Mais uma chance escrita por Sereia de Água Doce


Capítulo 18
Dezoito




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 18

Aquela estava sendo uma segunda-feira bastante entediante para Daniel. Ele estava preso em sua bolha a quase uma semana, não pretendendo sair tão cedo, mas era obrigado a socializar às segundas, quartas e sextas com o emprego. Por mais que Félix e Martin o importunassem e tentassem arrancar algumas míseras palavras, ele se recusava.

Seu final de semana tinha sido bastante longo e solitário. Tinha deixado a sua guitarra na casa de Julie na semana anterior, e não voltaria lá para pegar. Ele ainda tinha a pretensão de continuar com a banda, já que cortar todas as relações com a garota machucaria ainda mais. Mas isso não o impedia de mergulhar de cabeça na música.

Foram pelo menos três letras de dor e sofrimento, no nível em que  a própria caneta deixava lágrimas mancharem o papel, marcando com tudo a volta do Apolo 81. O sucesso humilhação e sofrimento não era nada se comparado àquilo, mas se estava o ajudando a passar o tempo, estava valendo.

Os Insólitos muito provavelmente não teriam músicas novas por um bom tempo se dependesse apenas dos dois vocalistas.

Entediado, Daniel suspirava no caixa da loja de instrumentos. Ele tinha quase certeza que ninguém se atreveria a sair de casa com o temporal que caía do lado de fora. Ele mesmo havia chegado na loja igual a um pinto molhado, com os cabelos escorrendo de água, um estado deplorável.

Ele torcia para não ficar doente no final do dia.

—Tá paradão isso aqui hoje. - Lucas puxou papo, se recostando no balcão junto do colega.

—Eu estranharia caso alguém aparecesse aqui.

—Como você tá? Ainda está brigado com a sua namorada?

—Eu duvido que façamos as pazes tão cedo. Ela está em período de provas até a quinta feira, então não me aproximaria dela até o sábado. Mas com isso… Eu tenho medo. Medo dela terminar comigo.

—Mas o que aconteceu, Daniel?

—Acreditaria se eu dissesse que eu assombrei o ex crush dela quando ainda era um fantasma? - Ele completou com um sorrisinho, dando a entender que era brincadeira.

—Depende, assombrou do tipo perseguir ou….

—Do tipo convencê-lo a não se aproximar dela. Ela era apaixonada por ele, mas ele não dava a mínima, ficava brincando com os sentimentos dela e quando eu percebi que ele poderia começar a sentir o mesmo, tentei impedir. Não queria vê-la mais machucada.

—Acho que entendi o seu ponto. E o dela também. Acha mesmo que ela pode terminar com você?

—É uma coisa que eu não quero descobrir.

A chuva não dava sinais de que melhoraria em algum momento, começando a movimentar os dois rapazes para protegerem as portas e janelas, para que a água não entrasse no ambiente e estragasse os instrumentos. Daniel estava absorto na janela em que havia ajudado Julie a passar quando ouviu o seu chefe o chamar de longe.

—Daniel, meu filho! Tenho a oportunidade perfeita para você!

—O que aconteceu, senhor?

—Acho que é o dia ideal para o seu pocket show!

—Mas…. Mas…. Não tem ninguém aqui….

—Nós temos internet e uma câmera. Podemos transmitir para nossa página no facebook, além de filmar para colocar no youtube. Você deixa, não é?

—Deixo, mas…. Senhor, eu não estou no clima para cantar….

—Ele brigou com a namorada, estão por um fio de terminar. - Lucas passou a fofoca, preocupando o chefe deles.

—Mas vocês cantam tão bem juntos….

—Eu sei…. - Daniel suspirou.

—Não pode ficar assim, Daniel! Precisa colocar isso para fora, não precisa ser uma música animada, apenas preciso que cante. Acredito que o tempo passará mais rápido se nos divertimos, não? 

Daniel ponderou o que o chefe tinha dito e aceitou. Enquanto Lucas buscava a câmera no escritório, conectava ao computador e posicionava em frente à parede com as guitarras, Daniel foi até o banheiro dar uma ajeitada no seu cabelo, puxando um banco para frente da câmera.

—Pode escolher uma guitarra, garoto.

—Obrigado, senhor, mas hoje preciso de um violão.

Demorou mais alguns minutos para que ele conseguisse afinar as cordas e conectar o microfone e o instrumento no amplificador, para enfim começar a tocar. Daniel passou praticamente o primeiro minuto apenas dedilhando o violão, entrando em sua própria bolha. Só existia apenas ele e aquele violão no mundo, sequer percebendo quando Lucas deu um joinha no ar, indicando que já estavam ao vivo.

De olhos fechados, Daniel se entregou de corpo e alma naquela música.

Como dói perceber que o fim

Chegou tão depressa e eu

Nem tive tempo de provar pra você

Que eu poderia ser o seu

Maior segredo é o que eu mais desejo

Será que se eu fechar os olhos

Você vai aparecer aqui

Daniel manteve seus olhos fechados, imaginando Julie bem a sua frente. Queria que ela escutasse aquela canção. Não era uma das que ele tinha composto no final de semana, mas sim quando ainda era do outro plano. 

Dias passam enquanto eu penso

Em uma forma de mudar

A quem estou querendo enganar

Ele deu um solo com o violão naquele momento, demonstrando que ali deveria entrar uma bateria, preparando a voz para o que viria a seguir….

