Os Teus Acordes escrita por Nami Buvelle


Capítulo 3
A formiguinha e o mediciner




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Luiza abriu os olhos marejados. Desejava intensamente ouvir, mas, de alguma maneira, escutava tudo com muita atenção. Isso podia bastar, pensou. Tinha que bastar.

Era hora de sair daquela melancolia! Continuou pesquisando mais sobre a obra, ou seja, sobre Tomás, é claro. Não tinha bem um porquê, mas aquilo a distrairia, então, por que não?

Tocada no violão, com uma letra provavelmente pensada para o público teen, figurino provavelmente improvisado, mas bem ajeitado...

Cachinhos dourados, pele bronzeada, devia gostar de praia... Devia ter um lindo corpo em roupa de praia, aliás... Foco, Luiza! Olha, foi tão fácil encontrar o perfil dele no Instagram... Tinha mais seguidores do que um Zé ninguém e provavelmente menos do que ansiaria um popstar. Mediciner na empresa medicina, era o que dizia sua curta biografia. Dezenove anos e... do mesmo bairro que Luiza?

Aquele bar, nossa, como era parecido com o bar de sua esquina. E aquela banca de jornal... Aquela banca não parecia a mesma que às vezes passava e comprava algumas revistinhas de caça palavras? Parecia, parecia. Com um pequeno solavanco, reparou. Não parecia. Ela passava por ali sempre para ir para a lanchonete do seu Zeca. Não entendeu muito bem, só que seu coração palpitou um pouco mais rápido. Ei, Luiza, ele é apenas um estranho com uma música emocionante. É, ele não era nada além do que um estranho.

O alarme soou e Luiza se assustou. Como assim haviam passado todos aqueles minutos? Horas? Realmente as redes sociais são hipnotizantes, os adultos tinham razão esse tempo todo! Também, não é? Eles não saem delas. Outra anotação mental, além de não se atrasar, ficar um pouco mais offline. Não pode ser normal o tempo voar, melhor, se teleportar daquela maneira! Que seja!

Banho tomado, macacão vestido, batom passado e cabelo penteado. Estava cheirosinha, limpinha e prontinha. Ao se olhar no espelho, sorriu. O que quinze minutos não podiam fazer pela aparência de alguém, certo? Ao mesmo tempo, Luiza estava trabalhando na sua autoestima. A sociedade já é muito cruel com seus padrões, não precisava e nem queria mais seguir eles. Era um pouco cruel pensar da maneira que pensava, porém a mera surdez já era, em si, uma ruptura desse tal modelo ideal e inalcançável de beleza. De qualquer maneira, se arrumar ao seu gostinho era lindo e a enchia de alegria. Se olhar no espelho de pijama também. Estar natural é, também, lindo. Se lembrava disso todos os dias.

Rompendo com os pensamentos e a arrancando de seu pequeno torpor reflexivo, seu celular vibrou insistentemente com inúmeras mensagens de Lilia. Perguntava se Luiza iria se atrasar, se planejava se atrasar ou se já estava atrasada. Todas devidamente enviadas com a devida urgência e o sempre presente coraçãozinho no final.

Luiza vestiu a jaqueta. O couro - sintético - acariciava seus dedos com um afago frio. Foi até Souza e sinalizou com as mãos que sairia com Lilia e Marília, as encontraria na lanchonete do seu Zeca e voltaria, no mais tardar, às oito. Souza moveu agilmente seus dedos e sua mão a fim de escrever no ar o quanto amava a filha, que ela se divertisse no passeio com as amigas.

“Até o jantar, formiguinha.” gesticulou.

Em tempo, “Formiguinha” é um sinal carinhoso que seu pai a havia dado. É sabido que pessoas da comunidade surda batizam outras de seu meio com sinais. Há, inclusive, uma certa falta de ética em um ouvinte batizar um surdo. Porém, quando criança, Luiza não conhecia nenhuma outra pessoa com baixa ou nenhuma audição em seu círculo social, o que a fazia se sentir excluída e deslocada. Adorava ver desenhos legendados, mas em todos eles os personagens eram ouvintes, não havia um surdo sequer para contar história! Sensibilizado e triste com a situação, Souza pesquisou bastante em alguns livros emprestados sobre a comunidade dos surdos e sobre como fazer sua querida filha se sentir mais incluída. Pesquisando, pesquisando encontrou um marco cultural: o batismo.

