73ª Edição dos Jogos Vorazes escrita por Mariiidesa


Capítulo 5
04. Treinamento


Notas iniciais do capítulo

"She got blood cold as ice
And a heart made of stone
But she keeps me alive
She's the beats in my bones"

(Bryce Fox - Horns)



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Eu não teria acordado se não fosse por Tikki batendo e gritando em minha porta. Abro os olhos contra a vontade. Eles pesam, implorando para que eu volte a fechá-los e fique no conforto de minha cama, que parece envolver-me em um abraço quente. Levanto-me depois de muito enrolar, vou descalça até o banheiro, apreciando o frio do piso de mármore. Escovo os dentes e lavo o rosto. Posso ver olheiras profundas abaixo dos olhos quando olho para meu reflexo no espelho, o que acaba sendo estranho visto que dormi como um anjo durante a noite. Grande musa inspiradora.

            Uma das roupas separadas para mim é o uniforme que usarei no treino. Nada de especial, é padrão para todos os tributos. Calças pretas apertadas e uma camiseta chumbo com gola v. D2 está bordado nas costas e na manga esquerda. Tiro os pijamas quentes e visto o uniforme. É confortável, o tecido estica e parece perfeito para realizar movimentos intensos sem medo de que rasgue. Imagino o que acontecerá hoje. Se os tributos do 4 realmente irão nos querer como aliados, se conseguiremos montar a aliança Carreirista completa, se realmente há alguma outra ameaça e que tipo de treino será. Respiro fundo e saio.

            Tikki, Loki, nossos estilistas e mentores já estão na mesa. Frako sorri ao me ver chegar, mas logo seu rosto se transforma em uma careta. Tikki se vira e tem a mesma atitude. Ginger apenas ri e revira os olhos diante da reação dos colegas. Brutus parece não entender nada.

            — Dormiu bem, amor? — Pergunta meu estilista indicando a cadeira vazia ao seu lado para que me sente ali. Eu o obedeço, ele passa os dedos por minhas bochechas ternamente — Pesadelos?

            — Estou bem — respondo tentando entender porque minhas olheiras fazem tanto escarcéu. — As olheiras vão sumir durante o dia. Não se preocupem. 

            — Frako, pode tirar as mãos de Syrena, por favor? — Hayley pede, e seu tom é estranhamente perigoso. Todos na mesa a olham como se estivesse louca. O trauma com as pessoas da Capital deve ser realmente muito grande para que ela surte por algo tão pequeno.  — Ela tem que ficar perto de Loki para que não precisemos ficar olhando de um lado para o outro enquanto os aconselhamos.

            Eu saio de meu lugar e troco de lugar com Tikki, que está sentada ao lado de Loki. A mesa permanece em silêncio enquanto comemos, ou enquanto os vejo comer. Há pães de vários tipos, bolos e croissants e Loki e eu só podemos ver, somos obrigados a manter nossa dieta à base de cereais proteicos, leite e frutas, mesmo que possamos morrer daqui a alguns dias sem experimentar tudo aquilo. Arrisco-me a pegar duas fatias de bolo de chocolate quando vejo que ninguém está prestando atenção em mim, passo uma para o prato de Loki e ele sorri.

            Brutus e Hayley começam a nos aconselhar depois de um tempo, nos dizendo que devemos prestar muita atenção em tudo o que for dito e ensinado, nunca pensar que já sabemos demais, qualquer coisa é agregável, principalmente golpes e técnicas que vermos os outros tributos usarem no treino. Quanto a isso, nos dizem para nunca mostrarmos tudo o que sabemos, especialmente as mais essenciais, que podem nos salvar em um combate direto com algum deles na arena. Também devemos prestar atenção em todos os tributos e no que demonstram se dar bem, qualquer talento pode vir a ser uma arma efetiva, até mesmo saber diferenciar as frutas comestíveis das venenosas ou dar um bom nó.

            Anoto tudo mentalmente, sem deixar passar nada. Loki também parece bastante concentrado. A partir de agora qualquer atitude errada que tomemos, qualquer aliança errada que fizermos será mortal para nós. Temos que ter o máximo de cuidado possível. Meu pai apoia o rosto nas mãos quando acaba de falar, parece perturbado por alguma coisa.

            — Está tudo bem, pai? — Pergunto.

            — Sim, estou, só preciso esclarecer algo com vocês — meu coração para por alguns instantes, pensando que talvez ele vá finalmente confessar que querem mesmo destruir nossa linhagem e que por isso ele esconde tanto Clove de todos e preferiu mandar a mim para cá. No entanto, o que ele diz é um pouco pior — Loki... não pense que vou proteger a Syrena mais do que a você.

