O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 37
∾ Eu não disse o que precisava dizer e agora já não sou o mesmo.


Notas iniciais do capítulo

Olá, meus colegas! Como estão? Vamos seguir o baile!



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A fumaça do cigarro ardia em sua garganta tal como o mormaço esquentava a pele de seu rosto. Quando a assoprou, enrolada e branca, esticou o olhar para o céu azul. Seus olhos arderam no primeiro contato, porém, manteve-se a encarar o grande amarelão arredondado no centro das nuvens até seus olhos lacrimejarem. Então fechou os olhos e permitiu-se sentir o calor do sol invadir seu rosto até pinicar nos pelos de sua barba. 

Um arquejo escapou de seus lábios, antes de voltarem a abocanhar o filtro do cigarro. Respirou profunda e intensamente, saboreando o doce ar da manhã de primavera. O sol se espreguiçava no céu, avançando aos poucos, trazendo um brilho revigorante. Era satisfatório e agora, com a chuva dando uma trégua, o calor quase o recordava do verão. 

Um baque forte surrupiou sua atenção. Abrindo os olhos de supetão, encontrou mais uma das dezenas de caixas de diversos tamanhos espalhadas pela portaria. Junto dela, seu melhor amigo se aproximava, batendo as palmas das mãos uma na outra para limpar a poeira. Um suspiro cansado saiu de sua boca enquanto ele se espreguiçava. 

— São só essas? — Nirav perguntou. 

— Por enquanto, sim. — respondeu com seu semblante exausto de quem passou os dias empacotando coisas e dormindo em um colchão improvisado. 

Descartando o cigarro, ele adiantou-se para ajudar o amigo a colocar as caixas em seu porta-malas. 

Quando o chamaram para ajudar na mudança, Nirav foi pego de surpresa com a notícia. E embora estivesse animado quanto a isso, não pode deixar de sentir um leve baque quando chegou ao antigo prédio de Theo. Apesar de pequeno e rudimentar, era ali que estava guardada a maior parte da história entre eles. Ali estava as reuniões entre os amigos, as noitadas em claro, as risadas, as lembranças de cada momento que passaram juntos. E era difícil deixar isso para trás. 

Várias vezes tentou espiar a feição do amigo, que estava quieto e introspectivo naquela manhã. Encontrou em seus olhos um véu de melancolia cobrindo-os até deixá-los opacos. Ele não falava nada, mas Nirav sabia que também estava sentindo o peso da mudança.  

— Não vejo a hora de me livrar dessas escadas. — Theo reclamou, depois de pôr as caixas no carro, esfregando a própria coluna. 

Deram um instante para recuperar o fôlego antes de continuarem com a movimentação. Hester não iria se importar com um breve intervalo. Além do mais, precisavam esperar por Helena, que ainda não havia dado o ar da graça por ali. 

Contentaram-se com um silêncio forçado, sem terem o olhar um do outro por muito tempo. Havia várias coisas que Nirav gostaria de conversar com Theo e, boa parte dessas coisas, não era sobre o apartamento que estava deixando para trás. Ainda assim, quando decidiu abrir a boca, tudo o que saiu de seus lábios fora algo tão previsível quanto simplório. 

— Vou sentir falta desse apartamento. — comentou, arrastando o olhar do prédio para o amigo. 

Theo esboçou um sorriso afiado, anuindo com a cabeça. 

— É, você não é a primeira pessoa que diz isso... — o sorriso se desfez, dando espaço a um fungar. — Eu também vou sentir falta. Sabe, tenho receio de não conseguir me acostumar a outro lugar, depois de tanto tempo morando aqui talvez eu não consiga me sentir em casa. 

— Hester vai estar lá, então vai saber que está em casa. 

O sorriso voltou o rosto arredondado. Ele olhou para Nirav, que retribuiu. 

— Você devia fazer o discurso do casamento. 

— Nem pense nisso! — Nirav meneou com avidez, arrancando um riso do colega. 

