Saved escrita por Fanfictioner


Capítulo 1
Saved


Notas iniciais do capítulo

Mais uma vez, cá estou eu, deixando novas contribuições ao fandom Hinny!
Para hoje temos um pouco de angst, com um pouco dos sentimentos do Harry logo após a batalha de Hogwarts, e o luto ainda aberto, e a Ginny na vida dele... originalmente, saved era para se chamar Hesitate, porque eu estava ouvindo Hesitate, dos Jonas Brothers, enquanto escrevia essa fic, e cada segundo que a música tocava eu só conseguia pensar em como a letra fazia muito e muito sentido para esse casal perfeito.
Acabou ficando Saved por causa de um trecho da música que, inclusive, deixei pela história.

Enfim, espero que possam se emocionar um pouquinho com essa história, que é angst, mas tem healing também!



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Time, time only heals if we work through it now

I, I promise we'll figure this out

 

Se em algum momento Harry Potter achara que tinha experimentado cansaço e dor, ele certamente nunca tinha vivenciado exaustão.

Todo seu corpo, partes tangíveis e intangíveis, doía, e ele achava que não haveria nada que reparasse o estado catatônico de confusão e desalento que havia nele. Tinha conseguido dormir por algum tempo em uma cama de dossel na torre da Grifinória, talvez três ou quatro horas, porque quando acordou o sol estava entrando pela janela, cegando-o.

Parte dele queria conseguir arrancar o cérebro fora e apagar por alguns dias, esperar que tudo estivesse resolvido e o mundo tivesse voltado aos eixos sem que ele precisasse mover qualquer músculo para isso, pela primeira vez. Outra parte dele, no entanto, sabia que não conseguiria mais voltar a dormir, tanto porque estava morrendo de fome, quanto porque havia pensamentos demais em sua cabeça, e tudo que precisava era uma Poção da Paz bem forte para conseguir tirar aquela ansiedade latente.

Talvez Hermione tivesse um pouco daquilo em sua bolsinha de contas, ou Madame Pomfrey, na enfermaria.

A ideia de encontrar qualquer outra pessoa, no entanto, fazia o estômago de Harry se revirar em profundo desagrado. A única coisa que desejava era ficar sozinho, entender o que tinha acabado de passar, porque não fazia quarenta e oito horas que tinha deixado o Chalé das Conchas e, no entanto, parecia como uma vida atrás.

Na verdade, várias vidas atrás, ele pensou com um gosto amargo.

O sentimento de vazio pelas pessoas que tinha perdido o atingiu, os rostos dos falecidos passando um a um, rápido demais, em sua cabeça, fazendo-o sentir náuseas de estar ali deitado. Nem chegava a ser dor, era só um vazio tremendo e arrebatador, sufocante, e Harry achou que colapsaria se não se levantasse de uma vez e procurasse alguém para distrair sua cabeça.

As horas que ele tinha dormido, aparentemente, tinham sido suficientes para muitas modificações serem feitas na escola. Alguns locais que Harry tinha visto serem explodidos na noite anterior já estavam magicamente reconstruídos, e os corredores pareciam com considerável menos poeira e entulho de concreto e pedra.

O caminho até o grande salão foi deserto, como se todas as pessoas do castelo tivessem desaparecido, e nem mesmo os fantasmas de Hogwarts estavam em qualquer lugar do trajeto, o que foi um alívio para Harry.

A ausência de pessoas foi explicada pela superlotação no salão principal, com as mesas de sempre e comida servida, como se nada tivesse mudado do começo da manhã até ali. Havia uma junção de alunos, professores, pais de alunos e comerciantes de Hogsmeade, formando um colorido aliviado e deprimente de sobreviventes, mesmo que parecesse que muita gente tivesse apenas ido embora.

Foi inevitável que ele chamasse atenção ao descer a escadaria principal, e houve uma explosão de sussurros, comentários e cabeças girando para olhar em sua direção, que o fizeram desejar sumir, ou ter se lembrado de pegar sua Capa de Invisibilidade. A última coisa que desejava era ouvir mais testemunhos, lágrimas e agradecimentos, e achou que morreria de gratidão quando alguém adiantou-se em sua direção, evitando que outra pessoa o viesse perturbar primeiro.