            — O quê?! — Grito sem ao menos pensar. A última coisa que quero é parecer uma criança mimada, mas não posso deixar de pensar que passei a vida treinando compulsivamente, que fiz daquela minha missão e evitei qualquer sentimento que pudesse impedir-me de estar aqui agora, para descobrir que que nossa linhagem deve ser extinta e que posso ter sido sacrificada para que minha detestável meia irmã viva e a leve adiante. Eu só precisava que meu pai negasse aquela história toda, mas o que ele faz é se justificar por algo que eu nunca pedi. — Eu nunca pedi que ninguém me protegesse. 

            — Calma, lobinha — diz Loki. O encaro com os olhos cerrados, então recupero a calma. Ele só está tentando passar confiança a nós dois. Só isso.

            — Vocês dois terão que vencer por mérito próprio. Posso ajudá-los a conseguir patrocínio, mas só estou dizendo que não tenho preferência entre os dois. Tive medo de que Loki achasse que tenho — conclui ele.

            — Não existe competição entre mim e Syrena. Não somos adversários — diz meu primo indiferente, então sorri maliciosamente e olha para mim. — Pelo menos por enquanto.

            — Vou dar um jeito nessas olheiras, com licença — digo levantando-me, caminho rapidamente em direção ao meu quarto, tomando cuidado para não perceberem o quanto aquela conversa me afetou.

            — Não sem mim! Venha também, estilista oficial! — Grita Tikki se levantando e correndo até mim. Eles entram em meu quarto junto comigo e fazem com que eu me sente na cama. Frako pede para olhar o que Tikki tem de útil na bolsa, mas ela protesta veementemente e tira ela mesma uma bolsa menor, dizendo para que meu estilista cuide de meus cabelos.

            — Querida, eu sei que o que Hayley disse no trem pode fazer seu pai parecer um grande babaca... e ele é por não perceber que isso está te matando por dentro, mas... ele não tem preferência alguma pela sua irmã. Apenas não queria que acontecesse com ela o que aconteceu com você quando descobriram sobre seu nascimento — Tikki discursa apoiada nos joelhos enquanto passa um pouco de corretivo em meus olhos. Apesar de meu forte desejo de chorar, tento fazer com que a raiva seja maior do que a tristeza.

            — Bom, ele vai ter que dizer isso para mim — digo — E saberei se ele estiver mentindo.   

—--------------

            Quando me olho no espelho antes de sair, vejo que Tikki fez um excelente trabalho com o corretivo. É assustador pensar que ela tenha maquiagem para tantos tons de pele na bolsa, mas mal parece que tinha olheiras há menos de dez minutos atrás. Frako fez uma trança longa e delicada em meus cabelos, a qual chamou de espinha de peixe. Normalmente treino usando rabo de cavalo, mas ele insistiu que a trança ficaria muito melhor em mim. Nem tento argumentar. Apenas agradeço aos dois pela ajuda e vou encontrar meu primo.

            Nossos mentores nos acompanham até o elevador. Enquanto descemos até o saguão de treino, eles repassam mais uma vez os conselhos, nos dizendo repetidamente para pensarmos muito antes de selar alguma aliança, e prestar atenção às instruções. Quanto mais obedientes parecermos, melhor. Quando as portas do elevador se abrem, os dois dizem “mantenham os olhos sempre abertos” antes de as portas se fecharem outra vez. Pego-me olhando para trás, apesar de tudo, meu objetivo ainda é o mesmo: carregar o legado do meu distrito, de Enobaria, e também de Brutus. Ainda tenho que deixá-los orgulhosos, principalmente minha mãe, que além de Grill, parece ser a única a se importar comigo e não com meu nome.

            Começo a andar ao lado de Loki, que está tão elétrico quanto no dia da Colheita. Seus cabelos castanhos estão com um corte novo, mais desleixado e balança com muito mais facilidade. Uma das coisas admiráveis da Capital é que eles realmente sabem como realçar a beleza natural de alguém, a parte engraçada é que não usam esses dotes neles mesmos.

            Chegamos um pouco antes da hora que nos foi dada como limite. Os outros tributos já estão lá, ainda assim parece faltar algo. Atala, a chefe dos instrutores se aproxima do grupo de tributos deste ano, se prepara para começar, até chega a abrir a boca, mas é interrompida pelo som apressado dos dois tributos desajustados do Distrito 12. Eles são empurrados para fora do elevador por seu mentor nada competente, Haymitch Abernathy, um alcoólatra que não poderia ser mais irreverente e desinteressado. Frequentemente me pergunto aonde foi parar o Haymitch que venceu não qualquer edição dos Jogos, mas um Massacre Quaternário com o dobro de tributos. Assisti àquela edição um milhão de vezes, e definitivamente não parece ser a mesma pessoa.