Uma voz repentinamente próxima os assustou: 

— Eu concordo! 

Helena, como um gato, se aproximava por trás deles, exibindo um sorriso satisfeito pelo susto. Apesar do sorriso, seus olhos demonstravam a relutância em se dispor a ajudar. A roupa desordenada e os cabelos presos em uma trança improvisada fizeram Nirav perceber que só apareceu por pura pressão familiar. 

Theo estalou os lábios, ranzinza. 

— Olha só quem resolveu aparecer, finalmente! — implicou. — Pensei que não viria ajudar sua própria irmã. 

— Ai, me desculpe! — ela forçou uma voz ressentida, pondo as mãos sobre o peito. — É que eu realmente não queria vir! — confessou, fazendo uma careta. — Estava com preguiça. Hoje é meu único dia de folga e vocês resolveram me tirar de casa. 

Nirav não conseguiu conter uma risada, o que irritou a Theo. 

— Pelo menos ela é sincera. — ele disse, revirando os olhos e retornando para dentro do prédio. 

Sozinhos, os dois trocaram olhares, sapecas e arteiros. Helena mordeu a ponta da própria língua, parecendo uma menina arruaceira. E então, restou aos dois levar o carregamento de caixas para a nova casa. 

Não podia negar estar ansioso para conhecer o local, seria a primeira vez antes da mudança completa. Helena já conhecia bem, por isso estava ali para ajudá-lo a seguir o caminho certo, fazer as curvas corretas até o lugar exato. Ele se surpreendeu ao ver que havia caminhos em Florencia que ainda não conhecia. Apesar de todos aqueles anos, a cidade continuava como uma caixinha de surpresas. 

Para o início do fim de semana com um clima tão agradável, Florencia estava consideravelmente vazia. Embora as lojas e as lanchonetes estivessem abertas, quase não se via uma viva alma andando pelas calçadas e o trânsito estava tão livre que fazia parecer seu carro o único na cidade. Vez ou outra cruzaram com algumas pessoas ou deram passagens para algumas motos. No geral, a cidade parecia continuar entregue ao preguiçoso rastejar da manhã. 

Talvez, pelo mesmo motivo, Helena também estivesse tão carrancuda. Sentada ao seu lado, no banco de carona, tinha o rosto endurecido com a testa franzida e retorcia os lábios pelo tédio. Nirav não conteve uma risada, notando sua insatisfação, o que puxou sua atenção. Ela fechou os olhos, irritadiça, meneando a cabeça. 

— Não sei porque eles querem tanto se mudar. — bufou, apoiando o cotovelo na janela do carro e a cabeça na própria mão. — É querer caçar chifre na cabeça de cavalo! 

— Alguém não está de bom humor hoje. 

Helena sorriu, abaixando a cabeça. 

— Desculpe, não queria parecer rabugenta. — suspirou, arqueando as sobrancelhas. — Eu só acho que o apartamento já é um bom lugar para se viver a dois. 

Nirav sentiu suas palavras, anuindo. No fundo, não só ele estava sentido com toda a mudança. Era algo que dizia respeito a Theo e Hester, porém, afetaria todo o grupo. Afinal, estavam tão acostumados com aquelas paredes antigas, os cômodos apertados, a sacada com vista para cidade, que parecia impossível superar as histórias lá deixadas. Era normal que todos sentissem saudade, então. E Nirav pegou-se perguntando se Juno, que só o visitou uma única vez, também se sentiria assim. 

— Talvez eles queiram aumentar a família. — sugeriu, dando de ombros. 

— Oh. — Helena fez uma careta, revirando os olhos. — Deus nos ajude! 

Ele riu de novo, acotovelando-a de leve com diversão. 

— Então, você e Alice são os próximos? — ela devolveu usando seu melhor tom sarcástico, entrando na brincadeira. 

— É mais fácil você e Sarah serem as próximas. — respondeu, evitando o contato visual de propósito. 