— Potter. A senhorita Granger me disse que você devia ter ido descansar um pouco, como está? 

Professora Minerva surgiu em sua frente, vinda de uma das mesas, não mais em suas vestes da noite anterior, nem suja de sangue e poeira, mas com um aspecto inegavelmente cansado nos olhos. Aquele era o tipo de pergunta que Harry esperava não ter que responder tão cedo, mas então ali estava, dançando em sua frente, com um pulsar dolorido, quase como uma espada enfiada no meio de seu plexo solar.

Ele não tinha ideia de como estava. Aliviado? Cansado? Devastado? 

— Com fome. E uma poção calmante, ou da paz seria bem vinda. - ele respondeu, forçando-se a um sorriso que não chegou a seus lábios ou olhos.

— Venha, Papoula vai cuidar disso, e eu vou providenciar que você tenha alguma… privacidade. Para comer em paz. - a mão de Minerva pesou sobre o ombro de Harry guiando-o para o local em que Madame Pomfrey ainda fazia curativos e ministrava poções às pessoas.

Em meio às pessoas que ainda restavam, ele pode ver Neville conversando com Dino e Seamus que, Harry observou com um sorriso surpreso, estavam de mãos dadas. Luna andava pelo salão com uma prancheta, ajudando professor Flitwick a encontrar os alunos da corvinal que tinham permanecido para a batalha e organizava a remoção deles para casa, e havia outros alunos da Grifinória, Lufa Lufa e Sonserina fazendo o mesmo com os membros de suas casas.

A família Weasley por si só ocupava toda a ponta de uma mesa, e as entranhas de Harry apertaram em desagrado diante da ideia de juntar-se a eles. Não podia encarar Molly ou Arthur, ou mesmo Ginny, depois da perda de tantas pessoas, depois da morte de Fred. Não quando tinha sido por culpa dele.

— Harry, querido. Aqui. - chamou Molly antes que Harry pudesse ter desviado, fazendo os demais familiares virarem-se em sua direção.

Sentar à mesa foi constrangedor, e ele quase agradeceu que Madame Pomfrey ocupou-o pelos primeiros minutos, entregando poções e pingando unguentos nos cortes espalhados em suas mãos e rosto. George não parecia ali, com o olhar vago como um peixe, e Percy tinha o rosto vermelho e contorcido num esforço claro contra as lágrimas, fazendo Harry sentir-se extremamente desconfortável.

— Vamos voltar para a Toca, Harry. Molly precisa descansar… todos nós, na verdade - foi o senhor Weasley quem disse primeiro. - McGonagall quer organizar uma cerimônia e um memorial a todos que… - ele se interrompeu, mordendo o lábio, e Harry oportunamente baixou os olhos para o prato de comida em sua frente. - Bem, não vai ser nada hoje, de qualquer forma.

Harry assentiu com a cabeça, sem conseguir refletir muito.

— Eu acho que vou ficar por aq-

— Devia vir com a gente. - Ginny o interrompeu, sem levantar a cabeça para olhá-lo.

A ideia de voltar a Toca era esquisita, e a última coisa que Harry queria era incomodar ainda mais os Weasley depois de tudo que havia acontecido. Ficar em Hogwarts, no entanto, parecia tão doloroso quanto receber a maldição cruciatus novamente, o Largo Grimmauld certamente estava fora de cogitação, e havia muito pouca resistência sobrando em Harry para que ele se opusesse a algum pedido de Ginny naquele momento.

Oportunamente ele não disse nada, apenas assentindo com a cabeça, e meia hora mais tarde eles estavam todos em Hogsmeade, prontos para aparatar nos jardins da Toca. O sol estava bonito no céu, e havia um calor morno naquela hora do meio dia. Seria um belíssimo sábado de primavera, mas, paradoxalmente, todos eles estavam enfiados em uma névoa cinzenta e inexpressiva de perturbação e cansaço.

