Colônias Galácticas escrita por Aldneo


Capítulo 14
Criacionismo




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CAPÍTULO 14

— Quando decidi por vir para Marte, - Ferdinan Mallus-Bernard contava sua história enquanto olhava o jardim de sua casa, por uma das janelas do escritório – e isto foi antes mesmo do início da Guerra, eu estava certo de que não retornaria à Terra, que findaria meus dias aqui, até porquê, já estava me aproximando dos cinquenta anos. A propósito, quantos anos você tem? - ele perguntou, olhando por cima do ombro para a jovem, que permanecia sentada diante da mesa e, pega de surpresa pela pergunta, não conseguiu responder mais do que um gaguejo, o que ele rapidamente ignorou, voltando-se novamente para a vista da janela e sua história – Não faz diferença, é bem visível que você ainda está muito longe desta idade, assim como da maturidade e experiência que ela traz consigo. Como dizia, estava certo de que minha vida terminaria aqui e, portanto, decidi que não abriria mão de passar meus últimos anos com todo o conforto que me fosse permitido ter. Você parece esperta, então deve ter percebido que o ambiente desta casa é muito mais agradável que o do restante da colônia. Isto se dá porque esta área é independente de todo resto da colônia. Possuí o seu próprio sistema de reciclagem atmosférico e hidrológico, um padrão especial de escudos ionizantes, etcetera… Eu não entendo muito destas questões técnicas, simplesmente mandei os engenheiros fazerem, eles fizeram e eu os paguei. O jardim foi uma das exigências, e uma das mais difíceis, e caras, de conseguir. Os cientistas do Instituto que me auxiliaram nos planos afirmavam que, uma vez recriada as condições climáticas semelhantes às da Terra, bastaria plantar as sementes no solo e as plantas nasceriam. Seria necessário, no máximo, adubar o solo com algum fertilizante, que, inclusive, me prometeram que conseguiriam sintetizar aqui mesmo, em seus laboratórios. As primeiras tentativas foram exatamente assim. Nem me lembro quantas levas de sementes foram trazidas para cá… Só sei que nenhuma germinou. Então decidimos tentar com mudas, as troucemos e plantamos. Elas morreram. Troucemos então plantas adultas e as plantamos aqui. Mesmo as variedades mais resistentes de gramas e ervas, e até xerófitas; sabe, aquelas plantas adaptadas a hostilidade de desertos… Nada vingou. Então decidimos misturar solo terrestre com o marciano, e isto acabou dando alguns resultados, algumas plantas conseguiram germinar; ainda que por pouco tempo. Elas pegavam, duravam uns tantos dias, até que começavam a amarelar e secar. Foi quanto fizemos a última tentativa, importamos centenas de quilos de solo da Terra. Hum, isto dá até um trocadilho, importamos “terra da Terra”. Porém, funcionou. Espalhamos o solo vindo da Terra e cultivamos plantas nele, e elas germinaram e cresceram. O resultado é o que se vê hoje. Sabe o que é curioso? Fazem décadas que fizemos isto, e, no último mês, pedi a alguns dos meus jardineiros que cavassem o solo para ver como estavam as raízes. Sabe o que encontraram? As raízes das plantas permaneceram somente na camada de solo vindo da Terra. Elas se espalharam horizontalmente, e algumas até se curvaram para cima, mas nenhuma entrou no solo marciano, pareciam até evitá-lo com esforço. Sabe o que isto significa?

Após findar sua história com um questionamento, o velho empresário caminhou de volta a sua mesa, tomando novamente seu assento de frente para Karine. Ela permanecia calada, demonstrando entender que aquela era uma pergunta retórica e que aguardava ver até onde aquela conversa os levaria, antes de se arriscar com alguma opinião ou resposta. Admirando-se com a perspicácia de sua ouvinte, Mallus-Bernard levantou as sobrancelhas, balançou a cabeça em sinal de aprovação, e retomou a fala, agora com uma pergunta direta:

— Já ouviu falar de algo chamado “criacionismo”?

— É uma crença religiosa, não? - a jovem finalmente respondeu – Diz que a Terra e tudo mais nela, inclusive os seres humanos, foram criados por alguma divindade… É um homem religioso, senhor Bernard? - ela falou esta última frase com um tom de estranheza, para não dizer escárnio, na voz, demonstrando que, ao seu ponto de vista, era incompatível alguém culto, rico e inteligente, como o empresário quintilionário a sua frente se mostrava, se apegar a tais crendices “retrógradas e ultrapassadas”.