— Claro! Por que não? — um riso divertido e escarnecedor fugiu dos lábios de Helena. — Não sente vontade de se casar? Imaginei que toda essa coisa da minha irmã com Theo iria inspirar você... 

Nirav respirou fundo, ponderando, então deu de ombros. 

— Não me importaria em juntar os trapos, morar junto ou coisa do tipo. Só não tenho vontade de formalizar qualquer coisa. 

— E o que ela acha disso? 

— Ela quem? 

— Alice?! — Helena o olhou, franzindo o cenho. Um resquício de sorriso afiado assombrava seus lábios. — Quem mais? 

Ele a olhou de volta, sem conseguir ignorar o semblante sugestivo da amiga. Por isso, sentiu-se sem graça. 

— Ela entende. Já conversamos sobre isso. 

— Mas ela sente o mesmo? 

— Bem, ela deu uma resposta ambígua... 

— Então ela não sente o mesmo! — sentenciou. 

Dando-se por vencido, ele assentiu a contragosto, entregando a razão para Helena com um suspiro. 

— Acredito que não. — sua voz pesou nesse momento, fazendo-o perceber que, na verdade, estava sempre fugindo desse assunto. — Eu não quero magoar as expectativas dela, então talvez, algum dia, vamos chegar a algum consenso. Ainda é muito cedo, de qualquer forma. 

— Cedo? — Helena pestanejou. — Você já tem trinta anos. 

Nirav fez uma careta, olhando-a de soslaio. 

— Está parecendo minha mãe! — reclamou. — E fala como se você fosse muito nova... 

— É, mas eu não estou com medo do amor, muito menos fugindo dele. 

— O que diabos isso significa? O que quer dizer? 

Helena somente deu de ombros, recolhendo-se com um bocejo e deixando-o sem resposta, apenas com a feição aturdida sem entender os enigmas impostos. Por mais que tentasse adverti-la com seus olhares penetrantes, qualquer reação que Helena lhe dava era o mero apontar para o caminho correto. E o venceu pelo cansaço, enfim ele desistiu. 

Tirando sua atenção da mulher que impusera mistérios sem soluções, Nirav pôde prestar atenção e perceber para onde estavam indo. O interior da cidade surgia perante o volante do seu carro, pouco a pouco dando lugar a uma vegetação mais densa com menos presença urbana. Não era um lugar novo, muito menos desconhecido. Na verdade, conhecia muito bem onde aquele caminho dava, só havia anos e mais anos que não se atrevia a se aproximar. Florencia era como uma caixinha de surpresas, não só pelas novidades desconhecidas, também pelas coisas que já sabia e mantivera guardada por tempo demais. 

Estava diferente depois de todos os anos que se passaram. O asfalto prosseguia por muito mais quilômetros do que se recordava. Entre o verde algumas construções se erguiam, casas ou fazendas, pousadas e condomínios. Só então percebeu o quanto Florencia estava crescendo. Entretanto, assim como ainda era a mesma cidade, a estrada ainda dava no mesmo lugar. A cachoeira. 

Um sentimento que não ousou nomear subiu por seu peito em direção a sua garganta, apertando-a com dedos gentis, mas que apertava mesmo assim. E, aos poucos, sua mente tornava-se turva, manchada pela névoa de uma memória intacta, porém guardada à força. 

De repente, manipulado por lembranças, o asfalto terminava e a estrada de chão tomava conta. Não havia mais casas, apenas algumas propriedades de fazendeiros ao longe. Duas bicicletas cortaram, ultrapassando o seu carro, pedalando de forma imprudente pelos cascalhos da estrada. Mesmo de dentro do veículo, conseguia escutar a risada exagerada da moça em seu belo vestido estampado de margaridas, resultado das provocações do rapaz magricela desconcertado, levando o coração nos olhos brilhantes. Eles continuaram seguindo e seguindo, sem olhar para trás. E Nirav não sabia se queria gritar para que parassem ou se queria segui-los até o inevitável fim. 

