O grito estridente soou por fora do meu quarto e me pus de pé rapidamente, ignorando o pijama curto e apertado que eu usava desde os 13 anos, calcei a pantufa que me dava o luxo de usar, e sai rapidamente do meu quarto. Minha mãe já estava sentada na mesa da cozinha tomando a sua xícara de chá que ela tanto amava e assim que me viu abriu um caloroso sorriso. 

    — Bom dia minha flor. Acordou cedo hoje — disse enquanto checava a hora no antigo relógio — está tudo bem? 

    — Está sim mamãe! Escutei um grito, achei que tinha sido aqui dentro, mas pelo visto deve ter sido aquele esfarrapado do nosso vizinho. 

    — Não fale assim dele Mira! — repreendeu ela parecendo cansada. 

    — Digo, digo sim. Ele deveria ter vergonha da geração ridícula dele! Um bando de rebeldes, mamãe, aonde já se viu um Snow perto desse tipo de gente? 

     — Mirabella chega! — ela se levantou e apontou para meu quarto — vá se arrumar, não quero mais essa conversa enquanto você estiver morando na minha casa. 

     Revirei meus olhos, e voltei batendo os pés para meu quarto. Não acho certo ter que viver miseravelmente no distrito 2 enquanto meu lugar e minha herança está na capital. A capital! Meu sonho de consumo. Viver sob o luxo, não se preocupar em fuligem, ir para as academias mais renomadas, andar com roupas elegantes, e o mais importante: viver como uma Snow. Como diz a minha vó: "Snow cai como a neve, sempre por cima de tudo." Eu ainda teria tudo isso, mas no momento me resta a única coisa que amo no distrito 2: Amigos.

     Vesti a roupa da academia, me olhei no espelho. Não estava ruim. A camiseta preta com uma linha horizontal dourada junto com a calça também preta e bota eram usadas apenas para treinamento ou nos dias de colheita, preferi deixar meu cabelo solto já que estava levemente ondulado, ou seja, estava apresentável, e coloquei uma tiara dourada com pequenas flores como detalhe. 

     Saí sem me despedir de ninguém, procurei minha amiga no meio de tantas pessoas, mas baixei meu olhar assim que vi duas pessoas vindo em minha direção: Ethan e Cato.

     — Olhem se não é a famosinha Mira, Mira, Mirabella — Ethan disse de um jeito brincalhão que acabou arrancando um sorriso do meu rosto, mas logo fiquei séria lembrando quem ele é — por que você sempre usa uma tiara dourada?

     — Para lembrar de quem eu sou, uma... — Comecei a dizer mas parei quando percebi que estava prestes a dizer o meu sobrenome — Que sou superior. 

      — Doida — murmurou Cato — Se essa daí for para os jogos, não vai conseguir nada além de uma morte solitária merecida ainda.

     — Olha como você fala comigo garoto! Será que ninguém entende que os jogos só existem por gente dessa laia? — perguntei enquanto olhava para o Ethan — Se toca Cato.

     Dei meia volta, já devia estar atrasada então corri até ver o que costumava ser um portão vermelho, e apresentei meu crachá para o pacificador. Para muitos era uma simples chave de acesso, mas eu poderia considerar como se fosse algo maior, mas minha mãe desde a primeira vez que pisou no distrito 2, passou a querer esquecer sobre seu passado, e então meu pai apareceu o que fez ela a se jogar de cabeça na ideia do esquecimento, e passou a se chamar Rose Schiavon. Em forma de protesto, todos os anos que íamos tirar fotos para o Crachá, eu dizia apenas meu nome, todos ali sabiam que meu sobrenome era Schiavon, e isso era um problema. O pacificador me deu uma ficha bronze e eu a coloquei na porta que me liberou meu acesso. 

    — Mira, já estava te procurando — a menina pálida apareceu na minha frente.

    — Ah, oi Clover! acabei me atrasando — abracei ela com medo do que viria a seguir. 

