Mais uma chance escrita por Sereia de Água Doce


Capítulo 12
Doze


Notas iniciais do capítulo

Um minuto para o fim do mundo - CPM22 https://www.youtube.com/watch?v=RsEeyZNiwUk



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A campainha tinha tocado assim que às 13 horas haviam soado no relógio da sala. Os garotos cumprimentaram seu Raul e se dirigiram até a edícula, tomando a liberdade de já montarem os instrumentos sem Julie estar presente.

Julie sabia que a banda já havia chegado - eles não eram exatamente silenciosos agora que podiam se mostrar para os vivos, além de Pedrinho ter batido a porta de seu quarto devido a empolgação dos amigos terem chegado. Ele também tinha se acostumado com a presença diária de Martin e Félix, e tê-los somente três vezes na semana agora era muito chato, principalmente pela maior parte do tempo eles estarem ensaiando com a sua irmã.

Julie só precisava terminar os dois últimos exercícios de revisão de física e poderia estar livre para ensaiar até quando pudesse, mas precisaria ter foco para isso. Ela jurava que estava tentando, mas  a ansiedade de ter algo melhor para fazer do que estudar espelhos e reflexões batia forte em seu peito, quase implorando para que ela largasse o caderno.

Mas Julie é brasileira e não desiste nunca.

Insistiu por mais quinze minutos, se desligando da guitarra e do baixo, mas quando a bateria começou, ela não pôde mais continuar. Abandonando o material, Julie prendeu o cabelo e desceu até a edícula, com sua presença sendo ignorada pelos quatro garotos.

Enquanto Martin e Daniel faziam ajustes em um papel, Félix testava batidas com os pratos, tendo Pedrinho mexendo no equipamento de som.

—Não, assim não tá legal. - Martin interrompeu Félix.

—E se você tentasse algo mais rápido? - Pedrinho sugeriu, fingindo que entendia as cifras desenhadas na folha.

—Você entende de música, Pedrinho? - Daniel perguntou com interesse.

—Não, mas sempre tem uma parte de bateria pesada, não é?

—Acho que pode funcionar. - Félix ponderou. - Acompanhado da guitarra, não acha, Daniel?

—Talvez se encaixar no refrão…. - Daniel foi até a sua guitarra, passando a alça pelo pescoço e  começando os primeiros acordes que já tinha decorado.

Félix seguiu Daniel, se empolgando com os tons e bumbo, dando leves batidas nos pratos, apenas para dar uma quebrada no forte som. Daniel era muito entregue à música, estando tão concentrado na melodia que sequer tinha reparado na presença da namorada na edícula. Curiosa, Julie se aproximou de Martin e tentou olhar no papel.

—Posso ver?

—Eu esperaria, se você. - Daniel recolheu o papel, imaginando que seria mais impactante pra garota ouvir pela primeira vez na voz deles.

—Mas como vou aprender se não ler?

—Foi mal, Julie, mas você não tá nessa. - Martin deu a notícia, se divertindo com a expressão de espanto no rosto dela.

—Pensei que fosse demorar mais até me expulsarem da banda.

—Eu vejo mais como um descanso para a sua voz, além de eventuais músicas da Apolo 81.

—É uma das suas antigas?

—Definitivamente não. - Daniel respondeu, anotando as cifras no papel para Félix acompanhar. - Martin, acho que se você começar e depois eu entrar ficar melhor.

—Deixa eu tentar. 

Martin puxou seu baixo e começou com os acordes, tendo o seu solo por sete segundos antes de Daniel entrar junto de Félix, permanecendo na base por 42 segundos até o início do refrão chegar e ser  a vez do solo de guitarra, com leves toques de pratos no fundo, para enfim chegar a parte que Pedrinho havia sugerido. O baixo acabava ficando escondido no meio de todos os instrumentos, mas se Martin parasse de tocar certamente sentiriam a sua falta.

—Acho que funciona. Vamos do começo?

 

“Me sinto só

Mas quem é que nunca se sentiu assim

Procurando o caminho pra seguir

Uma direção, respostas!