— Eu conheço essa estrada… — murmurou, tentando voltar à realidade, ignorando as bicicletas que desapareciam no horizonte. 

Helena pareceu nostálgica ao concordar. 

— Uma vez trouxemos Juno para cá. Passamos o dia em uma fazendo, sob a sombra e tomando água fresca. — contou, perdendo-se em suas próprias lembranças. — Gostaria de voltar para aquele dia e ficar lá. Talvez seja por isso que Hester escolheu aqui para morar. 

— Também estive aqui com ela. — ele respondeu, sentindo o olhar de Helena acompanhar suas palavras. Era provável que já soubesse da história que tinha nos lábios, a história que se proibiu de contar. — Agora parece ter sido em outra vida. 

Helena nada disse, embora um sorriso repousasse em seus lábios. Apenas indicou ao muro de tijolos vermelhos próximo a curva. Tinham chegado. Quando Nirav parou o carro, tornou a olhar para a estrada, encontrando-a até onde a vista alcançava. Em algum ponto mais para frente, se recordava-se bem, precisaria tomar um atalho pela vegetação e, com alguns passos a mais, encontraria o abandonado vagão de trem e, logo depois, a cachoeira. O vagão ainda estaria lá? A cachoeira permaneceria igual, correndo em segredo com suas águas cristalinas? E Juno? Estaria lá esperando por ele, nua sob a dourada luz do pôr-do-sol? 

Seus devaneios foram ofuscados apenas pela presença da propriedade diante de seus olhos. Única e bela o suficiente para roubar não só sua atenção, como seu fôlego. Era quase como ver a casa dos sonhos de algum conto de fadas antigo tomando forma bem diante de sua vista. 

Atrás do muro médio de tijolos vermelhos, repletos com pequenas trepadeiras estendendo seus braços pela extensão, havia um pequeno jardim com alguns arbustos começando a florir. Diante de um pequeno corredor de pedras brutas cavadas na terra, estava a casa. Não era grande, apenas um andar. Tinha as paredes cor de pedra antiga enquanto a porta e janelas eram de madeira clara. E as janelas eram tão grandes quanto a porta. Embora tentasse espiar pelo vidro, não conseguiu vislumbrar o interior por conta das cortinas já postas. De qualquer forma, conseguiu espreitar o quintal interior, de onde apontavam a copa de algumas árvores frutíferas novas. E era o que a casa era, apesar do seu tom envelhecido, era uma casa nova. Um sorriso percorreu seu rosto. A casa perfeita para seu amigo, a mistura do antigo e do novo, do simples com o rebuscado. E pensar que ele estava nervoso, receando não se sentir acomodado. 

— É incrível. — Nirav admirou-se. 

— Precisa ver por dentro! — Helena concordou, ao seu lado. — Apesar de achar um exagero. 

Ele riu, balançando a cabeça. Então, ela o acotovelou para que pudessem começar a desocupar seu porta-malas. 

Sem terem a chance de entrar na casa, tiveram de depositar cada caixa perante a entrada, organizadas sob a marquise para que uma chuva não arruinasse os pertences do casal. O que menos queriam era a responsabilidade por um possível desastre. 

O humor de Helena pareceu piorar enquanto retiravam as caixas, Nirav teve de ouvi-la resmungar e segurar a risada caso não quisesse apanhar. Por isso, quando terminaram, ofereceu um cigarro para que se acalmasse e recebeu um fuzilante olhar da mesma.  

Com um sorriso no rosto, ele se encostou no muro, mantendo a visão sobre a casa. Repousou o cigarro oferecido a Helena nos lábios e o acendeu. Não demorou para que ela se juntasse, parando ao seu lado com um semblante preguiçoso. Eles mereciam um intervalo. 

— É um belo lugar. — Nirav comentou, puxando assunto na tentativa de animá-la um pouco. 

