O Caminho das Estações escrita por Sallen


Capítulo 36
∾ E eu não consigo resistir em me render.


Notas iniciais do capítulo

Olá, novamente! Seguimos com um breve atraso, mas seguimos!



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Depois de um longo dia, a tarde começava a despedir-se de Florencia, fazendo uma gloriosa saída com um espetáculo de tons alaranjados e roxos no céu. Um tom amarelado cobriu a cidade, por conta dos últimos raios solares que ainda se estendiam preguiçosamente. O ar, embora carregado, era inebriante oferecendo um cheiro de terra molhada, pedras úmidas e calor.  

 O horário de pico obrigava as pessoas a se apressarem para chegarem logo em casa, assim como tumultuava o tráfego. Era um dos momentos em que a cidade se tornava mais barulhenta, quase caótica. E mesmo assim, não era nada irritante escutar a bagunça do fim do dia. Também não era ruim estar dentro da bagunça em si, tendo os pensamentos abafados pelo som de buzinas e os sentimentos esmagados pelas calçadas movimentadas.  

Nirav prendeu a respiração ao olhar em volta, como se temesse encontrar algo que sequer estava procurando. Mas estava. E não tinha lá. Entre todos os transeuntes, os rostos desconhecidos, silhuetas diferentes, não estava lá quem queria encontrar. Talvez o destino já estivesse cansado de dar-lhe chances para esbarrar com alguém pela desculpa do mero acaso. Teve a sua chance e a afugentou como um covarde. Raramente o destino continua provendo segundas e terceiras chances para aqueles que não estão dispostos a agarrá-las como se fossem a última.  

Apesar de estar procurando uma pessoa, no entanto, havia outra em seu lado. Também parecia perdida no olhar vago pelas ruas, tentando evitar a conversa que parecia inevitável. Alice parecia tentar ignorar o seu silêncio, andando ao seu lado como uma simples casualidade.  

Aproveitavam a trégua da chuva para caminhar entre as construções abafadas e umedecidas, passando através das calçadas recém lavadas que exibiam o brilho molhado. Depois de um dia de trabalho pesado, uma caminhada como aquela era como um sopro de alívio. Ainda que o clima entre os dois não fosse tão agradável quanto.  

Trocaram algumas palavras incertas desde que saíram do serviço. Era mais fácil conversar entre aquelas paredes, pois parecia haver um roteiro implícito do que deveriam dizer, como deveriam reagir e responder e qual a postura correta para se manter. Quando cruzavam a porta de vidro, deixando para trás os computadores, os dados e a linguagem técnica, o mundo parecia se tornar mudo para os dois.  

Agora, quando Nirav olhava para a moça que andava ao seu lado, centímetros longe de tocar o seu braço, não sabia o que dizer. E ela parecia trazer no rosto a expectativa de suas palavras, o traço de uma esperança no brilho dos olhos tímidos, a boca ansiosa se abrindo e fechando. Queria corresponder aos seus desejos, porém temia continuar magoando-a, vezes seguidas de outras, até que seus pedidos de desculpas já não significassem tanto quanto o vento.  

Era difícil não se comparar ao pai com seus inúmeros pedidos de desculpas vazios. Sempre tão repetitivos, cheios de inúmeras promessas que, no fim da noite, não tinham peso algum. E reconciliações sempre tendem a se tornarem, não só repetitivas, também inúteis quando não se tinha intenção de mudar. Nirav tinha intenção de mudar, queria fazer as coisas certas como havia prometido. Só temia não ser capaz.  

— Então, você conversou com ela? — Alice perguntou, enfim, decidindo dar por encerrado o silêncio ensurdecedor entre eles. No fundo, Nirav agradeceu.  

Ele respirou fundo, pondo a mão esquerda dentro do bolso frontal de sua calça jeans. Sentiu o maço de cigarro roçar em seus dedos e ignorou a ânsia de puxá-los para fora.  

— É um jeito de se dizer. — respondeu, cabisbaixo.  

Havia-a pressionado até falar, quase a chantageado com seus sentimentos que não eram obrigação nenhuma de ninguém, exceto sua própria. E não estava orgulhoso disso, muito menos satisfeito de saber a verdade de forma tão violenta. Estivera tão obcecado com sua própria perspectiva que não havia respeitado a dela. Estava deixando um rastro de violências pequenas que se acumulavam até se tornarem grandes o suficiente. Agora entendia a razão da distância, do receio, da furtividade de Juno em não querer se abrir. Ele havia pressionado uma ferida ainda aberta, não para curá-la, apenas para sangrar mais.  

— E como foi?  

— Como eu imaginei que seria. Terrível. — disse, recusando olhar para Alice. — A verdade esteve sempre ali, eu só decidi ignorar.  

Eles pararam, então. A caminhada pareceu insuportável diante de um assunto tão delicado. Além de tudo, os pingos grossos voltavam a cair, retomando um ritmo consistente. Tiveram de se refugiar no primeiro estabelecimento de portas abertas. Uma pequena lanchonete, com mesas e cadeiras de ferro sob uma imensa marquise de vidro embaçado.  