A senhora Weasley magicamente encheu uma chaleira com água e a colocou no fogão para esquentar, tremendo muito no processo, e logo Ginny e Hermione a estavam ladeando-a escada acima, para que ela se deitasse. Harry não viu quando Percy e George foram para seus quartos, e ficou algum tempo na sala olhando para o nada, sentado em um sofá oposto à poltrona do senhor Weasley. Hermione eventualmente apareceu com poções para cada um e recomendou que fossem se deitar um pouco.

Não era como se Harry fosse sequer capaz de negar aquilo.

***

A medida de “pouco” de Hermione era realmente diferente da dele, e Harry só descobriu isso ao acordar na tarde de segunda-feira, conforme indicava o relógio mágico na cabeceira da cama, confuso e com muito menos dores no corpo. A cama de Ron estava feita e vazia, e quando desceu à cozinha a maioria dos Weasley estava reunida lá, comendo torradinhas com geleia. Ginny indicou o lugar onde Harry poderia sentar, a seu lado, e descansou a cabeça no ombro dele, deixando-se ser abraçada de lado, muda.

— Fome? - perguntou Hermione estendendo as torradinhas. - Você dormiu mais do que eu achei que dormiria.

— O que era aquilo que eu bebi?

— Um pouco de poção do morto-vivo, diluída em poção da paz. Madame Pomfrey disse que você poderia ter o sono agitado.

Harry percebeu que não se lembrava de ter sonhado com coisa alguma. Nem horcruxes, nem Voldemort, nem cenas de Hogwarts explodindo. Nada. Fora um vazio inconsciente, como desmaiar e acordar depois, aliviado e sem a menor ideia do que acontecera.

— O… já aconteceu o... McGonagall já decidiu… - Harry não sabia como perguntar o que queria saber, não quando Percy estava à mesa, com a mesma expressão de dois dias atrás.

— Vai ser amanhã, no fim da tarde. - foi Ginny quem respondeu. - Vão fazer um memorial nos jardins.

De súbito, Percy levantou-se da mesa e saiu para o quintal rapidamente, e Harry pode ver o rosto dele vermelho, prestes a cair no choro.

— Está sendo pior para ele, eu acho. - comentou Ron, cuja mão estava entrelaçada na de Hermione, sobre a mesa. Como se tivesse lido a mente de Harry, Ron iniciou atualizações sobre o estado de cada um. - Mamãe não está comendo direito, mas saiu do quarto hoje de manhã e fez o café, e George parece fora do ar.

Imaginar George sem Fred era algo tão bizarro, que Harry pensava que era o tipo de coisa da qual nunca seria possível se recuperar completamente. Hermione tinha uma expressão que parecia dizer o mesmo.

— Papai foi a Hogwarts… ele se voluntariou para ajudar a organizar o funeral. Disse que quer garantir que a Ordem vai ter o reconhecimento que merece, mas eu acho que ele só quer algo para se ocupar e não pensar demais.

A Ordem. De repente a ficha de Harry estava caindo. Tudo tinha acabado, não havia mais Voldemort, nem guerra, nem mesmo a Ordem. A percepção de que a maioria dos membros da Ordem da Fênix que tinham restado antes agora também estava morta fez um frio percorrer a espinha de Harry, o obrigando a pensar, invariavelmente, em Tonks e Lupin. Era como se o mundo estivesse errado e fora de órbita.

Suas entranhas se reviraram numa ânsia dolorosa, e ele desejou mudar de assunto.

— Vocês sabem o que fizeram do corpo Dele? - perguntou Harry, incerto se ficara claro de quem ele falava.

— Kingsley pediu aos aurores que o destruíssem. Para impedir qualquer tipo de ritual de magia das trevas ou coisa do tipo. - explicou Hermione, e Harry sentiu um alívio instantâneo, recordando-se com desgosto dos eventos do cemitério três anos atrás.