Um minuto para o fim do mundo

Toda sua vida em 60 segundos

Uma volta no ponteiro do relógio pra viver”

 

Julie, que estava sentada no sofá a frente deles, deixou sua boca cair. Já tinha escutado eles tocarem sozinhos antes, quando Demétrius os obrigou a deixarem a banda, mas aquela música era uma vibe completamente diferente daquela baladinha. Aquilo era rock de verdade, era a Apolo 81. A voz de Daniel…. Ela poderia escutar aquela voz para sempre e definitivamente não reclamaria.

“O tempo corre contra mim

Sempre foi assim e sempre vai ser

Vivendo apenas pra vencer a falta que me faz você

De olhos fechados eu tento esconder a dor agora

Por favor entenda eu preciso ir embora porque”

A sugestão de Pedrinho começou, dando mais ênfase ao vocal. Ele mesmo estava super empolgado ao seu lado, mal se contendo por ter acertado na melodia.

“Quando estou com você

Sinto meu mundo acabar

Perco o chão sob os meus pés

Me falta o ar pra respirar

E só de pensar em te perder por um segundo

Eu sei que isso é o fim do mundo”

Julie sentiu cada pêlo do seu corpo arrepiar com a chegada do refrão. Não só pela letra, mas porque Daniel, Félix e Martin usavam as suas vozes, dividindo o microfone. Céus…. Ela se sentiu deslocada naquele momento, não era necessária a sua presença na banda, só os três já colocavam muitas bandas no chinelo.

“Volto o relógio para trás tentando adiar o fim

Tentando esconder o medo de te perder quando me sinto assim

De olhos fechados eu tento enganar meu coração

Fugir pra outro lugar em uma outra direção porque”

Daniel olhava na direção de Julie, dedicando aquela música à namorada. Por mais que estivessem vivos, a sua parte fantasma ainda falava. Ele não conseguia acreditar que de fato estava namorando Julie, a sua Julie. Tinham passado por tanta coisa e no final o medo de perdê-la ainda era forte em seu peito.

“Eu sei que isso é o fim do mundo

Eu sei que isso é o fim

Eu sei que isso é o fim

Eu sei que isso é o fim do mundo!”

Assim que acabaram a música, se surpreenderam pelos aplausos vindos da pequena platéia, que já estava de pé e batendo com vontade.

—O que acharam?

—O palco é de vocês se quiserem! Eu posso ir embora quando quiserem tocar.

—Os Insólitos não existe sem você, Julie. - Daniel disse meloso.

—Sempre vamos nos lembrar da Apolo, mas a nossa banda é com você agora. - Martin completou.

—Não sabia que vocês cantavam também. - Pedrinho se intrometeu.

—Ah, de vez em quando damos o privilégio de vocês nos escutarem. - Martin brincou. - Normalmente ficamos só como apoio, mas queríamos marcar a nossa volta no refrão.

Eles não tinham percebido, mas três horas já tinham se passado desde que haviam chegado, somente percebendo o tempo quando seu Raul apareceu na porta da edícula com lanchinhos para todo mundo.

—Opa! Pensei que estivessem com fome. Som pesado esse, hein? - Aquela era a sua maneira de dizer que tinha gostado.

E parando para pensar, aquela não era uma maneira diferente de se referir à música para Daniel, Félix e Martin. Se não tivessem sofrido o acidente, teriam quase a mesma idade que o pai de Julie. Podiam ter sido amigos de colégio até.

Fato esse que assustou um pouco Daniel, temendo que seu sogro o reconhecesse - tanto pela sua aparência quanto pela Apolo 81, mas até então ele nunca tinha falado nada.

E continuar a pensar que estivesse quase na meia idade se não tivesse morrido não era nada saudável, já que eles se sentiam e tinham dezessete anos.

—Espero que seus vizinhos não reclamem do barulho. - Félix confessou, roubando um sanduíche do amontoado de comida.

—Não se deve reclamar de música boa. Além do quê, vocês não ficam até tarde tocando.