Alice diminuiu a distância entre eles, procurando a intimidade dos segredos que compartilhavam. Quando deu a chance de olhar para ela novamente, notou em seu rosto a curiosidade genuína. Não só de saber o que houve, mas entender. E assim, soube que podia confiar nela.  

Demorou a responder, entretanto. Não sabia por onde começar. Sua mente, por todos esses dias, estava um turbilhão ao tentar ponderar tudo o que havia descoberto até perceber que não sabia de nada, na verdade. E se tentasse imaginar era como se torturar.  

— O problema era Nicholas, sempre foi ele. — disse, então, encostando-se na parede. Sua voz carregada arranhava ao sair de sua garganta. Era estranho compartilhar aquilo com outra pessoa, senão Juno. — Ele tirou tudo dela até só sobrar ele. E como você pode se livrar da única pessoa que você pode ter?  

Ela hesitou, um instante, piscando em sua direção ao absorver suas breves palavras. Afinal, embora não esperasse tal desfecho, meia palavra bastava.  

—  Está me dizendo que... — sua voz mingou ao cogitar a conclusão do que escutava, como se parecesse uma ameaça a ela também.  

— Como alguém pode destruir a vida de outra pessoa e ainda achar que isso é uma forma de amor?  

— Abuso. — respondeu, acentuando a sonoridade da palavra.  

— Sim, vamos chamar pelo nome certo.  

Então, silêncio. Por um longo momento, apenas o barulho da chuva se fez presente. Embora a rua estivesse movimentada em seu horário de pico, o peso do silêncio entre os dois parecia mais opressor. Eles se entreolharam na quietude de suas palavras, segredando a dor da verdade apenas no olhar, tentando ter as respostas de forma implícita, com receio suficiente de perguntar em voz alta.  

Depois do que pareceu uma eternidade, os pensamentos de Alice pareceram se tornar pesados demais para serem mantidos para si mesma.  

— Por todo esse tempo? Como ela suportou? Como... — do mesmo jeito que começou também acabou, sem resposta. Apenas o suspiro com a expectativa.  

— Eu não sei os detalhes. Não tive coragem de perguntar.  

A sua covardia a deixou sozinha para se afogar no próprio pranto. Estava assustado demais, incapaz de suportar encarar a própria fraqueza, agiu como um verdadeiro covarde. Seu pai estaria orgulhoso. Talvez até Nicholas estaria. Não era tão diferente deles, afinal.  

Sentia-se um grande fracasso. Por tanto tempo, fingiu não saber a verdade, precisando arrancá-la quase à força. E então, o que fez quando descobriu?  

Não importava os detalhes, essa era a verdade. Não lhe interessava saber o quanto Juno havia sofrido se não era capaz de curar suas dores. O que importava era ter dado a ela o que, por tanto tempo, nunca teve. A segurança de um abraço, o refúgio do seu acolhimento, a garantia da sua proteção. E, no entanto, não foi capaz de proferir uma palavra genérica para confortá-la.  

Deveria ter tentado. Dar a ela o calor de seu abraço, o som de suas palavras, o conforto do seu apoio. Tentar amenizar as suas dores, mesmo aquelas que não podia ver. Ela merecia ao menos isso. E, no fundo, era o que gostaria de ter feito. Então, por que fugiu?  

— Minha nossa, não consigo imaginar como foi para ela. — Alice o roubou de seus tormentosos pensamentos. — Todo esse tempo e... tantas deduções! E ninguém sabia!  

— Eu sabia. — confessou com um fio de voz. — Sempre soube.  

— Como poderia saber?  

Nirav deu de ombros. Seria incapaz de explicar a ela como sabia e ela jamais conseguiria entender. Não estava a subestimando, só era complicado demais até mesmo para ele. Muitas das vezes, não encontrava resposta para perguntas como essa.  

— Eu sempre soube e nunca fiz nada. Quando ela voltou, eu preferi dar ouvidos ao meu ponto de vista de rejeitado, abandonado, pois era muito mais confortável. Não tive coragem de encará-la. Eu preferi só não saber. E agora, me sinto tão culpado.  

— Nem tudo é tão simples assim, Nirav. Não tem de se culpar por isso, porque não é sua culpa. Deduzir ou desconfiar não é o mesmo que saber da verdade e você não sabia, não tinha como saber...  

— E agora que sei, o que eu fiz com isso? — retrucou, elevando a irritação na voz, demonstrando a raiva que sentia. — Não consegui nem dizer que sentia muito por ela. Não consegui dar uma desculpa qualquer. Só... fui um grande covarde porque estava assustado demais.  

De repente, Alice tornou-se silenciosa, fazendo-o questionar o que havia dito. Pensou ter exagerado em suas palavras, ultrapassado mais limites ainda. Entretanto, quando encontrou sua face, notou-se surpreendido com seu semblante afável.  

— O que importa, agora, é que ela não está mais sozinha. — pontuou, olhando dentro de seus olhos. — Você também está com ela de alguma forma.  

