer isso. – Riu Horvat.

O capitão sacudiu os ombros e encarou o doutor, estreitando o olhar.

— Sempre que observo a tripulação interagindo e criando laços de amizade, também sou capaz de notar quando há algum tipo de atrito. – Comentou ele. – E algo me diz que você e a doutora Brexdan ainda não encontraram um denominador comum.

Horvat coçou a cabeça e levantou as sobrancelhas, embaraçado.

— Eu respeito a doutora Brexdan. – Disse o médico. – Apenas não concordo com o jeito dela trabalhar.

— Se for algo que possamos resolver juntos, estou à disposição. – Ofereceu-se Vernon.

— Não creio que seja possível “resolver”, afinal ela é betazoide e isso não se muda tão facilmente. – Disse Horvat, desabafando. – E ainda por cima ela é a médica mais betazoide que eu já conheci. Ela se preocupa mais com as emoções e sentimentos de um paciente do que com sua pressão sanguínea ou suas reações bioquímicas à medicação.

— Deve ser difícil pensar dessa forma, sabendo que ela é capaz de sentir exatamente o que você está sentindo. – Comentou Vernon.

— Para minha sorte, eles sempre são muito compreensivos. – Disse o doutor, suspirando. – Eu juro que tento ser profissional, mas quando vejo os tratamentos complementares alternativos que ela aplica... – Ele balançou a cabeça em desaprovação. – Ontem mesmo ela permitiu que Kwa praticasse seus alongamentos matinais, apenas porque isso a deixaria mais feliz e confortável com o ambiente da enfermaria e, segundo Brexdan, fatores como esse aceleram a recuperação de um paciente.

O capitão Vernon apenas sorriu, deixando de emitir julgamentos sobre as divergências profissionais dos dois médicos. Nesse momento, Pepe, o barman, trouxe uma garrafa quadrada, contendo um líquido amendoado, e encheu o copo de Horvat, pois apenas o médico bebia.

— Eu nunca apreciei o licor de kanar. – Comentou o capitão.

— Este não é sintetizado. – Disse Horvat, saboreando a bebida. – Ganhei algumas garrafas durante uma missão humanitária na fronteira entre o Novo Império Cardassiano e a República Cardassiana dos Planetas Livres.

— Soube que a situação está muito complicada naquela região. – Disse o capitão. – A capacidade do Novo Império em suprir seus territórios com alimentos e medicamentos é mais precária do que os seus líderes querem admitir.

— Cardassianos. – Assentiu Horvat. – Seu orgulho é sempre superior à sua razão. Mesmo sendo nossos aliados, eles só aceitam nossa ajuda em situações extremas.

— Eu ainda era muito jovem quando a Federação mediou a divisão da União Cardassiana. – Disse Vernon. – Mas lembro que todos acreditavam que a RPCL se tornaria nossa aliada, e não o Novo Império.

— Sim, foi uma surpresa quando a RPCL fechou suas fronteiras e exigiu um acordo de não interferência. – Disse Horvat. – E pelo pouco que sabemos, a situação deles é muito melhor do que a do Novo Império.

— Vivemos em tempos onde os grandes impérios são apenas uma sombra do que já foram um dia. – Comentou Vernon, reflexivo. – O Império Romulano do Ocidente perde força a cada dia, enquanto o do Oriente se isola para manter seus territórios sob controle, e o Império Klingon tem sorte de ainda existir após as tantas guerras insustentáveis travadas pelo imperador Kawroth, o Insano.

— Até mesmo a Hegemonia Gorn está retraída desde que a Federação assumiu o controle e a defesa do Corredor Encarniçado e integrou os planetas klingons separatistas. – Acrescentou Horvat. – Agora é indiscutível que nos tornamos, de longe, a verdadeira hegemonia dos quadrantes alfa e beta.

— Os Breens parecem não concordar com isso, doutor. – Disse Vernon, inclinando-se e apoiando um braço na mesa. – Eles estão expandindo seu território a cada ano e, depois da tomada de Ferenginar, o comando da Frota prevê que uma guerra contra eles seja inevitável a médio prazo.

— Isso seria lastimável – Disse Horvat. – Pela primeira vez desde que a Federação foi fundada, há quase trezentos anos, nós vivemos um período de mais de duas décadas sem haja alguma guerra declarada.

— E faremos o que estiver ao nosso alcance para manter essa paz duradoura. – Disse Vernon.

