Os Teus Acordes escrita por Nami Buvelle


Capítulo 13
Nasce um brechó




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— Atrás! - Zachary disse. - Atrás, cara!

Se inclinou para a frente e sentou sob os pés. Zachary socou o ar algumas vezes. Era preferível isso a socar seu computador gamer.

— Eu não estava falando "atrás"? Como assim não sei dar call? — Perguntou, enquanto algum desconhecido gritava de dentro do seu fone. - Ou você tem reações rápidas ou alguém vai ser mais rápido do que você. É isso!

Irritado, tirou os fones e finalizou o jogo. Limpou o suor da testa: jogar, algo que era para ser prazeroso, puro lazer, se tornava vez ou outra uma atividade cansativa, estressante. As pessoas eram agressivas demais, falavam besteiras demais. Por mais que frequentemente se irritasse, sua educação sempre vinha à frente. Bom, quase sempre. Tinham vezes que ele praticamente suspirava um palavrão ou outro, admitia isso para si. Só que, poxa vida, quem não está sujeito a soltar um palavrão ou outro enquanto alguém completamente aleatório está te chamando de idiota por horas?

O garoto ajeitou a coluna, botou um punhado de batatinhas na boca e respirou fundo. Foi espairecer nas redes sociais e, instintivamente, parou no perfil de Lilia. Havia encontrado sem querer (a tecnologia e suas sugestões de amizade são assustadoras!) e, não entendia o porquê, gostado disso. Zachary, você sequer a conhece, o que está fazendo olhando foto por foto? Não conhecer soava como um ponto positivo. Não é um ponto positivo, garotão. Não é um ponto nada positivo. Claro que é! Sem conhecer se tem toda a liberdade de admirar a beleza das fotos públicas. Não tem o constrangimento do que ele chama de encontro pós-rede, quando dá de cara com a pessoa stalkeadaQue tal aparecer na lanchonete? Vai que ela esteja lá. Melhor ainda: que tal chamar ela para comer batata frita? Ela parece gostar muito de batata e... Espera. Zachary praticamente não conhece Lilia. Isso não faz sentido! Abruptamente se levantou.

Mais um punhado de batatinhas. Mastigar de boca aberta ajudava. O barulho das batatinhas quebrando acalmou o da mente pensativa. Ele não conhecia Lilia, não fazia sentido nenhum chamar a garota para um lanchinho casual. Tinham trocado algumas palavras, ok. Aliás, nem isso. Zachary, você está ficando maluco. É só mais uma garota aleatória da internet. Claro, aleatória e muito bonita, cheira muito bem também, ele tinha reparado. Mas aleatória, ainda assim! Paixão à primeira vista? Não... Deviam ser apenas os hormônios da adolescência. Ter dezesseis anos é sempre uma grande questão.

Encarou por longos segundos o balão de conversa no seu perfil. Poderia fechar aquela janela, entrar no Spotify, escutar uma sequência de músicas altas e agitadas e distrair os pensamentos ou poderia simplesmente clicar no balão e...

— Você aceitaria, assim, sem pressão, sair comigo? É claro, só se você quiser. Não faria sentido sair comigo sem você querer. O que estou querendo dizer é... Sou feminista. Isso é legal, não é?

Lilia sorriu por fora e riu por dentro. Apesar de considerar engraçadas as manifestações feministas do homem cisgênero moderno, não via como responder com deboche ajudaria a mudar esse tipo de pensamento.

— Bom dia para você também. - Sorriu e sinalizou o que havia sido dito no curto diálogo para Luiza, que estava sentada no banquinho de frente da escola ao seu lado, junto com Marília.

Zachary não enviou mensagem alguma. Decidiu olhar uma última vez para a foto de Lilia, ouviu qualquer música e jogou algum jogo aleatório mais relaxante do que o último. Conseguiu distrair seus pensamentos por um tempo. Quem tinha pedido Lilia para sair foi Lucas. Lucas é considerado o garoto mais bonito da escola, da mesma maneira que muitos juram de pés juntos Lilia ser a garota mais bonita da instituição. Formariam o típico casal "rei e rainha do baile".

Já tinham trocado algumas palavras, sim. Mas nunca formularam uma conversa complexa. Lilia se surpreendeu com o convite repentino, sem se abalar pela fama de galã do garoto. A mesma fama que tinha de galã, tinha de sem noção, como ela mesmo atestou ao vê-lo se autodeclarar feminista.

"Bom dia, Lucas." Luiza gesticulou.

Lucas sorriu, acenou e se voltou para Lilia.

— E então?