— Não. Nunca acreditei em deuses ou qualquer coisa parecida. - o empresário “rico, culto e inteligente” respondeu rispidamente, demonstrando compartilhar da opinião que a jovem camuflara em sua pergunta – Mas esta história de criacionismo me chamou atenção, principalmente depois que passei a viver em Marte e acompanhar, em primeiro plano, os esforços para a colonização espacial. Sabe, a Terra tem um conjunto de particularidades tão específicos para dar suporte a vida, e tudo o que vive nela se mostra tão dependente de tais características… Entende que não é simplesmente a questão de atmosfera com oxigênio, água em estado líquido, uma temperatura específica, etcetera. Nosso planeta natal possuí diversas estruturas cuja finalidade parece ser unicamente garantir a existência de vida. Por exemplo, há proteções contra radiações nocivas vindas do espaço, tais como a camada de ozônio e os cinturões de Van Allen. Tais características não se encontram aqui em Marte, e nem em qualquer outro mundo conhecido. É como se a Terra houvesse sido “projetada” para conter vida…

— Mas, com todo o respeito, isto é um equívoco de ponto de vista - Karine lhe respondeu, com certo tom de desdém em sua voz. - Não é o planeta Terra que é adaptado para conter vida, são os seres vivos que, ao se desenvolverem sob o meio ambiente que lhes foi oferecido, se adaptaram a viver em tais condições, de forma a se tornarem, como o senhor disse, dependentes delas para sobreviver…

— Se fosse assim então, - Mallus prosseguiu calmamente – todos os planetas teriam vida, cada qual desenvolvendo formas que se adaptariam as condições que cada mundo lhes oferecesse. Entretanto, não é isto que vemos, em todos os mundos que exploramos até agora, embora eu saiba que isto é bem pouco comparado ao tamanho do Universo, não foi encontrado sequer uma única molécula orgânica.

— Acho que não é uma regra tão absoluta assim. Cientistas do Instituto lhe explicariam melhor… Mas são necessárias condições básicas para a vida surgir, e então ela se desenvolve conforme lhe for permitido…

— “Condições básicas”? Voltamos a questão de água e oxigênio? Água e oxigênio são substâncias químicas, e das mais abundantes no Universo. Europa mesmo é repleta de água e tem oxigênio na atmosfera, mas só o que há de orgânico nela é o que nós levamos pra lá. Questão de temperaturas? No polo sul da Terra existem formas de vida que resistem a temperaturas inferiores as encontradas naquela lua de Júpiter… Isto faz pensar: tais seres se adaptaram a estas condições ou foram planejados para viverem sob elas desde o começo?

— Daqui a pouco o senhor vai dizer: “No princípio, o Senhor Deus criou os céus e a terra…” - Karine retrucou sorrindo, como se estivesse contando uma piada.

— Se é para brincar deste jeito, por que não recitarmos também o Alcorão? “Deus criou o céu e a terra, e tudo o que há entre os dois, depois se assentou no Trono, para reger a Sua criação.” - diante de tal declaração, a jovem assumiu, em um reflexo, um olhar que mesclava estranheza e desaprovação, como que perguntando “você lê estas coisas?”, ao que Ferdinan se antecipou em responder: - Muitos dos que vieram morar em Marte eram “religiosos”, de início, os tentamos inibir, e chegamos até a apreender uns tantos livros. Depois, vimos que tentar lhes impor uma “proibição da fé” seria inútil. Cheguei a ler seus livros, buscando saber o que fazia esta ralé tão fanática a eles, e, também, porque acredito que toda a literatura pode ser proveitosa. Pelo menos quase toda, ao menos os livros publicados antes da literatura ser convertida numa indústria cujo único objetivo é vender o máximo possível, independente do conteúdo. O fato é, que o conteúdo destes livros se mostraram bem distintos do que eu esperava, mais do que uma coleção de fábulas obsoletas, possuíam também partes com uma filosofia admirável, talvez se as pessoas realmente os seguissem…

Karine sentiu vontade de dar uma resposta deseducada ao velho, que, agora, ante seus olhos, perdia cada vez mais a imagem inicial de filantropo, e assumia a de um retrógrado arrogante e decrépito; porém se conteve, e decidiu por deixá-lo continuar com seu falatório.


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