Ela pareceu refletir e nada disse sobre o seu comentário. Cruzou os braços e passou do lado para a sua frente, tendo a oportunidade de visualizar seu rosto, analisando-o.  

— Então... 

— O que foi? — perguntou após assoprar a fumaça para longe, notando seu olhar. 

— Vai me odiar se eu perguntar sobre a Juno? 

Nirav suspirou, passando a mão esquerda e livre sobre a barba, alinhando os fios com os dedos. 

— O que tem a Juno? 

— Diga-me você, o que tem a Juno? — ela arqueou as sobrancelhas. 

Ele queria poder saber responder, entretanto, sentia-se inconsistente. Ao mesmo tempo que sabia o que era certo a se fazer, não conseguia tomar nenhum tipo de atitude. 

Helena notou sua hesitação e prosseguiu: 

— Ela me disse que contou a verdade a você. — revelou, fazendo-o franzir o cenho. Nirav percebeu que até Helena já sabia sobre tudo, apenas ele preferiu permanecer na ignorância. — Como foi? 

Respirando fundo, ele tomou um tempo antes de responder. O cigarro entrava e saía de seus lábios acompanhado da espessa fumaça. Sua mão esquerda agora passava por seus cabelos. E de tanto pensar, notou que não havia resposta fácil para aquela pergunta. O rosto de Juno marcado pelo pranto ressurgia em sua mente recitando as palavras que esmagavam seu peito, torturando-o por dentro. E lá ficou, sozinha, abandonada, esperando por ele. Mas ele já não estava mais lá. 

— Como você acha? 

— Ela disse que você desapareceu. 

Nirav fechou os olhos, sentindo a culpa afrontá-lo. O quanto devia estar magoando-a com sua covardia, fazendo parecer que não só desacreditava em suas palavras como também não se importava com suas dores. Era um idiota. Um idiota completo. 

— Eu não sabia como reagir. — confessou a Helena, desviando o olhar para baixo covardemente. — Eu não consigo não me sentir culpado. 

— Você não tem culpa... 

— Eu não fiz nada por ela! — cortou-a, levantando o rosto e encarando sua própria verdade pela primeira vez. — Eu estava ocupado demais sentindo raiva por ter sido rejeitado, cego demais pelo meu próprio orgulho, incapaz de perceber tudo o que ela estava passando. 

Helena passou a língua sobre os lábios, anuindo com a cabeça. Ela estava concordando para a sua surpresa. 

— Eu entendo esse sentimento, eu também me senti assim. — admitiu. — Mas as coisas não funcionam assim. Não é culpa sua não saber o que estava acontecendo. 

— Eu sabia. — disse com convicção, endurecendo seu semblante. — Ainda me lembro da noite em que conheci Nicholas. Ela não era a mesma pessoa quando estava com ele. Estava distante, quieta e vazia. O jeito como ela parecia se conter ao lado dele... não era normal, não podia ser. Eu falei isso para Theo e eu não fiz nada. 

Dessa vez, Helena pareceu sentir o peso de sua confissão. Embora seu rosto trouxesse um tom acolhedor, conseguia sentir o ressentimento por suas palavras. Era uma verdade dura, difícil de contar para si mesmo e ainda mais para terceiros. E por isso tinha sido tão covarde. 

Com um trago a mais no cigarro, ele limpou a garganta. 

— E descobrir que ela também me amava! Eu sabia, sempre soube. — a fumaça escapava por seus lábios conforme falava. — E fui incapaz de ir atrás dela, por todo esse tempo, por estar com raiva. Estava com raiva por ter me abandonado quando, na verdade, não teve escolha. No fim, também não dei escolha a ela. Sentenciei ela como se fosse dono da verdade. Quantas coisas não seriam diferentes se eu tivesse tomado qualquer atitude? Eu não consigo olhar para ela sem me sentir envergonhado por não ter feito nada, por não ter lutado por ela, por não ter estado ao lado dela quando precisou de mim. 