Lilia olhou para Luiza, que exibiu um sorrisinho lateral e levantou as sobrancelhas maliciosamente. Marília se manteve com o rosto impassível. Lilia estalou os dedos antes de responder.

"Ok, Lucas, faremos o seguinte: estou muito feliz com seu convite, mas mal o conheço. Que tal conversarmos um pouco e nos conhecermos mais antes de um primeiro encontro? Me empresta seu celular, vou anotar meu número."

Luiza e Lucas reagiram da mesma forma: surpresa. Luiza não havia entendido a rejeição da amiga – ela sempre gostou de dar uma chance para as pessoas, talvez precisasse de um tempo do último encontro, pensou melhor – e, bom, Lucas não estava acostumado receber "não" como resposta, muito menos um "talvez, quem sabe?" Marília, por sua vez, esboçou um sorriso tímido. Pareceu ter aprovado o fato de Lilia se esquivar do convite.

Atordoado, Lucas entregou seu celular desbloqueado para Lilia, que salvou seu contato como "Lilia (Escola)". Subitamente, o garoto fingiu ter recebido uma mensagem de caráter urgente no celular e disparou, como em um passe de mágica, para o grupo de seus amigos. Desapareceu. A mera possibilidade de rejeição foi dura demais para o feminista, Lilia refletiu consigo mesma, se repreendendo logo após por ter sido um pensamento cruel.

Lilia não é contra o feminismo, é importante pontuar. Ela se considera feminista, apenas não consegue conceber que homens também possam se considerar. Estruturalmente, o problema é a desigualdade, é a falta de voz. Para Lilia, isso não irá se resolver dando a voz da luta para eles. Faz parte.

"O que foi que aconteceu aqui?" Luiza perguntou, saindo um pouco de seu choque.

Talvez a amiga realmente precisasse de um tempo após o último encontro. Aquilo fazia sentido.

"Seu pai chegou, Lu. Vamos?" Lilia desconversou, enquanto Marília continuava calada.

As três entraram no carro, cumprimentaram Souza e se acomodaram.

O pai de Luiza estava distraído pensando nas contas de e acabou errando uma das ruas que precisava pegar. Obra do acaso ou não, acabaram passando em frente à casa de Tomás. Luiza reparou que ele estava chegando, com o violão nas costas e o andar desleixado, típico do rapaz. Suspirou.

Naquele mesmo dia, mais tarde, Marília se sentou na cama de Luiza e perguntou sobre o suspiro do carro. A amiga desviou da pergunta, se espreguiçou e respondeu que não era nada, apenas estava se sentindo cansada. Aproveitou para contar um pouco sobre o implante coclear, lembrou que ainda não tinha falado sobre a consulta para Lilia e Marília.

As duas ficaram extremamente empolgadas: segundo o Doutor Google, a cirurgia é de baixo risco e, seguindo os procedimentos corretos, pré e pós cirúrgicos, a recuperação do paciente será, provavelmente, ótima! O mais importante: Luiza finalmente poderia recuperar parte de sua audição. Poderia falar com as amigas pelo telefone. Poderia, com o tempo, se tornar mais independente da leitura labial. Até mesmo poderia ouvir música, seu grande sonho. Os olhos de Lilia brilharam.

"Luiza, são ótimas notícias!" Lilia comemorou.

"Sim, são." Luiza respondeu.

Marília reparou na inconsistência da resposta.

"O que houve? Achei que você ficaria radiante com a possibilidade, bom, de ouvir. Pessoas, conversas, músicas principalmente."

"Eu estou. Estou radiante com a possibilidade. Só que é uma possibilidade, Marília. Conversando com o médico, nos foi dito, para mim e para o meu pai, sobre a média de custo do tratamento necessário para o implante. Vou precisar de fonoaudiólogo, de psicólogo e, além disso tudo, de exames. Audiometrias, ressonâncias e alguns outros. Isso sem contar com a continuidade do tratamento com os especialistas no período pós-cirúrgico para adaptação. Isso tudo é muito, muito importante. Só que também é muito, muito caro, entendem?"

Lilia se jogou na cama de costas e bufou. Marília olhou para o chão, compreendendo e digerindo a situação. Luiza continuou a gesticular.

"Meu pai tem um dinheiro guardado. Ele só me contou recentemente que tinha uma reserva para essa cirurgia, caso eu decidisse fazer, como finalmente decidi. Antes eu tinha muito medo e fui vendo que parte do medo era ignorância sobre o assunto. Seria até melhor eu ter feito quando criança, inclusive."