Quem sou eu pra mudar

O que o mundo escolheu

O que o mundo escolheu para mim

Tenho que aceitar

Que é melhor assim

Quem sou eu pra mudar

O que o destino escolheu

O que o destino escolheu pra nós dois

Tanto seu chefe quanto Lucas se arrepiaram da cabeça aos pés naquele momento. Toda a emoção que Daniel despejava em sua voz tocava o coração daqueles dois homens. A briga deveria ter sido bem feia, e Daniel deveria amar muito Julie para entregar tanto sentimento daquele jeito. Ele cantava toda a sua dor e frustração, tanto a fantasma quanto a viva.

Se eu partir prometo não

Te procurar depois

Quanto mais chego perto

Mais não posso suportar

O fato de não poder te tocar

Daniel finalmente abriu os olhos, olhando no fundo da lente da câmera. Seus olhos estavam levemente marejados, mas aquilo não afetava a sua voz. Ele se lembrou que estava sendo gravado, por isso tratou de mudar aquela aparência, abrindo um sorriso tímido que não era nada costumeiro dele, tocando mais um pouco os acordes do violão antes de finalizar a música. Como não haviam combinado de falar nada, fazer nenhum merchan, o vídeo apenas foi finalizado.

Daniel conseguiu rir um pouco ao notar as lágrimas no rosto do chefe.

—Estava tão ruim assim?

—Isso foi…. Isso foi…. Uau. 

—Deveria cantar para ela. - Lucas declarou.

—O quê?

—A música. Ela deveria escutar. Não é algo muito romântico, que mostre todo o seu amor por ela, mas é bem bonito.

—Você acha?

—Eu e mais as cinco pessoas que assistiram a nossa transmissão.

—Isso me lembra que precisamos começar a divulgar as músicas. Nossos clientes precisam saber que a qualquer momento podem assistir a um show ao vivo!

—Eu agradeço a oportunidade, mas o senhor poderia esperar mais um tempo antes de tentarmos de novo? Não quero que meu repertório seja exclusivo de músicas depressivas.

O dono da loja concordou plenamente com o pedido. Já tinha tido a idade de Daniel, se lembrava com os sentimentos eram intensos naquela época, por isso aceitou o pedido do adolescente. A chuva não deu trégua no restante da tarde, com os três homens passando o tempo com os instrumentos. Enquanto Daniel e seu chefe discutiam acerca das cordas dos baixos que deveriam ou não serem trocadas, Lucas editava o vídeo gravado no computador. A live ainda não ficava salva no facebook, por isso cabia a ele editar o material e postá-lo no youtube, para que compartilhasse o link na página da loja.

A loja de instrumentos sempre o fazia bem , tanto na vida quanto na morte.

***

Eram perto das oito quando Daniel enfim chegou à loja de discos, completamente ensopado. Quando Martin abriu a porta para ele, sequer puxou papo, vendo o mais novo correr até o banheiro. Tudo o que ele menos queria era ficar doente naquela semana.

Félix e Martin o colocariam para fora caso seu humor rabugento piorasse com uma gripe.

Contente que Martin não o tivesse perturbado ou jogado um guarda chuva nele, Daniel se livrou das roupas encharcadas e se enfiou debaixo do chuveiro quente. Com um gemido de satisfação, ele molhou seus cabelos - em uma afronta à Julie, que condenava lavar os cabelos à noite com água quente.  Como ele queria que ela estivesse lá para repreendê-lo…. Não necessariamente dentro daquele banheiro ou no chuveiro com ele, imagina! Mas ficaria satisfeito com a bronca por vê-lo de cabelos úmidos.

Julie….. Aquela música tinha sido escrita para ela quando ainda era um fantasma e ela estava no ápice da sua ilusão com Nicolas. Julie….. Como ele sentia falta da sua Julie…. Ele sequer tinha planejado tocá-la para alguém algum dia, ainda mais para o seu chefe em um show gravado! Mas Lucas tinha razão, Julie merecia ouví-la.

Apesar de começar a tomar decisões, Daniel se sentia tão perdido! Se ao menos o seu pai estivesse com ele, poderia aconselhá-lo, mas ele precisava se contentar com apenas seus melhores amigos. Ainda tinha Klaus, é claro, mas não era seu pai.

Seu pai…. Ele sequer teve a oportunidade de escutar alguma palavra dele sobre garotas, apenas que Carla não aparentava ser uma boa menina. Ele tinha percebido de cara como a garota era insistente e grudenta, não deixando o seu filho em paz. Sempre que ele pegava em sua guitarra para ensaiar, o telefone da cozinha tocava, com ele perdendo horas na ligação. Aos poucos ele tinha visto o seu filho ser sugado, mas ele não o escutava de maneira alguma! Ele até tinha tentado abrir seus olhos, mas Daniel estava preso demais àquela relação para conseguir enxergar alguma coisa.

Ele tinha sido um idiota! Como tinha se convencido que Carla gostava dele? Era óbvio que era apenas uma sanguessuga! Se ao menos tivesse seus pais com ele… O que eles diriam de Julie? O que achariam da banda deles? Sequer sabia se já haviam falecido ou não, mas não queria os procurar. Seria doloroso demais não ser reconhecido por eles.

Sem perceber, Daniel havia se encolhido feito uma bola, não sabendo diferenciar suas lágrimas da água do chuveiro. Chorando feito um bebê, ele terminou seu banho, se vestindo e indo até o quarto, sendo puxado por Martin.

—Toma, não vai fugir do jantar hoje. - Ele estendeu uma quentinha que Klaus havia encomendado.

Ele esperava um resmungo do baixista não um abraço de urso. Agarrado feito um panda no mais velho, Daniel desatou a chorar mais uma vez. Chorava por ter sido um babaca com ele trinta anos antes, por tê-lo feito aturar Carla. Por ter sido um imbecil com Julie.

E principalmente: por tomar coragem.

Ele falaria com ela.


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