O doutor Horvat levantou seu copo de kanar em um brinde simbólico.

Na manhã seguinte, os sensores de longo alcance da USS Iguaçu detectaram a aproximação de três naves alienígenas, todas vindas de um ponto da borda da chamada “zona diferenciada”. A alferes Kwa, que havia recebido alta e estava novamente no controle do leme, desacelerou a nave a pedido do Capitão Vernon.

— Estão em alcance visual. – Informou Da’Far.

— Na tela. – Ordenou Shion.

As três naves eram muito diferentes entre si. A maior delas, quase dez vezes maior do que as outras, possuía o formato alongado e repleto de sulcos longitudinais em seu casco azul escuro, além de duas robustas naceles de dobra ventrais. A nave que viajava no centro da formação era uma esfera perfeita e completamente branca, com quatro naceles cônicas saindo simetricamente de seu hemisfério superior. A terceira nave, por sua vez, possuía um módulo central disforme, conectado a diversas torres piramidais alaranjadas, e nenhuma nacele de dobra visível.

— Abra um canal para a nave posicionada ao centro. – Disse Vernon.

— Sim, senhor. – Disse a subtenente Barsotti. – Canal aberto.

— Aqui é o capitão Vernon da nave estelar da Federação Iguaçu. – Apresentou-se o capitão.

A imagem de uma alienígena pálida, muito magra e com os cabelos bancos, vestindo um requintado paletó bordô, apareceu na tela principal.

— Eu sou Sum Lattenara, coordenadora do Consórcio Integrado do Limiar. – Disse ela, educadamente, fazendo um gesto com sua mão esquerda desproporcionalmente robusta. – Perdoe-me, mas nunca ouvi falar em uma “Federação” antes, capitão. Por favor, pare sua nave e declare suas intenções nesta região do espaço.

— Parada total. – Disse Vernon para Kwa, e em seguida se levantou. – Senhora coordenadora, somos uma nave de exploração científica da Federação dos Planetas Unidos, e viemos da Via Láctea com o objetivo de conhecer novos mundos e fazer contato amigável com novas civilizações. – Ele percebeu que a alienígena ficou espantada. – Buscávamos estudar a zona diferencial.

— Zona diferencial? – Estranhou ela. – Está se referindo ao Não-Espaço? – Um dos alienígenas cochichou uma informação no ouvido de Lattenara. – Oh, entendo. É assim que os brasilanos chamam o Não-Espaço.

— Exato. – Concordou Vernon. – Foi deles que obtivemos essa designação para essa região.

— Os brasilanos são conhecidos por não saírem do seu espaço por décadas. – Disse Sum Lattenara. – E, francamente, poucos povos toleram o convívio com eles. Vocês devem ter muita paciência.

— Tudo em nome da diplomacia. – Disse Vernon, sorrindo. – Nós viajamos muito para estarmos aqui, e não vamos deixar algumas diferenças culturais interferirem em nossas relações com os povos que acabamos de conhecer.

— Já que é assim, o senhor e sua tripulação estão convidados a conhecer nossa estação turística na borda do Não-Espaço. – Disse a coordenadora Lattenara, fazendo uma reverência sutil. – Tenho certeza que muitas pessoas ficarão fascinadas com a chegada de visitantes tão inusitados quanto vocês.

— É um prazer ouvir isso, coordenadora. – Disse Vernon, polido. – Ficaremos satisfeitos em promover um intercâmbio cultural e, se a senhora desejar, sinta-se convidada a vir a bordo e nos conhecer melhor no caminho até sua estação.

— Confesso que fico tentada a aceitar o convite, pois há muitas perguntas que eu gostaria de fazer. – Disse Lattenara. – Mas temos muito trabalho agora que o Restaurante Finito está quase pronto, e preciso permanecer no meu posto.

— Compreendo. – Disse Vernon. – Neste caso, acompanharemos suas naves até o Não-Espaço.

— De acordo. – Disse Lattenara, mas algo no monitor em sua frente lhe chamou a atenção e ela fez uma breve pausa. – Perdoe-me se o deixei esperando, capitão, mas devo lhe informar que meus sócios estão acompanhando esta conversa de suas naves, e um deles me disse algo muito intrigante.

— Entendo perfeitamente, coordenadora. – Disse Vernon, mantendo a diplomacia. – Mas fiquei curioso, o que foi que seu sócio disse?

— Que viu outra pessoa da sua espécie há cerca de uma semana, em uma lua no sistema Pleummona. – Respondeu Lattenara.