Uma das coisas que Luiza toda vez reclamava era sobre como era exaustivo soletrar seu nome através da datilologia toda vez e ninguém entender nada. Sempre acabava com um pedaço de papel escrito com seu nome no bolso, para mostrar e reagirem com um: “ah, sim, Luiza, agora entendi.”

Isso a fez repugnar o nome “Luiza” por um bom tempo, mesmo seu pai explicando sobre como o escolheu com todo amor e carinho. No final das contas, apesar das dificuldades financeiras, reuniu suas economias e conseguiu matricular Luiza em uma escola particular um pouco mais inclusiva, onde os alunos aprendiam LIBRAS desde novos e todas as aulas eram traduzidas por um intérprete. Não se tratava propriamente do modelo de inclusão que gostaria, porém ao menos entenderiam seu nome sem precisar de uma folha amassada e molhada de suor de tanto que era tirada e colocada novamente toda cansativa vez em seu bolso.

Antes de dar a notícia para Luiza, se sentou ao lado na cama, a deu um beijo de boa noite e soletrou “formiguinha” com as mãos. Luiza o olhou desconfiada. Souza, então, moveu as mãos, sinalizou o F, emendando rapidamente com “carinho” e “formiga” e apontou para Luiza, finalmente sinalizando “apelido”.

A menina sentiu seus olhos marejarem e se levantou da cama em um pulo para abraçar o pai. Nunca a haviam dado um apelido! Tão emocionante!

Ele a explicou simplificadamente, tão simplificadamente quanto se consegue explicar para uma criança curiosa, movida a perguntas e “porque’s”, sobre o conceito de batismo na comunidade surda e como aquele não seria seu sinal, já que foi dado por um ouvinte e não correspondia ao seu nome, apenas às suas características físicas e a um mimo de seu pai, mas que poderia ser um segredinho deles, um apelido, por que não? Em breve, ele tinha certeza, a batizariam de forma adequada como sua amada filha merecia. Até lá, Luiza sentiu que bastava ser a formiguinha. Ser a formiguinha a enchia de felicidade e completude. Então tudo estava bem.

Bom, além de bem, a formiguinha estava atrasada, é claro. Se apressou e andou a passos rápidos até a lanchonete de seu Zeca. Tão rápidos, mas tão rápidos, que não reparou quando lateralmente, fora de seu campo de visão, alguém andava tão apressadamente quanto e se esbarraram.

Luiza esfregou os ombros (seja lá quem for que tenha esbarrado, como era encorpado!) e se preparou para demonstrar, provavelmente para um ouvinte, que gostaria de se desculpar. Suspirou. Era um ouvinte mesmo. Ao se virar, se deparou com um garoto proferindo inúmeras palavras por minuto, alheio ao fato de que alguém poderia não as ouvir, não acompanhar, alheio ao sentimento de invisibilidade que aquilo causava. Enfim, que seja. Ele e boa parte das pessoas que conhecia eram assim, não tinha motivo para esperar reação diferente. As pessoas são, por vezes, tão egocêntricas...

Luiza balançou a cabeça, se afastando do seu curto devaneio e encarou a tão vítima quanto ela/causadora do esbarrão de frente. Calma, ela conhecia aqueles cachinhos dourados que não se continham em serem segurados pela touca vermelha, ou mesmo aquela pele bronzeada. Na verdade, conhecer é uma palavra forte, só que, com toda certeza, ela reconhecia quem era. Se apressou em dizer “desculpa” por meio da datilografia, na esperança de que Tomás entendesse. Previsivelmente a olhou com aquela expressão confusa que todo ouvinte mal informado insistia em ter. Suspirou fundo. Tentou expressar que sentia muito pelo esbarrão. O rapaz, por sua vez, revirou os olhos e murmurou “que seja”, dessa vez em uma velocidade compreensível, e seguiu seu caminho.

Quanta falta de educação! Era de se esperar, vindo de um mediciner da empresa medicina, refletiu a formiguinha antes de se voltar para a lanchonete mais uma vez.


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