— Sim, poderia ter feito de tudo. Feito qualquer coisa e feito nada. Não é tão fácil, não é simples, Nirav! 

A voz cortante atingiu-o com força. Olhando para Helena, descobriu sua expressão séria ao encará-lo. O sermão estava na ponta da língua e ele estava pronto para ouvi-lo, pois sabia que merecia. 

— Eu sei que está se sentindo mal por não ter feito nada. Sei que gostaria de poder ter feito mais, aposto que todos gostariam! O que importa é que ela está aqui agora, superando, vivendo a vida que merece. É verdade que ela não deveria ter passado pelo que passou, ninguém deveria. E, entretanto, ela conseguiu sobreviver! Então, isso não é sobre como você se sente acovardado, é sobre ela. Eu entendo que esteja com raiva, tem todo direito de estar. Mas do que serve essa raiva agora? Ela não quer a sua raiva, seu ressentimento. E eu tenho certeza que ela não quer que sinta pena pelo que ela sofreu, porque ela não é o que aconteceu a ela! 

Helena estava certa e sua sinceridade cortava como faca. Não havia outra forma de pôr as coisas, era o que era e ela estava certa. Não era sobre ele, sobre se sentir culpado ou envergonhado. Não era ele a vítima da situação. E devia parar de olhar para si mesmo, devia recolher sua auto piedade desconcertante e focar em quem precisava. 

Ele concordou, com um aceno simples de cabeça. 

— A pior parte é ela me pedir perdão. Como posso perdoá-la? Perdoá-la por algo que ela sofreu? 

— Por que ensinaram a ela que sempre esteve errada. E que era uma mulher traiçoeira, sem qualquer tipo de caráter por ser infiel. Acha que ela também não se sente culpada? Envergonhada? Por que acha que ficou tanto tempo em silêncio, guardando seus segredos? 

Nirav sentiu os olhos arderem e, embora quisesse culpar a fumaça do cigarro, soube que era a vontade de chorar. Por sorte, seus cabelos já estavam compridos o suficiente para cobrir seus olhos e esconder a vermelhidão do pranto contido. Contudo, Helena notou seu silêncio e abordou uma postura mais tranquilizante, tocando seu ombro com um afago. 

— Quando Juno partiu, lembro da bagunça que ficou. — ponderou com a voz baixa. — Lou estava arrasada, desiludida, se sentido traída. Theo estava agindo como um pai velho e ranzinza com aquele maldito discurso de “eu avisei”. E Hester estava com raiva, desapontada, como estava ainda nos últimos dias. E era compreensível, porque sabíamos tão pouco e o que sabíamos era intolerável. 

— Você foi a única que nunca disse nada sobre ela. 

— Porque o que eu tinha para falar não tinha espaço, a raiva tinha consumido tudo. Eu preferi esperar a decepção passar para que pudéssemos pensar e ver melhor. Então ela nunca voltou e eu comecei a acreditar que, talvez, estivessem certos em sentir raiva. Por um tempo, realmente quis acreditar que ela era a péssima pessoa que viam por ter te usado e fugido. 

— Mas não acreditou. — ele observou-a anuir. — Então, o que teria dito? 

— Não desista dela. Não importa se parecer que não há mais nada entre vocês, sempre vai ter algo a mais, ainda que seja só a presença um do outro. E se for só isso, então é só o que importa. Por favor, não desista de vocês, não desista dela. 

— Eu não vou. Não posso. — ele sorriu. — Não me perdoaria. 

— Que bom, deixe ela saber disso. — enfim, se espreguiçou, respirando fundo. — Agora vamos, pois ainda temos muitas caixas pela frente. 

Com o sorriso nos lábios, ele descartou o cigarro e seguiu Helena. 


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Notas finais do capítulo

Nada melhor do que um puxão de orelha dos nossos amigos, não é mesmo? Às vezes, é tudo o que precisamos!



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