Shion moveu as antenas, intrigada, e alguns tripulantes da ponte se entreolharam.

— Isso é muito improvável. – Disse o capitão Vernon. – Talvez tenha sido apenas alguém de uma espécie muito semelhante fisicamente.

— De modo algum, capitão, os pergâmi são excelentes fisionomistas, e o coordenador Ba-üd garantiu que essa pessoa usava um uniforme idêntico ao seu, nas cores preto e vermelho. – Concluiu Sum Lattenara.

— E há mais alguma informação a respeito dessa pessoa? – Perguntou Vernon.

— Parecia estar prestando serviços de engenharia no comando orbital da estação de mineração. – Respondeu ela, observando algumas informações em seu monitor. – É tudo o que sabemos.

— Gostaria de poder investigar isso. – Disse o capitão Vernon. – A que distância fica essa lua?

— Eu lhe enviarei as coordenadas exatas, mas não deve levar mais do que oito horas para chegar lá, contornando o cinturão de asteroides Quelcquoe Menor. – Disse Lattenara, solícita. – A estação de mineração é de propriedade de minha espécie e, se o senhor desejar, posso enviar uma mensagem subespacial para que eles o recebam adequadamente.

— Eu agradeceria muito. – Disse o capitão, sorrindo. – Creio que vamos atrasar nosso intercâmbio por mais um dia ou dois.

— Nós os aguardaremos. – Respondeu Lattenara, devolvendo o sorriso e encerrando a transmissão.

O capitão olhou imediatamente para Nhefé, que cruzou seus oito dedos das mãos.

— Acredito que o risco seja aceitável. – Disse ele. – Se o sócio de Lattenara for realmente um fisionomista tão habilidoso quanto ela diz, então temos um enigma em nossas mãos. – Ele se recostou em sua cadeira. – Também é possível que eles estejam preparando uma emboscada nessas coordenadas, agora que viram que o poder de fogo de suas três naves é inferior ao nosso.

— Imediato? – Perguntou o capitão, virando-se para Shion.

— Estou curiosa para resolver esse enigma. – Disse a andoriana.

— Então está resolvido. – Falou o capitão. – Srta. Kwa, marque um curso para a estação de mineração, dobra 6. Acionar.

Conforme a coordenadora Sum Lattenara havia dito, foram necessárias menos de oito horas de viagem para que a USS Iguaçu alcançasse o sistema solar Pleummona, encontrando rapidamente a lua onde estava instalada a estação de mineração. Em sua órbita, feita de um material muito branco, estava a estranha estação de comando, composta de centenas de pequenas esferas conectadas por cabos e tubos.

— Estão nos chamando. – Informou Barsotti. – Apenas áudio.

O capitão fez um gesto com a cabeça, indicando que o canal deveria ser aberto.

— Saudações USS Iguaçu, sou o chefe Mik Eddeoru. – Ouviu-se uma voz muito grave. – Recebi ordens de ajuda-los no que precisarem, mas infelizmente não poderei recepcioná-los na estação neste momento, pois estamos no meio de um delicado procedimento de repolarização da matriz gravitacional.

— Meu nome é capitão Vernon. – Disse ele. – Agradeço sua disposição em ajudar e, para não tomar seu tempo, irei diretamente ao assunto: um dos sócios da coordenadora Lattenara afirmou que viu alguém de minha espécie em sua estação de comando há alguns dias.

— Sim, alguns pergâmi estiveram aqui para inspecionar um carregamento de prata. – Disse a voz. – Eles devem ter visto aquela mulher estranha enquanto ela trabalhava no alinhamento dos bancos de dados.

— Estranha? – Insistiu Vernon. – Poderia especificar, por gentileza?

— Nunca vi ninguém da espécie dela antes. – Explicou a voz. – Ela chegou aqui em um cargueiro há pelo menos dez dias, contando uma história fantasiosa sobre viagem intergaláctica e algum tipo de agremiação entre planetas. Ela que precisava de uma nave auxiliar e estava disposta a trabalhar para comprar uma. – Um chiado perturbou a transmissão. – Eu não acreditei em nada, é claro, mas quando ela resolveu a pane criptográfica em nosso computador central, percebi que seu conhecimento era muito avançado e ofereci um acordo. Há dois dias ela concluiu os trabalhos que eu solicitei e partiu, levando consigo uma de nossas naves auxiliares e deixando melhorias impressionantes em nossa estação. Nossa eficiência de processamento subiu mais de 160%.