O assunto morreu ali, e Harry aproveitou o silêncio, em um esforço de não pensar em coisa alguma, apenas concentrar-se na sensação do corpo de Ginny colado ao dele. Estranhamente, ele não se sentia reagir àquilo. Era como se estivesse quebrado.

Harry passara o dia todo pensando que, mais que todos ali, tinha experiência com perdas, e que isso o faria enfrentar o funeral com serenidade, mas coisa alguma no mundo o teria avisado da explosão mista de emoções que aconteceriam nos jardins de Hogwarts.

O castelo estava reconstruído, e qualquer indício da chacina que acontecera ali havia desaparecido. A maior parte das famílias havia aceitado que seus parentes tivessem sua morada final nos jardins da escola e, por isso, o local estava lotado, com cadeiras espalhadas por toda quase toda a extensão do gramado.

As reações dos presentes eram variadas, e Harry não se preocupou em registrá-las, porque desde que pisara na escola seu peito parecia comprimido. Os corpos dos falecidos flutuavam um a um em direção aos túmulos sob o Salgueiro Lutador à medida que Minerva os nomeava, seguidos de alguma breve informação ou comentário sobre a fibra e bravura que tinham acompanhado a pessoa nos eventos da batalha.

A mão de Ginny apertou a dele com força quando Fred foi mencionado, o corpo dele flutuando graciosamente até o local em que seria sepultado. Harry jurou ter ouvido um grito agonizante, numa voz que parecia muito a de Molly, mas concentrou-se em envolver Ginny em um abraço forte, porque ela se tremia enquanto chorava e soluçava. 

Houve uma fisgada intensa na garganta de Harry quando foi a vez do corpo de Colin Creevey, seguida de uma hedionda e nervosa vontade de rir ao lembrar do garoto sempre com uma câmera fotográfica e atrás de Harry, anos antes. Assim que Minerva mencionou o nome de Remus, no entanto, foi que a terrível e inexorável verdade pesou como chumbo nos ombros de Harry.

Lupin estava morto. Tonks estava morta.

A agonia nauseou Harry, e ele achou que fosse vomitar quando o corpo cheio de cicatrizes de seu melhor professor pairou no ar, a espera do de Tonks para serem enterrados juntos, ao pé exato do Salgueiro Lutador. Era irônico de uma forma cruel aquele ser o destino final de Remus.

As lágrimas escorreram quentes do olho de Harry, sufocantes, e ele achou que fosse sair correndo e berrando, desesperado, porque esse foi o sentimento que se apoderou dele quando a sepultura do casal Lupin se fechou. Lupin não podia estar morto.

O último amigo de seus pais, a última pessoa ligada a sua família estava morta. Mais do que isso: havia Teddy, que cresceria sem os pais exatamente como Harry, e aquele pensamento fazia sua cabeça entrar em parafuso. Por algum motivo, Harry pensou em Sirius, no corpo caindo por detrás do véu, e sentiu um bolo no estômago ao pensar que ele era o único dos três, Pontas, Aluado e Almofadinhas, que não tivera uma despedida.

Seu cérebro parecia liquefeito, afogado em um desespero que se avolumava a cada segundo. Era como se não conhecesse a morte, a perda. Como se, pela primeira vez, perder alguém não fosse o vazio. Ao contrário, Harry achava que explodiria.

Ginny murmurou que estava tudo bem, acariciando a mão dele. Mas não estava.

As palavras bonitas de McGonagall passaram desapercebidas de Harry, e sua cabeça só pareceu menos enevoada depois que tudo havia acabado e Ginny o convidou a se levantar e se juntar ao resto dos Weasley. Ao lado de Molly estava uma mulher cuja aparência era quase idêntica à Bellatrix Lestrange, e Harry precisou de alguns segundos para reconhecê-la como Andrômeda, a mãe de Tonks.

Algo dentro de Harry parecia cair e se afundar quando pensava em como a mulher devia se sentir naquele momento. No colo da senhora Weasley, um bebê muito pequeno e de cabelos azuis vivos observava atentamente os eventos ao seu redor.