—Mas não é todo mundo que curte uma bateria estourando em um sábado a tarde.

—Eu vejo mais como um show de graça para eles.

—Martin, nossos shows são gratuitos.

—Deveríamos repensar isso, então. Viu como a loja ficou da última vez? Deveríamos estabelecer um preço simbólico, para manutenção dos instrumentos e vagas na loja.

—Essa ideia não é ruim… - Julie opinou. - Precisamos ver com a Bia quanto poderíamos pedir sem perder público.

—Essa pode ser a nossa pauta para a reunião depois das suas provas finais. - Daniel decretou.

O intervalo não durou muito tempo, com os garotos logo voltando a ajustar a música, deixando Julie de fora naquele dia. Aproveitando o descanso, Julie resgatou o seu notebook e ligou para Bia através do msn, mostrando o desenvolvimento da nova música. Como não era boba, entrou no site da capricho e deixou ela mesma o seu voto em Martin na seção de colírios (e em mais dois ou três garotos), se divertindo com os comentários no perfil do baixista.

Não comentou nada, sabendo que se assim fizesse interromperia o ensaio. Deu uma olhada no site da banda, ficando aliviada que Nicolas não tinha falado mais nada sobre Daniel, mas sorrindo ao notar as cobranças de novos shows em outros comentários.

Decidiram encerrar o ensaio às 18 horas, com Félix e Martin indo passar um tempo com Pedrinho, deixando Julie e Daniel de lado - um passo arriscado com seu Raul em casa.

—E então…? - Daniel perguntou, chegando perto da namorada.

—A voz de vocês é incrível. - Julie sorria bobamente. 

—A sua também é, Julie. 

—Mas nem se compara a extensão vocal de vocês.

—Estava falando sério sobre deixar a banda?

—Não, mas fico feliz de vocês voltarem a cantar.

Com um sorriso de orelha a orelha, Daniel se aproximou de Julie, ficando bem perto do seu rosto. Estavam a poucos centímetros de se beijarem quando escutaram seu Raul batendo a porta do carro, indicando que poderia ir para a edícula a qualquer momento.

—....pode me ajudar com física? - Julie se afastou de Daniel, cortando qualquer clima.

—A colar ou a estudar?

—Estudar. Eu estava terminando a minha revisão quando Félix começou a testar a bateria.

—Vamos lá então.

Eles apagaram as luzes da edícula e trancaram a porta, subindo até o quarto de Julie  e deixando a porta aberta - uma novidade não muito confortável para eles. Julie puxou o seu caderno e indicou as questões que estava com dificuldade, emprestando seu livro de física para Daniel - que estava sentada relaxadamente em sua cama - para que ele se recordasse do assunto do segundo ano.

De longe ela ouvia as risadas de Martin, vindas do quarto ao lado, como também o seu pai reclamar com a televisão no andar debaixo, mas toda a sua atenção estava focada naquele caderno. Dependia das suas notas para passar de ano e ficar livre por três meses para se dedicar à música o quanto quisesse.

Não demorou muito para Daniel entender onde a namorada estava com dúvidas, puxando o lápis da sua mão e resolvendo o exercício em seu caderno, mostrando como ela deveria fazer, tomando até a ousadia de desenvolver alguns exercícios extras para ajudá-la. Ele permaneceu ao seu lado enquanto ela resolvia, passando mais de uma hora e meia sem que percebessem.

—Não podia ter me ajudado a estudar antes? - Julie perguntou, deixando o seu caderno de lado.

—E qual graça teria? Sempre quis fazer aquilo, e ainda te rendeu uma base de notas melhores para agora.

—É, mas tirou a minha base para estudar.

Daniel apenas deu de ombros, dizendo que aquilo não era problema dele, recebendo uma almofada no peito.

Eles ficaram se encarando por um tempo, desfrutando o silêncio do quarto, da maciez do colchão e do calor das suas mãos juntas.

—É tão estranho estar no seu quarto com você agora. - Daniel sussurrou, ciente da tensão que os envolvia desde sempre.