Vernon e Shion se entreolharam.

— Poderia nos dizer qual era o nome e a aparência dessa mulher, ou então nos encaminhar alguma imagem de registro? – Pediu o capitão.

— Ela se apresentou com Nadi. – Disse o chefe Eddeoru, em meio aos ruídos e chiados cada vez mais frequentes. – Não temos nenhum registro visual dela, mas era uma mulher jovem, com menos de 1,70m, pele corada e cabelos amarelos. Vestia uma calça preta e uma camisa vermelha, com um broche metálico no lado esquerdo do peito.

Shion moveu as antenas, espantada. Chelaar estreitou o olhar.

— O senhor poderia nos encaminhar as coordenadas da direção tomada pela nave dessa mulher? – Perguntou o capitão Vernon.

— Certamente, capitão, enviarei agora mesmo, antes que a interferência aumente. – Disse a voz. – Ela é uma criminosa procurada?

— Acredito que não. – Respondeu o capitão. – Mas estamos muito interessados em conhecê-la.

— Ela pode ser de grande ajuda para atualizar sistemas de bancos de dados e criptografia. – Disse Mik Eddeoru. – Eu até ofereci um cargo permanente em nossa equipe de tecnologia algorítmica, mas tudo o que ela queria era retornar para seus compatriotas.

— Agradecemos sua colaboração, chefe Eddeoru. – Disse Vernon, e se despediu, encerrando a transmissão.

Os tripulantes da ponte estavam intrigados com as descrições fornecidas pelo alienígena da estação de comando orbital.

— As coordenadas chegaram, capitão. – Informou Da’Far. – A nave auxiliar partiu na direção do sistema Suffodio.

— O que acha, conselheiro? – Perguntou Vernon.

— São coincidências demais para ignorarmos. – Disse Nhefé. – Embora a descrição física da mulher tenha sido insuficiente para definir sua espécie, devemos levar em consideração a descrição de suas vestimentas, além de seu conhecimento tecnológico avançado, menção a viagens intergalácticas, desejo em reencontrar seus iguais e o rumo tomado por sua nave, que coincide com nossa trajetória por Cão Maior. Em adição a isso, podemos interpretar “agremiação” como Federação.

— Mas como seria possível que um humano membro da Frota Estelar estivesse aqui em Cão Maior? – Perguntou Shion.

— Nossa tripulação está completa, com exceção do alferes Abaroa, é claro. – Disse Nhefé. – Então é altamente improvável que essa pessoa tenha alguma relação direta conosco.

A USS Iguaçu seguiu na mesma direção da nave auxiliar misteriosa, e os sensores não demoraram a encontrar uma assinatura de dobra compatível com as especificações transmitidas pelo comando orbital de mineração.

— Acredito que encontramos nossa nave, capitão. – Disse Da’Far. – Estamos em alcance de comunicações.

— Subtenente Barsotti, abra um canal. – Disse Vernon.

— Sem resposta. – Disse Barsotti, prontamente.

— As sondagens indicam uma forma de vida a bordo. – Informou Chelaar. – Os biosinais são compatíveis com os de uma fêmea humana.

— Parece que há algo de verídico neste enigma, enfim. – Disse Shion.

— Resta saber o que há de inverídico. – Perguntou o capitão Vernon. – Srta. Kwa, quanto tempo para interceptação?

— Dois minutos, senhor. – Respondeu Kwa.

— Capitão. – Chamou Chelaar. – Estou recebendo uma transmissão vinda da nave auxiliar. – Ela fez uma pausa, confusa. – A transmissão é direcionada diretamente para minha estação e utiliza um canal prioritário da inteligência da Frota para assuntos científicos.

— Como isso é possível? – Estranhou Shion.

— Na tela. – Ordenou o capitão, aprumando-se na cadeira.

A imagem de uma mulher, claramente humana, com cabelos loiros presos em um rabo de cavalo e vestindo um uniforme da Frota Estelar, divisão de comando, apareceu na tela principal.

— Capitão Vernon! – Exclamou ela. – Finalmente!

— Nós nos conhecemos? – Perguntou Vernon.

— Sou eu! Subtenente Giulia Naggi, oficial de comunicações da Iguaçu! – Respondeu a mulher, exasperada.

— Lamento, mas nossa oficial de comunicações é a subtenente Narcisa Barsotti. – Disse Vernon. – Deve haver algum...