A percepção de que aquele era Teddy, seu afilhado, atingiu Harry como um soco na boca do estômago, e, de repente, ele se sentiu muito constrangido de encarar Andrômeda. A filha dela também havia morrido por culpa de Harry.

— Esse é o pequeno Teddy? - perguntou Ginny, com uma voz infantil e meiga, inclinando-se para tirar a criança do colo da mãe e puxá-la para o seu. - Venha aqui, coisinha linda da tia Gin.

Teddy não protestou, ao contrário, encarou Ginny com curiosidade e, momentos depois, mudou a cor de seu cabelo para o mesmo tom ruivo dela, arrancando risinhos das pessoas ao redor. Harry sentia um misto confuso de admiração e piedade pela criança, além de uma imensurável culpa por Teddy ser, como ele, órfão.

Não achava que conseguiria estar à altura da função de padrinho que Remus tinha delegado a ele, não achava que poderia jamais ser para alguém o que Sirius fora para ele, mas quando Andrômeda perguntou se Harry não gostaria de segurar Teddy no colo, ele não teve coragem de negar.

Atrapalhado, pegou o bebê de menos de um mês do colo de Ginny, segurando-o de uma maneira que tinha quase certeza de que não era a correta. Seus olhos arderam e Harry sentiu-se estúpido e constrangido de estar emotivo em frente a tantas pessoas.

— Hey, Teddy. Seus pais me escolheram como seu padrinho. - ele murmurou para a criança em um tom muito baixo, a voz quebrando. - Eu não entendo muito de bebês, mas você vai pegar leve comigo, não vai?

Houve uma tentativa de riso da parte dele, e então Teddy deu um grunhido e sua aparência mudou para os cabelos pontiagudos do padrinho, além da mesma cicatriz na testa, o que levou Harry a morder os lábios. Andrômeda, que estava tão emocionada quando ele, pegou Teddy dos braços de Harry e o apertou em seu colo.

— Eu vou deixar uma coroa de flores… para eles. - disse uma Hermione com os olhos inchados e vermelhos, quebrando o clima deprimido. - Esperem por mim antes de irem embora. - pediu ela, puxando Ron pela mão enquanto caminhava em direção ao memorial.

Ginny tomou a mão de Harry e a apertou, fazendo carinhos com o polegar no dorso da mão, sobre a cicatriz “não devo contar mentiras”, que há muito parara de doer.

Harry sabia que ainda não tinham conversado, colocado seus sentimentos em dia e, em verdade, ele não tinha muita pressa sobre isso, só agora que a adrenalina e a exaustão tinham baixado era que ele começava a sentir as enormes feridas que haviam nele depois de todos aqueles meses de busca de horcruxes e perdas.

Não sabia se conseguiria falar de afeto e amor com Ginny enquanto se sentia tão dilacerado. Não tinha a intenção, no entanto, de soltar a mão dela ou de afastar-se novamente. Sentia-se frágil e necessitado de todo apoio e consolo que conseguisse, mesmo sabendo que também Ginny estava enfrentando um inferno pessoal.

***

 

I will take your pain

And put it on my heart

I won't hesitate

Just tell me where to start

I thank the oceans for giving me you

You saved me once and now I'll save you too

I won't hesitate for you

 

A noite já avançava e Harry não conseguia dormir. Havia uma inquietação que o impedia de ficar parado na cama, e depois de mais de uma hora lutando, ele desistiu, saindo do quarto de Ron em silêncio e descendo as escadas. Na poltrona da sala o senhor Weasley dormia  profundamente, com os oclinhos pendurados debilmente no rosto, e Harry teve a sensação de que ele adormecera sem querer. 

Uma brisa vinha do quintal para dentro da cozinha, e enquanto servia um copo de água, Harry decidiu que um pouco de ar fresco faria bem a sua cabeça cheia, saindo em seguida, disposto a permanecer algum tempo naquele mesmo lugar em que, menos de um ano atrás, todos eles tinham se reunido ali em vigília, à espera de Ron e Tonks, e Olho-Tonto e Mundungo.