    — Está tudo bem, sabia? Sei me virar se meu nome for chamado lá.

    Clover apareceu na minha vida em um dia comum para mim, fiz o mesmo caminho para academia, mas assim que cheguei, tínhamos que fazer dupla para uma produção de uma redação, com o tema "Princípios de uma guerra", em uma sala de quinze alunos, ela foi sorteada para ser minha dupla. Claro que não fiquei animada, aliás estávamos falando da menina nova que a família era a mais pobre da cidade, eu me rebaixaria a esse nível? Todos da sala começaram a olhar para mim. Levantei e caminhei em direção ao professor, mas assim que vi a menina encolhida na primeira carteira, fiz o que ninguém imaginava, sentei ao seu lado e sorri. Desde então cuidava dela como se fosse minha irma mais nova.

     Fomos organizados em filas para a inscrição, uma mulher sorridente checou nosso nome na lista, e assim fui enviada para a praça, minha mãe está ali e desvio o olhar, consegui ficar na primeira fila com os mais novos, não pela minha idade já que tenho 16 mas sim pela minha altura, isso é humilhante. Assim que o prefeito se levanta o silêncio paira sobre o local, ele começa a ler sobre o Jogos Vorazes, diz e enfatiza o fato de ter sido uma punição aceitável pelos ataques rebeldes, e acrescenta com orgulho, dentre os 13 distritos o único na qual se juntou a capital foi o distrito 2. Quando ele termina de falar, Clarice se levanta, a peruca azul e a maquiagem extravagante já diz muito sobre ela, e o fato da roupa dela ser branca com detalhes vermelhos mostra o quão irresponsável ela é sobre moda. 

     — Que a sorte esteja sempre a seu favor — A voz infantil dela pareceu ficar na minha cabeça por um bom tempo — Vamos começar com as damas.

     Clarice pegou os primeiros papéis, e jogou o segundo de volta, o único ruído era feito pelo sons do salto dela, e assim que chegou novamente ao microfone anunciou:

     — Mirabella Schiavon Snow. 

     As pessoas não precisaram se virar para me procurar, passei a mão ajeitando minha blusa e colocando novamente minha tiara no lugar, subi as escadas e comecei a sorrir, a Capital estaria vendo, e esse pensamento me fez enrijecer, mais uma humilhação, o que seria de mim? A garota Snow vivendo em um barraco do distrito 2 ao invés da mansão na capital, ja me via nas capas de revista, com um close tão desprevenido que seria capaz as pessoas pensarem que não estava preparada para isso tudo. Voltei para minha realidade, uma vez que eu fui criada para ir aos jogos, e meu lugar não seria tirado por uma garota que acha ser melhor do que eu, isso seria desonra. 

     — Ethan Lee — revelou o segundo nome.

    Isso sim fez meu sorriso desaparecer completamente. O menino com o mesmo uniforme que eu usava deu um passo à frente, a expressão brincalhona ainda pairava sobre seu rosto, os olhos escuros observava as outras pessoas, assim como eu, ele gostava do publico. Tentei disfarçar minha reação, mas ainda era possível notar a pequena ruga no canto do meu olho, tantos dias passei fazendo cremes hidratantes para a minha pele, foram jogados fora. Suspirei frustrada. Até o final do dia não me surpreenderia se no meio do meu cabelo escuro surgisse um fio branco. 

    O prefeito voltou a ler, já não prestava atenção. A capital está vendo, lembrei, e tratei imediatamente de colocar o mais belo sorriso, talvez agora nada tiraria ele tão fácil do meu rosto. 

    Dei um passo à frente quando anunciaram nossos nomes mais uma vez, agora eu e o jovem tributo estávamos um de frente para o outro, e com um ato ensaiado aprestei sua mão calorosa.    E sem mais uma explicação, fomos levados para o distrito da justiça. Hora de se despedir.