— Não há engano algum, capitão, a pessoa que está no posto de comunicações da Iguaçu é certamente uma impostora! – Interrompeu Giulia.

— Isso é impossível, estou certo de que nunca vi você antes. – Disse o conselheiro Nhefé. – E minha memória é, para se dizer o mínimo, fotográfica. Se eu a tivesse visto uma única vez na vida, ainda assim eu me lembraria de você.

— E eu posso não ter a memória de um veniano, Giulia Naggi, mas minhas lembranças de vários anos de amizade e serviço ao lado da subtenente Barsotti são muito claras. – Afirmou Vernon.

— Eu não sei explicar quem é ela, por que tomou meu lugar ou como fez com que vocês todos se esquecessem de mim. – Disse Giulia. – Mas eu vou achar um meio de provar que estou dizendo a verdade!

O capitão Vernon fez um sinal para que Chelaar cortasse o áudio.

— Não acredito no que ela diz, mas não há dúvidas de que ela é humana e isso nos trouxe muitas perguntas e poucas respostas. – Disse ele.

— Sugiro que nós a transportemos e façamos um exame médico completo, além de um interrogatório mais detalhado. – Sugeriu o conselheiro Nhefé. – Assim, poderemos comprovar definitivamente sua natureza, bem como identificar vestígios de deslocamento temporal ou paralelos quânticos.

— Concordo com o conselheiro. – Disse Shion. – É possível que ela esteja fora de seu contínuo espaço-temporal e, portanto, acredite verdadeiramente no que diz. Trazê-la a bordo não acarretará nenhum risco para a Iguaçu, e nos deixará mais próximos de desvendar o mistério.

— O que acha, subtenente Barsotti? – Perguntou o capitão, virando-se para ela.

A oficial de comunicações pareceu confusa e surpresa com a pergunta.

— Senhor, eu realmente não sei o que pensar. – Disse ela, por fim. – Nunca imaginei que um dia alguém fosse aparecer nessas circunstâncias e dizer que eu não sou quem eu sou. Afinal de contas, eu sei quem eu sou e eu sei tudo o que vivi para chegar aqui.

— Entendo. – Disse o capitão. – Eu também não tenho dúvidas de que o seu lugar é aqui conosco, mas precisamos descobrir o que está acontecendo. – Ele fez outro sinal para que Chelaar voltasse a transmitir o áudio. – Nós deliberamos e...

— O senhor decidiu que me transportar a bordo não traria riscos à Iguaçu e que me submeter a exames médicos completos ajudaria a elucidar minha estranha presença em Cão Maior. – Disse Giulia, sorrindo. – Além de conhecer os procedimentos da Frota Estelar e também o seu método de comandar, capitão Vernon, eu sou muito boa em leitura labial.

— Então já sabe qual é nossa proposta. – Disse Vernon, sério.

— Sim, senhor. – Respondeu Giulia. – Concordo em ser transportada e submetida a qualquer exame que julguem necessário, pois isso apenas provará que estou falando a verdade.

— Veremos. – Disse o capitão Vernon. – Sr. Da’Far, posicione uma equipe de segurança na enfermaria e transporte nossa convidada diretamente para lá.

— Sim, senhor. – Disse o chefe de segurança.

Pouco depois, tomadas todas as providencias de segurança, Giulia foi transportada para a enfermaria e submetida a uma série de exames e sondagens executados pelo doutor Horvat, sob os olhares atentos do capitão Vernon e de Chelaar.

— Não há dúvidas de que ela é humana. – Disse Horvat, comunicando os resultados dos exames ao capitão e à oficial de ciências, em sua sala reservada. – Saudável em todos os aspectos físicos e neurológicos. Também não há indícios de deslocamento temporal e a assinatura quântica dela é idêntica à nossa. Ela definitivamente pertence ao nosso universo e ao nosso tempo.

— Da’Far não encontrou nenhuma referência a uma subtenente Giulia Naggi nos registros do computador. – Informou Chelaar. – Não há como ela estar dizendo a verdade.

— É claro, mas então como isso é possível? – Perguntou o capitão Vernon.

— Não tenho nenhuma teoria, senhor. – Disse Chelaar, balançando a cabeça.

— Então é hora de interrogá-la. – Disse Vernon, virando-se para deixar a sala e voltar à enfermaria.

Giulia estava em pé, ao lado da maca onde fora submetida aos exames, com uma expressão serena no rosto.