"Você podia ter feito quando criança e não fez por medo? A decisão não teria que ser do seu pai na época?" Marília questionou.

"Sim, teria, mas na época ele não tinha sequer essa reserva. Ele tentou uma vaga para a cirurgia por volta de 2014 pelo sistema público, já que só naquele ano tinha sido aprovado pelo Ministério da Saúde a oferta do implante coclear gratuitamente. Só que aí eu já tinha meus doze anos e estava completamente apavorada. O psicólogo acreditou que estar totalmente amedrontada poderia atrapalhar e muito a adaptação, que eu poderia me sabotar e rejeitar aquilo inconscientemente, enfim." Luiza suspirou e continuou. "Vamos me inscrever pelo sistema de saúde pública novamente, mas já naquela época foi uma viagem só para conseguirmos encontrar uma unidade para algumas consultas iniciais. Viajar novamente e por um tempo prolongado durante o tratamento também sairá caro, além de não sabermos o que meu pai faria com o emprego dele." Despencou as mãos no colo e bufou.

"E se a gente juntar dinheiro também?" Lilia perguntou e, inquieta, se revirou na cama.

"Gostei da ideia, como faríamos isso?" Marília, que antes estava jogada e frustrada com a situação, se sentou e regulou a postura.

"E se vendermos algumas roupas antigas? Já queria me desfazer de algumas roupas minhas de qualquer forma. Poderíamos formar um bom brechó." Ponderou Lilia, recuperando o sorriso.

"Sim, tenho algumas roupas que são boas também. Posso ficar responsável pela divulgação online. Tenho... digo, conheço uma pessoa que tem um blog bastante popular. Além disso, Lilia, você não é boa cozinheira?" Marília retrucou.

"A melhor confeiteira que você conhece! Por aqui partimos da crença popular: se quer algo bem feito, faça você mesmo. E eu amo doces, quero eles mais do que bem feitos, quero perfeitos!" Lilia respondeu, sorrindo ainda mais.

"Ótimo! E que tal se vendermos alguns doces também? Acredito que a escola tenha regulamento contra isso, mas podemos pôr uma mesa improvisada na calçada e vendermos para a vizinhança, que tal?"

— Que incrível! - Tamanha animação, Lilia comemorou e voltou a sinalizar:

"Digo: ter uma oportunidade de mostrar para as pessoas o incrível mundo dos doces feitos com amor? Muito, muito legal!" Finalizou e bateu palmas animadas.

Marília riu. Lilia é tão fofa, principalmente motivada, dá vontade de bei... abraçar, pensou. Claro, de abraçar.

Luiza observou as amigas e sorriu de orelha a orelha. Se sentiu completamente amada vendo que suas companheiras abraçaram sua aflição, seu problema e estavam buscando juntas uma solução. Seus olhos lacrimejaram. Lilia, preocupada, se virou.

"Luiza! O que houve? Está tudo bem?"

Marília também olhou atentamente, examinando a amiga.

"Estou..." Luiza levantou as mãos timidamente, receosa de que qualquer movimento brusco poderia fazê-la acordar de um sonho.

Como é bom se sentir amada!

"Estou muito feliz! Vocês me deixaram muito feliz!" Disse, imitando Lilia e batendo palmas no final.

Marília gargalhou, motivada em partes pela imitação, em partes pela alegria que despertou em Luiza. Lilia também. Estava radiante. As três se abraçaram e, mesmo com as mãos ocupadas com o abraço e nenhuma podendo enxergar seus rostos para lerem o lábio umas das outras, sabiam, de alguma maneira apenas sabiam, que seus corpos suados e seus olhos marejados gritavam o quanto se amavam.

Luiza, inserida no abraço, completamente presente, tinha esquecido do seu drama com Tomás. Bem abaixo de seus pés, Souza tinha acabado de guardar na gaveta o bilhete que encontrou na fresta da janela quando chegaram em casa. Souza é um homem simples, mas muito observador. Não leu o conteúdo do envelope, aquilo seria uma tremenda invasão de privacidade. Abriu apenas para ver a assinatura. Pesquisou @umTomásreal em seu computador (quem raios assina dessa forma?) e rapidamente identificou o adolescente pervertido de horas antes.

Se gritar pela suafilha surda já havia o irritado o suficiente, o fato de ser um músico o deixoufurioso. Músicos são conquistadores e impiedosos. Acreditava piamentenisso. Além do mais, uma das maiores mágoas de sua amada formiguinha, quiçá amaior, é a de não poder ouvir música. O que um músico iria querer com ela,afinal, que não fosse acabar em lágrimas, sorvete e coração partido?

 


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