—Porque estamos juntos ou porque meu pai sabe sobre você?

—Mesmo que ficássemos juntos antes, só os garotos saberiam sobre nós. Eu poderia continuar vindo aqui a hora que eu quisesse e ficar de porta fechada. Mas agora…. Isso não me traz lembranças muito agradáveis.

—Já teve muitas namoradas? - Julie deduziu o óbvio.

—Só uma, mas que gostaria de esquecer se fosse possível, que nem Martin fez.

—Foi tão ruim assim?

—Foram só seis meses, mas ela tentou de todos os artifícios e argumentos para me afastar dos garotos e da Apolo 81. Dizia que passava mais tempo e dava mais importância para a banda do que para ela. Eu me odeio por tê-la escutado no último mês e ter me afastado, mas Josias abriu os meus olhos e eu consegui acabar com aquele relacionamento tóxico. Martin ainda se ressente por eu ter escutado Josias e não ele, mas eu achava que era só implicância dele com ela.

—Foi por isso que procurou alguém que também gostasse de música agora?

—Foi pura coincidência, eu juro. Não era minha intenção começar a gostar de você, mas as coisas foram acontecendo e cá estamos nós.

Julie olhou para a porta antes de se voltar para Daniel e roubar um selinho, sorrindo ao sentir a mão livre dele segurar a sua nuca, encaixando sua boca no lugar certo antes de pedir passagem com a língua. Aquilo era novo, por mais que já tivesse ficado deitada com Daniel em sua cama e dormido juntos, eles nunca tinham se tocado daquela forma tão íntima.

Os dois sabiam daquilo, por isso não passaram daquele beijo.

—Acho melhor já ir indo com os garotos. Tá ficando tarde e você ainda precisa terminar de estudar.

—Já estou ansiosa para terça… - Julie disse tristemente. - Nosso último ensaio antes de darmos a pausa de novo.

A famosa pausa para provas, as últimas provas do ano.

—Prometo que deixo você cantar na terça. 

—Deixa, é? Achei que você não fosse mais o líder da banda.

—Bem, tecnicamente eu quem te chamei para a nossa banda….

Julie não respondeu nada, apenas o empurrou para fora do quarto, vendo o mesmo ir até o quarto ao lado e chamar os garotos. Eles desceram as escadas e se despediram do seu Raul, saindo pela porta da frente levando Julie consigo. Seu Raul estava distraído demais na cozinha preparando o jantar que sequer reparou que sua filha havia saído junto - dando privacidade para que ela e o namorado se despedissem adequadamente.

Martin e Félix se despediram rapidamente de Julie e saíram na frente, deixando Daniel para trás. A luz do poste ainda estava bastante fraca, deixando a  entrada da frente na sombra. O escuro era propício para uns amassos - coisa que ele prontamente fez assim que grudou a sua boca na da namorada, envolvendo sua cintura com suas mãos. Julie sentia que ela beijava o Daniel cretino e não o fofo, e ela adorava aquilo. Aquele beijo definitivamente não era romântico mas sim toda a adrenalina do dia.

Daniel definitivamente amava estar vivo.

Tê-la beijado em seu quarto tinha despertado desejos antigos, como da vez em que tinha testado suas reações uns dias antes de voltarem à vida. Ele definitivamente queria voltar a beijá-la em seu quarto, provar para si mesmo que havia conseguido a garota dos seus sonhos.

Com dificuldades, Daniel se afastou com os lábios vermelhos, dando dois passos para trás antes de cogitar ser uma boa ideia beijar o seu pescoço.

—Agora comecei a cogitar se ensaiamos na terça ou se aproveitamos que seu pai vai estar fora para nos despedirmos antes da semana de provas.

—Ensaio, Daniel. Ensaio. - Julie se despediu dele, o acompanhado com o olhar até o final da rua onde Martin reclamou da demora com ele, recebendo um soco no ombro.

Infelizmente eles não teriam nenhum dos dois.

 


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