— Srta. Naggi. – Começou o capitão, aproximando-se dela. – O doutor Horvat detectou uma variância de fase incomum em seus padrões neurais, causada possivelmente por um distúrbio quântico, o que nos leva a crer que...

— Perdoe-me por interrompê-lo novamente, senhor. – Disse Giulia. – Mas eu sei que isso não é verdade. Eu o conheço o suficiente para saber quando está blefando.

— Não estou blefando. – Insistiu o capitão.

— O senhor fez o mesmo em Nova Gliese, quando capturamos a duplicata biocinética do embaixador Acutis. – Disse Giulia. – E fui eu que lhe dei essa ideia.

— Certo. – Disse Vernon, suspirando. – Já que a senhorita sabe tanto sobre nós e nosso passado, e nós não sabemos nada sobre você e o seu, está na hora de nos revelar um pouco de sua história. Por que não começa explicando de onde veio e como chegou aqui?

Giulia assentiu.

— A última coisa da qual consigo me lembrar é que estávamos negociando nossa passagem pelo espaço brasilano. – Disse ela. – Chelaar e eu almoçamos juntas no refeitório e em seguida eu fui até meus aposentos, mas assim que entrei, perdi a consciência. Quando acordei, estava numa espécie de câmara de bioestase em uma instalação deserta no interior de uma pequena lua.

— Que tipo de instalação? – Perguntou Vernon.

— Era semelhante a um laboratório, mas com tecnologia muito além das que encontramos até então em Cão Maior. – Explicou Giulia. – Havia centenas de pessoas nas mesmas condições de bioestase, de várias espécies diferentes, mas pelo que pude perceber, minha câmara foi a única que apresentou defeito e fez com que eu despertasse. Quando tive certeza de que eu estava sozinha, procurei uma forma de escapar e o fiz utilizando uma pequena nave auxiliar equipada com camuflagem. – Ela respirou fundo. – Se eu não fosse especialista em xenolinguística, jamais teria conseguido pilotar aquela coisa. E eu sabia que não demoraria muito até que meus raptores descobrissem minha fuga e viessem atrás de mim, por isso abandonei a nave no primeiro planetoide habitado que encontrei e arrumei uma carona em um cargueiro que transportava prata.

— Se você desejava encontrar a Iguaçu, por que não o fez utilizando a nave auxiliar camuflada? – Perguntou Chelaar.

— Além de não ser rápida o suficiente, ela pertencia à espécie que me abduziu e, sendo uma peça de sua tecnologia, considerei-a muito mais suscetível ao rastreamento. – Respondeu Giulia. – Decidi que a única forma de “desaparecer” era esconder os meus rastros e conseguir uma nave diferente, então assim que o cargueiro chegou ao comando orbital de uma estação mineração, ofereci meus serviços em troca de uma nave auxiliar. Desde então, tenho viajando da maneira mais discreta possível, seguindo uma rota inversa que poderia me levar à Iguaçu. – Ela sorriu. – Mas vocês me encontraram antes.

— É uma história interessante, srta. Naggi. – Disse o capitão. – Mas não explica como nós somos incapazes de lembrar de você.

— Não tenho explicação para isso. – Disse Giulia. – Mas posso afirmar com toda a certeza que sua oficial de comunicações é uma impostora.

— Narcisa tem servido comigo há anos e a considero uma amiga íntima. – Disse Chelaar, cética. – E você eu nunca vi antes.

— Como pode dizer isso, Chela? – Disse Giulia, indignada. – Eu fui sua madrinha de casamento, organizei a festa surpresa da sua promoção à oficial de ciências da Ganímedes, chorei ao seu lado quando sua avó faleceu... – Ela se virou para Vernon. – Capitão, se o senhor não tivesse me resgatado dos breens, eu jamais teria entrado para a Frota Estelar, e hoje eu estaria usando os trapos de uma escrava ao invés deste uniforme.

— Não há registro de nenhuma Giulia Naggi na Frota Estelar. – Falou Vernon.

— Então como eu poderia saber de tudo isso? – Perguntou Giulia, desesperada. – Como eu conheceria as frequências criptografadas da inteligência da Frota que usei para contatar a estação de Chelaar quando vocês ignoraram meus chamados?

— Nós não ignoramos seus chamados. – Disse Chelaar. – Foi você que nos ignorou.

Giulia arregalou os olhos.