            Atala os ignora e começa o discurso antes mesmo que os recém-chegados se coloquem em seus devidos lugares. Ela diz que em duas semanas, vinte e três de nós estarão mortos e apenas um permanecerá vivo. Enquanto ela fala, Tanner ri com deboche, silencioso, mas perto o suficiente para que eu note. Por mais que Loki e eu estejamos confiantes, nossos mentores disseram que é vital prestarmos atenção em todas as instruções, então simplesmente o ignoramos. Ela continua a falar, dizendo para que não briguemos entre nós. São quatro exercícios obrigatórios, o resto é individual. Aconselha-nos a não ignorar as técnicas de sobrevivência, diz que todos querem pegar a espada, mas que a maioria morrerá de causas naturais como infecção ou desidratação.

            Depois que ela termina, nos liberam para treinar. Haverá um exercício obrigatório por dia, e o primeiro é combate corpo a corpo. Todos nós devemos lutar com um dos Pacificadores por três minutos, completamente desarmados. Somos chamados um a um, até que o garoto do 12 leve a surra final.

            De todas as lutas que vemos, as que mais me chamam a atenção são as da garota do 9, do garoto do 6 e dos dois tributos do 11. Já esperava que o grupo de Carreiristas não precisasse nem de dois minutos para imobilizar os oponentes, e aprendi muita coisa assistindo, movimentos que denunciaram seu estilo de luta. Não tenho certeza quanto a Tanner e Sander, mas Lyra certamente usa apenas um estilo de luta, baseado em desvios certeiros e golpes rasos enquanto Bronagh manteve um mais agressivo, cheio de socos e chaves de braço. Em minha vez, usei movimentos básicos que aprendi com meus diferentes treinadores em casa, traçando uma sequência que seria difícil para meus oponentes mais atentos decifrarem.  

            Ao terminarmos o exercício obrigatório, Loki e eu vamos até o arsenal. Ele pega uma foice, sua especialidade. Vejo todas as armas disponíveis: bestas, espadas, facas, adagas, foices, machados, lanças e nada de bumerangues, é claro. Fico em dúvida entre quatro adagas e um par de sais que vi. São ótimos para ataques curtos, se parecem com tridentes menores, exceto pelo fato de terem a ponta do meio muito mais comprida do que as outras duas e serem usados aos pares. Deixo as adagas de lado e fico com o par de sais. 

            Começo a treinar com os bonecos, primeiro cortando gargantas e depois perfurando seus pescoços, cabeças e corações com agilidade. A princípio é fácil, até que um deles começa a se mexer e a revidar meus ataques. Resolvo entrar em seu ritmo. Um buraco se abre na região da mão e uma espada brota ali. Olho para os Idealizadores assistindo do palanque, eles claramente fizeram isso. Consigo desarmá-lo e perfurá-lo na nuca, então ele finalmente para de funcionar, como se houvesse morrido, e cai de joelhos.

            Loki assiste elétrico à minha luta e logo vai para cima de alguns dos bonecos, parecendo se divertir muito enquanto os despedaça com a foice, divertindo-se como uma criança. Logo, seus adversários estão destroçados, diferentes dos meus. O estrago que um sai faz quando mata é quase imperceptível, já uma foice pode deixar a vítima desfigurada ou decepada, como os bonecos que vieram para cima de Loki e agora jazem destruídos aos seus pés. 

            A garota do 1 se aproxima sorrateiramente e toca nas costas de Loki. Ela tem os cabelos presos com uma fita preta e faz uma careta de aprovação.

            — Isso foi incrível! — Diz ela. Pergunto-me se não ensinaram a disfarçar falsidade e bajulação um pouco melhor de onde ela veio. Permaneço inexpressiva. Ela tira os olhos de Loki e se dirige a mim — Nunca vi ninguém lutar com sais antes. Pensei que sua especialidade fosse com as adagas julgando pelo que ouvi da conversa entre seu pai e Gloss ontem depois do desfile.

            — Estavam falando de mim? — pergunto, fingindo indiferença.

            — Sim, seu pai não parou de falar um minuto sobre o quanto você domina as facas, adagas e algo que não lembro o nome... aquela coisa que voa e depois volta para você... enfim, ele parece ser seu maior fã.

            Por algum motivo, talvez carência, o comentário me faz sorrir.