A ideia de que metade deles estavam mortos provocava uma queimação agonizante.

— Ron? - perguntou alguém assim que a porta da cozinha rangeu, fechando-se atrás de Harry.

— Sou eu, Harry.

— Ah, sim. Problemas para dormir também? - Ginny tinha um tom quase brincalhão, mas Harry sentia a angústia na voz dela.

— Acho que vamos precisar um estoque de poção calmante por um tempo. - brincou, arrancando um riso sem humor dela.

A lua estava crescendo, quase se tornando cheia, e Harry inevitavelmente pensou em Lupin e sua transformação que não aconteceria, sentindo aquele aperto já costumeiro no peito. A grama estava úmida quando Harry sentou-se ao lado de Ginny, encarando o escuro. Ela deitou a cabeça no ombro dele, sem dizer coisa alguma.

O luto e a dor pareciam uma conversa de palavras demais que eles eram incapazes de dizer naquele momento, e a ausência de Fred parecia, para Harry, um buraco vazio e intransponível de culpa entre os dois. Como se Ginny fosse culpá-lo pela morte do irmão, mesmo que Harry soubesse ser um receio infantil.

— Teddy é metamorfomago. - ela comentou casualmente depois de muito tempo, olhando o nada escuro. - Acha que ele parece mais com quem?

Aquela pergunta fez os olhos de Harry arderem, e ele estava apenas tão exausto de sufocar tantos sentimentos que deixou-se chorar em silêncio. Levou algum tempo até que Ginny percebesse, levantando a cabeça para encará-lo.

— Ah, Harry, eu não quis... - murmurou ela, colocando uma mão sobre a bochecha úmida de choro dele. - Está tudo bem, você não está sozinho com esses sentimentos.

A voz dela quebrou e, à meia luz, Harry pode ver os olhos de Ginny encherem-se de água também.

— Só… só me diga se quiser falar de qualquer coisa. Me contar o que está na sua cabeça… eu sei que é muita coisa.

Sem ter dito mais coisa alguma, ela beijou a bochecha de Harry no trajeto que uma lágrima tinha feito, acariciando o cabelo dele. Durante algum tempo eles ficaram em silêncio, até que Harry se acalmasse, a dor pungente da perda transformando-se novamente no vazio com que se alternava naqueles dias.

— Aconteceu muita coisa. - começou ele, incerto se queria ou não falar sobre aquilo, sobre tantas memórias que ainda não tinha revisado.

— Eu não estou com sono, posso ouvir uma história longa. - disse Ginny, fazendo Harry soltar o ar pelo nariz numa quase risada. - Aliás, eu também tenho minha própria história longa dos últimos meses. 

— Estive de olho em você. - ela arqueou uma sobrancelha. - O mapa do maroto. E Phineus Nigellus contou da aventura na floresta proibida.

— O quadro? Da sala de Sn-

— Esse mesmo. Snape foi um bom diretor?

Pelo tempo que se seguiu, Ginny contou dos episódios que experienciara naquele ano escolar tenebroso. Sobre como ela, Luna e Neville tinham se juntado em uma resistência aos comensais da morte que lecionavam em Hogwarts, sobre como a Armada de Dumbledore tinha voltado a funcionar aos poucos, sobre as torturas com a maldição cruciatus.

— Eu sinto tanto, Gin. - murmurou Harry. - Ninguém devia ter passado por nada disso. Nem você, nem Neville, Luna…

— E daí você não teria salvado o mundo. Não sozinho, Harry. - ela comentou.

Aquela verdade o atingia fundo. Ele não teria salvo nada sozinho. Não teria sobrevivido à Godrics Hollow sem Hermione, ou à captura da espada de Gryffindor sem a ajuda de Ron. Não teria sequer saído da casa dos tios, no ano anterior, sem Olho Tonto, Tonks, Remus, Fred...

No entanto, todas essas pessoas tinham se arriscado, exposto suas vidas, para que o mundo bruxo fosse salvo, e Harry achava que era uma ironia amarga que a grande maioria delas jamais fosse ver o que era o mundo após a derrota de Voldemort.