— Aí está! – Exclamou ela. – Verifique os registros de comunicação, verá que eu tentei contatar a Iguaçu assim que vocês apareceram nos sensores.

Vernon e Chelaar se entreolharam.

— Não há prejuízo nisso, há? – Perguntou Giulia, determinada.

— Não, não há. – Disse Vernon, e levou a mão ao peito.

— Capitão, espere! – Interrompeu Giulia. – Não solicite essa varredura diretamente à ponte, ou a impostora poderá falsificar os registros para se proteger. É melhor utilizar um dos painéis da enfermaria para enviar uma solicitação diretamente ao subcomandante Da’Far, e ele poderá fazer a verificação sem o conhecimento de sua oficial de comunicações.

O capitão assentiu, fazendo um gesto para Chelaar, que foi até um dos painéis da enfermaria e transmitiu as ordens para o chefe de segurança. Menos de um minuto depois, o painel emitiu um breve bipe, demonstrando que Da’Far havia respondido. Chelaar demorou por alguns instantes examinando os dados, e parecia muito contrariada.

— Ela... ela está certa, capitão. – Disse a tellarita. – A nave auxiliar tentou contato conosco dezesseis vezes e, em todas elas, a estação de comunicações bloqueou a transmissão. – Ela deu uma breve olhada para Giulia. – E não há nenhum registro de que a Iguaçu tenha saudado a nave auxiliar quando o senhor ordenou que isso fosse feito.

— Eu não disse? – Falou Giulia.

            Vernon refletiu por um momento, olhando para Chelaar e Horvat, que pareciam igualmente surpresos pela evidência apresentada por Da’Far.

            – Acho que chegou a hora de uma acareação. – Disse o capitão, por fim. – Chelaar, envie uma ordem para que Da’Far detenha a subtenente Barsotti e a leve para a sala de reuniões da ponte. Peça que Nhefé o acompanhe.

            – Sim, senhor. – Disse Chelaar.

            – Eu suponho que também permanecerei sob vigilância até que a verdade se torne incontestável. – Disse Giulia, olhando de canto para os dois seguranças que estavam posicionados ao seu lado.

            – Ainda não confio em você e não acredito no que está dizendo, srta. Naggi. – Disse Vernon, em tom sério.

O capitão deixou a enfermaria prontamente, acompanhado por Chelaar, Horvat, Giulia e os dois seguranças. Eles fizeram o percurso até a sala de reuniões da ponte em silêncio e, chegando lá, se depararam com Nhefé e Da’Far em pé ao lado de Barsotti, que estava sentada com uma expressão confusa e preocupada no rosto.

— Capitão, eu não acho que isso seja necessário. – Disse a oficial de comunicações, levantando-se.

— Eu gostaria que não fosse, subtenente. – Disse o capitão, fazendo um gesto para que todos se sentassem. – Mas precisamos esclarecer alguns pontos.

Barsotti engoliu em seco e sentou novamente em sua cadeira, bastante nervosa.

— Verificamos os registros da estação de comunicações da nave e identificamos algumas divergências inesperadas. – Começou o capitão. – Dezesseis vezes a nave auxiliar enviou uma mensagem de saudação e dezesseis vezes ela foi recusada. Além disso, quando eu determinei que fizéssemos contato, nenhuma transmissão foi feita pela Iguaçu. – Ele respirou fundo. – Eu confio em você, Narcisa, e sempre confiei, mas preciso que me dê uma razão muito boa para ter omitido essas informações e desobedecido minhas ordens diretas.

— Deve ter sido apenas um erro na gravação do registro. – Defendeu-se Barsotti. – Eu não teria razões para mentir, vocês sabem disso!

— Asseguro que não houve erro algum. – Disse Da’Far. – Executei um diagnóstico de confirmação redundante no banco de dados e não há dúvidas de que as transmissões entre a Iguaçu e a nave auxiliar foram deliberadamente ignoradas.

O capitão Vernon continuou olhando nos olhos de Barsotti, desejando que ela tivesse uma explicação satisfatória para seus atos.

— Conselheiro? – Disse ele, virando-se para Nhefé.

— Eu lembro claramente da nossa oficial de comunicações desde o dia em que partimos da estação espacial Catadupa, observei e passei a conhecer seu modo de agir, sua disciplina e sua lealdade inabalável ao senhor, capitão. – Disse o conselheiro. – Diante disso, posso concluir que este comportamento é totalmente incompatível com tudo o que ela vem apresentando até então.