            — E ele estava contando isso para o seu mentor por qual motivo?

            — Gloss perguntou, na verdade. Ele estava bem curioso para te conhecer — ela suspira entediada — É bem chato saber que meu mentor está muito mais interessado na concorrência. Acredita que ele não deu a mínima para minhas habilidades com machados e lanças? É raro uma garota gostar de armas pesadas assim, deveria ser mais apreciado.

            — Aprecio armas pesadas — diz Loki se recuperando da última luta e pendurando-se em meu ombro — Pode me mostrar, eu adoraria ver.

            — Com certeza — ela dá a meu primo um sorriso provocante e caminha lentamente até o arsenal atrás da fileira de bonecos restantes. De repente Tanner está ao meu lado, sorrio para ele ao notar sua presença. Ele estende a mão para que eu aperte.

            — Lyra se dá muito bem com o machado — diz ele olhando para sua colega de distrito, que começa a entrar em ação. Agora todos estamos prestando atenção nas habilidades de Lyra. Dois bonecos correm em sua direção, e ela consegue acertá-los com movimentos leves e precisos. Leves, porém acompanhados por uma força impressionante. Presto atenção em sua técnica, talvez eu me entenda com um machado se ver alguém habilidoso agindo, ou ao menos aprenda a me defender caso ela se vire contra mim. Caso não. Ela vai se virar contra mim. Todos vamos nos virar uns contra os outros ao final do jogo. Ela volta sorridente depois de enfiar o machado no peito do segundo boneco.

            Enquanto Loki, Lyra e Tanner conversam empolgados sobre a ideia de os bonecos terem movimentos de combate, procuro ver o que os outros tributos estão fazendo. Os dois do 11 ainda treinam combate corpo a corpo um com o outro, e ao que me parece, estão tentando arduamente provar seu valor na esperança de serem chamados para a aliança carreirista. No canto esquerdo da sala, o garoto do Distrito 3 é orientado sobre as possíveis bestantes e fenômenos do ano; sua parceira está ao seu lado sem prestar atenção em nada do que o instrutor diz e roendo as unhas compulsivamente. Os dois do 7 estão na estação de nós e armadilhas, contudo, o garoto não para de olhar para nós, na verdade para um ponto específico atrás de nós, o arsenal. Interessante ver um dos mais novos interessados em armas.

            Finalmente localizo os dois representantes do 4, na estação de instrução para encontrar abrigo. Eles agradecem o instrutor e se levantam. Vão até o segundo arsenal, mais afastado dos olhares de todos, do outro lado da sala, onde Sander pega um arco, flechas e começa a testá-los enquanto Bronagh o assiste sentada manejando um tridente incrivelmente bem desenhado e forjado. Ouço meu nome ser chamado e lembro-me que teoricamente ainda estou no meio de uma conversa com meu primo e os tributos do 1.

            Peço licença deixando Loki com a tarefa de entretê-los e vou até Bronagh, sento-me ao seu lado e assisto em silêncio Sander mirar e atirar certeiramente em todos os alvos, um por um, até que todos estejam com uma flecha cravada em algum ponto vital. É nesse ponto que a dificuldade aumenta e os bonecos começam a se mexer, fazendo com que ele comece a alternar entre atirar as flechas e cravá-las manualmente na garganta ou cabeça de seus oponentes. Ele não é só um azarado bem treinado, como disse na noite do desfile. É perfeitamente treinado. Pelo menos com o arco.

            — Nosso treinador gostava de chamá-lo de jovem Apolo — Bronagh comenta, quebrando o silêncio entre nós. Sorrio.

            — E com razão — digo — Ele é perfeito.

            — Mas o que veio fazer aqui, afinal? — Pergunta ela girando o tridente.

            — Não gosto de toda aquela bajulação — respondo olhando para Loki e os outros conversando na área de combate, meu primo parece se dar bem com os elogios e tapinhas nas costas que Tanner distribui sem moderação e com os sorrisos encantadores de Lyra. Bronagh olha na mesma direção que eu e ri por alguns segundos, então fica séria outra vez. 

            — Nem tente, não vamos nos aliar a eles, princesa — diz ela, premeditando minha oferta. Por alguma razão, eu já esperava por aquilo — Só queremos sair daqui, não caçar pessoas no meio da noite com um bando de assassinos de dezoito anos. 

            — Eu não... — tento me justificar, e paro quando percebo o que estou fazendo.

            — O quê? — Ela ri com ironia — Syrena Jaeger não é uma assassina? 