Alice era toda empatia. Em sua voz trêmula, em seus olhos úmidos, em seu toque carinhoso. Nirav não estava surpreso por isso, era do feitio de Alice ser sempre disposta a acolher. Só precisava ter a oportunidade, oportunidade cuja qual ele a negou. Por isso, quando olhou para sua face sentiu-se surpreendido, pois notou que Alice se colocava no lugar de Juno. Quando dizia que Juno não estava sozinha era por também não desejar estar caso fosse ela, a vítima.  

— E está tudo bem para você quanto a isso?  

Alice suspirou, desviando o olhar momentaneamente antes de voltar a encará-lo.  

— Eu sei que falei coisas horríveis, e peço perdão por elas. — declarou, ameaçando levar a mão até a sua e desistindo no meio do caminho.  

— Não, não peça desculpas. Não estava errada. — respondeu, fazendo questão de segurar sua mão. — Não foi sua culpa, na verdade, você esteve sempre ali e eu acabei te afastando.  

— Sabe que eu não queria sufocar você, não sabe? Eu só queria entender, só queria...  

— Eu fui injusto com você. — interrompeu, confessando-se. — Não deixei se aproximar de propósito. Achei que estaria protegendo você do caos que arruinou tudo da outra vez, mas só estava sendo egoísta.  

Um doce sorriso iluminou seu rosto. Ela manteve a mão na sua.  

— Só preciso que entenda que, sim, tenho minhas limitações e problemáticas, eu tive ciúmes, mas jamais iria te afastar de qualquer pessoa em nome do nosso namoro. E eu sei que ela importa para você.  

— Mas é você a minha namorada. E é só você quem eu quero.  

— Eu só queria que me desse um espaço também, para que pudesse ficar perto e tentar entender, só me deixar tentar.  

— Eu sinto muito. — sorriu de lado, desviando o olhar. — Desculpe por ter sido tão injusto. Ultimamente, tenho encarado partes de mim que não são tão agradáveis. Por isso, vou entender se não puder me perdoar.  

Alice meneou a cabeça, afastando a ideia.  

— Todos nós temos partes ruins, Nirav. Fazem parte da gente tanto quanto as partes boas.  

Ele concordou, hesitante. Por muito tempo, sua visão parecia ser o extremo oposto. Afinal, não via apenas partes ruins quando pensava em seu pai? Ou quando pensava em sua história com Juno? Alice estava certa, por mais simples que uma resposta como essa pudesse parecer. Havia um lado bom em sua história com Juno, sempre houvera. Então, era provável que também tivesse uma parte boa em relação a seu pai também.  

— Não pense que não estou orgulhosa por estar apoiando-a em uma situação assim. — Alice concluiu, engrandecendo o sorriso. — É o mínimo, eu sei, mas são poucos os que se prestam ao mínimo que seja. Fico feliz que você seja um deles.  

Diante disso, soube que estava na hora de reencontrar Juno. A mesma de anos atrás. E estava preparado?  

Com os pingos cessando, o assunto também se deu por encerrado. Agora, o peso sobre os ombros dava lugar a uma sensação confortante de alívio, que o fazia respirar profunda e tranquilamente.  

Porém, quando Alice deu o primeiro passo para retomar a caminhada, Nirav ainda segurava sua mão e a puxou de volta. Alice arqueou as sobrancelhas, analisando seus olhos furtivos, hesitantes e nervosos.  

— Posso te propor algo? — indagou.  

Alice arregalou os olhos, prendendo a respiração.  

— Bem, depende. — então, deu um riso sem graça. — Vai me pedir em casamento?  

Nirav riu, observando o nervosismo no semblante da namorada. Ela não estava em um bom dia para ser pedida em casamento. Anotado.  

— Quase isso. Um pequeno passo, eu diria. — ele deu de ombros. — Quer conhecer o meu pai?  

— Então vocês estão se dando bem? — o rosto dela se iluminou.  

— Estamos tentando. — ele sorriu, entrelaçando os dedos nos dela. — E acho que você pode ajudar.  

Um sorriso preencheu seus belos lábios tingidos de batom, tão belo quanto o brilho em seus olhos. Embora não estivesse seguro sobre o reencontro com seu pai, já que estava disposto a dar uma chance, então que fizesse do jeito certo.  

— Eu adoraria.  

De mãos dadas, eles continuaram a caminhar juntos sob o vapor da chuva que se dissipava nos últimos raios de sol. Conforme a noite chegava, deixando o dia para trás, Nirav já não receava tanto o que os dias que estavam por vir reservavam.  

Enquanto caminhava pelas ruas de Florencia, escutando Alice detonar seu filme favorito e dando risadas disso, Nirav pensou em seu pai. Talvez, estivesse começando a entender os apelos de sua mãe para uma outra chance, uma última chance. Então, pensou em Juno. E, apesar de seu coração ainda não saber se comportar sob a mera menção de seu nome, sentia estar encontrando o caminho até ela, uma outra vez.  


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Notas finais do capítulo

Eu também espero que o Nirav esteja finalmente encontrando seu caminho de volta para Juno.



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