— Ninguém culpa você, Harry. - Ginny disse, adivinhando os pensamentos dele. - Todos sabiam contra o que estavam lutando, e todo mundo estava disposto a lutar pelo que achava certo, não só você.

— Só que eu nunca tive escolha, Gin. Nunca quis que ninguém morresse por mim… e se alguém merecia ter morrido, era eu. Não Fred, ou Colin, ou… - ele suspirou, sentindo que o ar lhe faltava. - qualquer um. Ninguém. Eu nem consigo saber o que sinto ainda.

Ginny suspirou, encarando-o, antes de responder.

— Dor. Luto. E há muito tempo. Ninguém deu tempo de você sentir as coisas, Harry.  Sirius, Dumbledore, e todo mundo que veio depois… ninguém deu tempo para você falar sobre o que sentiu, o que sente.

— A gente não tinha tempo. - ele repetiu.

De repente, fez todo sentido, e Harry teve a sensação de que havia tantas coisas entaladas dentro dele, tantas perdas e agonias, tantas dores e arrependimentos, há tanto tempo, que pensou que sufocaria. Ginny percebeu aquilo, como se estivesse nítido nas orbes verdes e úmidas de Harry.

— Pode me contar, Harry. Quando sentir que deve, o que quiser. - incentivou, acariciando o cabelo dele.

— Você já tem coisas demais agora, Gin. Não quero encher sua cabeça.

— Não vai. Quero tirar um pouco do que você está sentindo agora. Você já me salvou uma vez, e precisa deixar eu fazer o mesmo por você agora.

E ali estava ela, a mulher forte e decidida, doce e acolhedora, que Ginny era, com a intensidade de um milhão de sóis brilhando ao mesmo tempo. Harry sentia que se algum dia houvesse alguém que não hesitaria em salvá-lo, esse alguém seria Ginny. 

Justamente por isso, ele se derramou, se expôs, com todas as fraquezas que sentia que não podia mais segurar em seus cacos, e deixou-se ser cuidado. Por horas, Harry contou a Ginny sobre tudo.

Explicou sobre as horcruxes, as partes da alma de Tom Riddle, e sobre como estavam ligadas à morte de Dumbledore e à fuga dele, Harry, e Ron e Mione do último ano da escola. Sobre as invasão ao ministério, o estrunchamento de Ron (que deixou Ginny momentaneamente nauseada com a ideia daquilo) e as semanas vivendo sob a barraca antiga, fugindo de floresta em floresta.

Ele hesitou sobre mencionar a briga com Ron e os eventos de Godrics Hollow.

— Parte difícil?

— Tudo nessa história é difícil. - ele ironizou, sentindo uma dor aguda na garganta, que apertava.

— Vamos lidar com isso. Estou aqui, bem aqui com você, Harry. - murmurou ela, acariciando a mão dele.

Então ele continuou, vagarosamente, contando todas as partes mais difíceis. Sobre a espada e o medalhão, sobre a visita a Xenofílio Lovegood e sobre ter sido levado à mansão dos Malfoy. A morte de Dobby, o assalto ao Gringotes, a chegada a Hogwarts e as memórias de Snape, e a descoberta daquilo que achava que sempre soubera: que devia morrer, no fim.

— Eu pensei em você. - Ginny curvou o rosto em uma expressão confusa. - Lá, na floresta. Antes da Avada Kedavra. Eu não sei, foi irracional… não sei explicar. Só pensei. Em você, na gente. Em a gente se beijando, em específico.

— Harry… 

Havia uma condolência macia na voz de Ginny, como se ela mal suportasse a ideia de ele ter passado por aquilo, de ter sido real que Harry tivesse mesmo sido atingido e morto, ainda que por apenas algum tempo.

O silêncio imperou, e Harry se perguntava se esse era o tipo de momento em que ele devia beijar Ginny, para tornar mais assertivo o que tinha dito. Ele só não sentia que precisava. Não sentia que era o momento, e Ginny parecia sentir o mesmo, porque apenas se aconchegou mais em Harry, deitando-se na grama, e acariciou a mão dele que segurava.