—---------

            Nos próximos dias de treino, Tanner me agracia com o significativo apelido de princesa. Loki e eu passamos algum tempo nas estações de sobrevivência, abrigo, como achar água e coisas que normalmente subestimamos nas academias do 2. Ele tem passado muito mais tempo com os tributos do 1, tempo demais. Tenho que circular pelo salão analisando cada um dos outros sozinha e acredite, é difícil acompanhar o que vinte e três tributos estão fazendo ou se são bons nisso.

            Meu pai consegue providenciar um bumerangue feito especialmente na Capital para mim. No segundo dia já o vejo no arsenal e o pego como se fosse uma criança ganhando um presente há muito esperado. Este é diferente do que eu tinha em casa, é muito mais leve apesar de o ferro ter uma força de impacto maior. Conseguirei caçar aves excelentes com ele. 

            Sander sempre aparece para conversar sobre assuntos totalmente aleatórios, como a influência dos astros nas marés ou qualquer outra ciência que envolva o mar, o que acaba fazendo com que eu me esqueça das neuroses sobre meu pai e o presidente e foque mais em aprender a trançar redes tão bem quanto ele. No começo as acho inúteis, mas ele diz que se não houver mar ou rio para pescar na arena, poderemos sempre utilizá-las como armadilha.

            — Seu amigo parece estar com ciúmes de nós — sussurra ele enquanto tento trançar uma rede decente. Olho para trás e vejo Tanner olhando para nós, sério, com a lança em mãos. Ignoro e sorrio para meu jovem Apolo.

            — Ele tem bons motivos para estar — respondo.

            — Vou considerar isso um elogio — ele ri, e pela primeira vez sinto o coração pesar com a possibilidade de ser eu a responsável por matá-lo na arena.

            No quarto dia, Bronagh me procura para conversar. Desde nossa curta e constrangedora conversa na qual acidentalmente hesitei ao ser chamada de assassina ao invés de simplesmente aceitar, nunca mais me aproximei. Pelo contrário, procurei me afastar o máximo que pude. A ideia de Bronagh ter criado em mim uma dúvida até então inexistente – ou apenas invisível – me assustou. Não posso hesitar. De todas as pessoas naquele saguão, sou eu a que tem o menor, senão nenhum, direito de hesitar. 

            Para evitar outra conversa, a convido a treinar comigo em um combate corpo a corpo, e é muito mais divertido do que treinar com Lyra. Bronagh age muito mais e fala menos. Usa golpes mais efetivos que guardo para usar na arena caso precise, como uma chave de perna que imobiliza completamente o oponente e quebra seu pescoço se as pernas forem giradas na força e ângulo corretos.

            — Princesinha, já sabemos que você e seu primo ficarão com os tributos do 1 — diz ela depois de ajudar-me a levantar — E sendo sincera, não estou surpresa. Eu a vejo treinando e só consigo enxergar uma máquina de guerra. Imagino como deve ser triste ter a vida baseada apenas nisso.

            — Está tentando me ferir para achar fraquezas? — Pergunto tanto para ela quanto para mim mesma, uma pontada de raiva extinguindo lentamente toda a simpatia que senti por ela nos últimos dias.

            — Só pensando sobre como é triste a existência de pessoas como vocês. Criadas para serem assassinos — ela ri — Pior ainda, totalmente descartáveis.

            — E chegou a essa conclusão porque não aceitamos a morte como um bando de covardes como os outros? Porque jogamos pelas regras?

            — Não. Porque tratam isso como diversão, sem nem pensar que são pessoas que estarão matando na arena — ela olha em volta — Sander é um ótimo filho, pescador como o pai, o garotinho do 7 tem treze anos e já trabalha como lenhador para pagar uma dívida que o pai tem com o prefeito, o rapaz do 6 deixou a namorada grávida em casa. Todos temos histórias que vão chegar ao fim em duas semanas ou menos. Entende porque isso não deveria ser tratado como um jogo? 

            Eu vergonhosamente sou pega por aquelas palavras, começo a considerá-las, pensando em alguma forma de contra argumentar aquilo, tentando imaginar o porquê de uma Carreirista ter uma ideologia como essa, mas não encontro nada bom o bastante. Felizmente, Tanner aparece ao meu lado, impedindo-me de continuar a pensar em todas as coisas que Bronagh disse que podem me amolecer.

            — Está tudo bem por aqui, Syrena? — Pergunta ele passando um braço em volta de meus ombros. Ele olha para Bronagh com um sorriso forçado.

            — Aproveite sua companhia, princesa — ela faz uma reverência cheia de desdém e vai embora, deixando-me sozinha com os comentários maldosos de Tanner e uma consciência ridiculamente pesada.


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