Vernon se voltou novamente para Barsotti, que respirava ofegante e mantinha a expressão de ansiedade no rosto, em silêncio.

— Quem é você? – Perguntou Giulia, percebendo que Barsotti estava dando sinais de estar encurralada. – Por que está fazendo isso?

A expressão de nervosismo desapareceu do rosto de Narcisa Barsotti, sendo substituída por uma expressão serena, quase etérea. Ela virou a palma da mão esquerda para cima, e uma luz vermelha arredondada, com alguns símbolos estranhos, surgiu abaixo da sua pele. Imediatamente, o cabelo dela começou a mudar de cor e se retrair para dentro a cabeça, sendo substituído por uma densa camada de espinhos.

— Não. – Disse Vernon para Da’Far, que apontava o fêiser na direção da figura que antes era a subtenente Barsotti.

A pele do seu rosto começou a borbulhar e a assumir uma cor marrom-acinzentada, revelando traços suaves e um queixo pequeno. Seus olhos dobraram de tamanho, ficando quase translúcidos e o uniforme da Frota Estelar que ela utilizava foi substituído por uma vestimenta branca e bege muito justa.

— Sou Jtemplaçlu. – Disse ela, com uma voz tranquila. – Pesquisadora do Instituto de Antropologia Çraqlitano.

— Acredito que nossa apresentação seja dispensável. – Disse Vernon.

Jtemplaçlu assentiu.

— Acabo de receber ordens para parar com minha interpretação e lhes revelar a verdade, então vou direto ao ponto. – Começou ela. – Minha espécie é telepata e, para explorarmos a fundo e ampliarmos nosso conhecimento sobre outras civilizações, assumimos o lugar de pessoas que estejam numa posição privilegiada de observador, como no caso de sua oficial de comunicações. Nós somos capazes de alterar a percepção das pessoas para que elas associem a nós as lembranças e experiências que têm com os indivíduos abduzidos, por essa razão nenhum de vocês, nem mesmo o veniano, foram capazes de perceber que a verdadeira oficial de comunicações era Giulia Naggi e não minha personagem Narcisa Barsotti. – A alienígena olhou para a palma de sua mão, onde havia um dispositivo muito brilhante e cheio de símbolos. – Tudo teria corrido muito bem, é claro, se não fosse o defeito na câmara de bioestase e a capacidade da subtenente Naggi em escapar de nossas buscas.

— Se sua capacidade telepática é tão fenomenal, por que precisou mudar sua aparência? – Perguntou Nhefé. – E, se pode mudar a aparência, por que não adotou a aparência exata da subtenente Giulia Naggi? E ainda, se tem estas capacidades, por que está nos dizendo isso ao invés de simplesmente manipular nossa percepção e apagar nossas memórias?

— Existe um conceito comum aos nossos povos, conselheiro: Ética. – Disse a alienígena. – Temos um regulamento muito específico de estudo antropológico, que foi desenvolvido e aperfeiçoado por gerações, e ele é contundente em estabelecer limites do que podemos ou não manipular. Quanto a alterar a percepção de vocês neste exato momento e apagar suas memórias do que aconteceu aqui, é algo que eu tenho liberdade legal para fazer, mas que exige a presença de mais de um indivíduo de minha espécie.

— Isso ainda não explica porque está nos contando isso. – Disse Vernon. – Afinal, continuo sem lembrar de Giulia Naggi e, para todos os efeitos, Narcisa Barsotti continua sendo minha oficial de comunicações.

— Espero que o senhor não fique chateado, capitão, mas eu só os estava distraindo até que minha nave chegasse. – Disse a alienígena, abrindo um largo sorriso.

Ponte para capitão Vernon.— Ouviu-se a voz de Shion. – Uma nave desconhecida acaba de sair de uma espécie de túnel subespacial.

— Em breve vocês não lembrarão nada desse incidente, mas saibam que foi um prazer conhecer suas espécies e sua Federação. – Disse a alienígena, levantando-se. – Quem sabe um dia nós viajemos para a Via Láctea para estuda-los melhor. Adeus.

Dezenas de çraqlitanos abordaram a USS Iguaçu e, antes que qualquer reação pudesse ser tomada, todos os tripulantes caíram em um sono hipnótico. Quando acordaram, suas memórias e os registros da nave haviam sido alterados pela espécie telepata, e todos passariam a lembrar desse dia como a perseguição frustrada a uma nave auxiliar, motivada por uma informação equivocada.


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