Teriam tempo para aquilo depois, só queriam, naquele momento, que todas as feridas abertas parassem de doer.

— Nenhum podia viver enquanto o outro sobrevivesse. - refletiu ele em um tom baixo, sentindo o impacto dessa frase agora que Voldemort estava morto.

— E agora você pode. - concluiu Ginny. - Eu juro que queria ter uma receita para resolver tudo, Harry. Um jeito de fechar todas essas feridas, ma-

— Mas não tem. Eu sei. Queria poder tirar a dor de todos vocês, devolver Lupin e Tonks ao Teddy, queria… - ele suspirou cansado. - Você não tinha que ouvir nada disso agora, Gin… 

— Tem poucas coisas que não faria por você, Harry. E eu me sinto mais leve de saber que todo esse peso, essas dores, não estão com você sozinho. - ela sorriu triste. - O tempo vai curar, mas só se falarmos sobre o que machuca.

— Em que lugar no mundo eu acharia alguém como você? - murmurou Harry, sabendo naquele segundo que amava Ginny mais do que jamais pensara ser capaz de amar alguém.

Agradeceria a todo o universo pela mulher com quem dividia seu luto naquele momento, em quem podia se apoiar sem hesitações, que queria salvá-lo mesmo depois de ele tê-la deixado.

— Tenho certeza de que daremos um jeito, nisso tudo, Harry. Juntos. 

Um mínimo de sol despontava, substituindo os tons escuros do céu por pinceladas alaranjadas, e Harry podia agora ver claramente o rosto de Ginny, inchado, e os olhos úmidos.

Achava que nunca a vira tão bonita. Força e resiliência ficavam muito bem nela, e Ginny parecia uma fortaleza naquele momento. Harry podia apenas imaginar todas as dores, os traumas e os medos dela, e apenas podia sentir o quanto a amava, porque duvidava que fosse capaz de explicar ou verbalizar.

Como se fosse a primeira vez, ele inclinou-se na direção de Ginny, beijando-a suavemente nos lábios, uma de suas mãos envolvendo o pescoço delicado dela enquanto podia senti-la acariciar seu cabelo. Deixou sua testa permanecer encostada na dela, passeando os dedos pelos fios ruivos e soltos.

Não era um beijo faminto ou desesperado, como sempre achou que a saudade fosse levá-lo a fazer quando pensava em tê-la nos braços outra vez. Quase nem era um beijo, mas um selinho. Era cuidado, um jeito mudo de dizer que estava ali, e que passariam por aquilo juntos. 

Aquela não tinha sido uma conversa sobre eles, sobre seu relacionamento, mas Harry sabia que não conseguiria juntar seus pedaços ou curar suas feridas sem Ginny. Sabia, como soubera em todas as noites que procurara o nome dela no mapa, para saber que estava bem, que Ginny era como uma chama acesa dentro dele.

Harry era péssimo com palavras, e achava que seria incapaz de elaborar mais qualquer fala, pois sentia-se exausto, extenuado. Sabia, porém, que Ginny era seu consolo, a pessoa que o compreendia e a seus sentimentos, o abraço que o fazia sentir vivo, e a companhia que o salvava, com quem superaria todas as dores e traumas que o preenchiam naquele momento.

— Obrigado. - ela fez menção de se afastar para olhá-lo, o que Harry não deixou. - Só obrigado. Por tudo, Gin. - houve uma pausa, como um respiro de coragem, e ele disse o que sentia há meses. - Eu amo você.

O medo de sufocar sozinho em dor luto tinha sumido, substituído pelo calor que era a certeza do apoio e cuidado de Ginny, e mesmo se ela não tivesse dito coisa alguma em resposta, o que não aconteceria, Harry sabia que ela o amava também.


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Notas finais do capítulo

Se você leu até aqui, fico na sua espera nos comentários!
Beijoos!



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