No More Secrets: Terceira Temporada escrita por CoelhoBoyShiper


Capítulo 4
Sozinho juntos




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“Ele está vivo!”

— Bill! — gritou Dipper após notar que suas cordas vocais tinham voltado a funcionar. Avançou na direção do portal e deu de cara com a parede sólida. Cambaleou para trás, incerto se a tontura era da pancada ou do choque de ver aquela cena. Talvez fosse os dois.

Tom tocou a janela de plasma com a mesma urgência. Sólida. Impenetrável.

— D-Dipper, s-socorr... — a voz de Cipher começava a se extinguir na medida em que a luz da magia enfraquecia.

— Bill! — Dipper investia contra a janela. Sem sucesso. Ele não atravessaria aquilo. — Não!

Tom continuava paralisado a observar a cena no mais repleto desamparo. Dipper não parava se socar a barreira que o separava de Cipher. As vinhas azuis que haviam se alastrado pelo túnel diminuíram de intensidade, dando seus primeiros sinais de enfraquecimento. A janela que dava para aquela visão ia voltando de translúcido à opaco, para aumentar o martírio de Dipper.

— Cipher! Pelo amor de deus, aguente firme! Não saia daí! — O choro fino do loiro era a pior resposta que Dipper poderia receber de volta naquele momento. Como se já não bastasse o fato dele não poder atravessar aquela parede. Como se já não bastasse a sua magia enfraquecendo. Como se não bastasse a imagem de Bill desaparecendo do seu alcance.

O portal evaporou. Todos os filamentos de magia que se arraigavam pela terra apagaram. Com eles, as vozes de Tom e Dipper também, que passaram alguns segundos encarando o beco sem saída.

— Eu vou lá. Agora — disparou Dipper, metendo os olhos em Tom. — Não tô nem aí se eu não estou pronto. Você não vai conseguir me parar, Tom.

Tom suspirou.

— Eu sei... eu vou junto.

Dipper arquejou de espanto. — Quê?!

— Rápido! — Tom saiu correndo e fez um gesto para Dipper segui-lo.

Pines continuou travado por mais um instante. — Mas o treinamento do meu poder...

— Foda-se o treinamento. Anda logo!

Atingiram a sala externa em cinco segundos. Tom estalou os dedos e uma cristaleira com penas humanos veio cambaleando apressada em sua direção. — Cristaleira, os disfarces e armas brancas. Agora. — Bateu uma palma e o criado semi-vivo deu as costas, trotando desengonçado para o interior de um dos corredores.

— Você vai precisar de alguns ajustes, Pines — disse Tom, lançando um olhar aflito para o convidado.

— Ajustes?

— Nós vamos para o exterior. Ninguém pode saber que há um humano por aqui. Ainda mais um que eu estou acobertando.

A mesa ambulante retornou carregando alguns artefatos sobre suas costas. Um par de capas negras (as mesmas que Dipper tinha visto Tom utilizar para se esconder no deserto) e um cinturão com algumas atrames por volta do coldre.

— Agradecido. — Tom jogou um dos mantos para o garoto enquanto esticava o outro sobre o seu corpo. — É melhor você se trocar pelas roupas que eu deixei no seu quarto. O quão mais você se parecer com quem mora aqui, melhor.

Nosferatu reapareceu da escuridão. Carregava em suas garrinhas o cropped e o shorts de couro escuro. Dipper estendeu os braços e o morcego deixou as vestes despencarem. — Valeu — agradeceu Pines; o morcego farfalhou alegre e voltou por onde veio.

Tom assobiou forte com o polegar e o indicador. As paredes vibraram e começaram a rachar. A janela de lava da sala se partiu em dois, dando passagem para que entrasse uma carruagem diferente de tudo que Dipper havia visto na vida. Os aspectos pretos e góticos da liteira poderiam até ser deslumbrantes se não fosse pelo fato de que a carroça era puxada por ossadas de cavalos mortos. Em chamas! Dipper recuou.

— Pode ficar calmo — assegurou o tutor com um risinho entretido. — São amigos.

Os cavalos-fantasma relincharam – um ruído rascante e estridente; animalesco sim, mas nada similar ao relinchar de um cavalo comum. Uma bruma forte do cheiro de enxofre e carvão em brasas subia junto com os estrépitos dos equinos cadavéricos, que deixavam as marcas de suas ferraduras queimadas no carpete enfumaçado.

Tom emitiu um grunhido quase igual ao das criaturas e, obedientes como máquinas, a cavalaria estancou e curvou-se para eles em reverência. O demônio roxo assentiu de volta numa semi saudação, e a portinhola da carruagem se abriu. Um tape luxuriante de cetim e cerdas douradas se desenrolou como uma língua de dentro da cabine e parou aos pés da dupla.

— Vamos nessa — frisou Tom, marchando para dentro do transporte.

Dipper o seguiu passo ante passo. O interior da carruagem – não para menos – era algo saído de outro mundo. Embora a ideia do exterior de ser um espaço pequeno para acomodar duas pessoas apenas, a parte de dentro da liteira – de algum modo sobrenatural – era tão vasto e grande quanto a sala de estar da caverna de Tom. Havia luxuosos sofás e poltronas de camurça fina, um piso listrado de rubi, paredes perfiladas em pedra vulcânica, uma lareira crepitando, uma mesa de centro, uma dispensa repleta de alimentos, um banheiro e até um home theater.

Tom chegou próximo a janela da frente e eclodiu outro guincho animalesco para os seus cavalos de fogo. Enfeitiçadas, as cordas dos arreios se ergueram no ar e açoitaram o chão num som chicoteante. Os esqueletos relincharam e deram meia volta, cavalgando para o exterior da casa.

— É melhor se apressar — progrediu Tom enquanto ajeitava o seu cinto de armas ao redor da cintura — Estaremos lá em um segundinho.

— Okay. — Dipper caminhou até o banheiro, sentindo suas pernas ficarem cada vez mais bambas e frouxas a cada passo. O tempo em que levara para trocar de roupa era suficiente para que a realidade caísse sobre ele. “Estaremos lá em um segundinho”. Pro Exílio. O lugar mais perigoso de todo o Mindscape. O lugar onde um exército inteiro de rebeldes foi aniquilado com um estalar de dedos. O lugar onde os monstros eram mandados para sofrerem eternamente. O lugar onde Bill Cipher, o que antes parecia para Dipper a criatura cósmica mais poderosa e mortal que ele já tinha visto, estava agora agonizando à beira da morte, como se não fosse nada, um mero inseto.

Um frêmito de pavor contorceu e gelou todas a dorsal de Dipper de ponta a ponta. Seu estômago sacudiu, querendo virar do avesso. E um choro silencioso de desespero queimava por detrás dos seus olhos.

Ah, não. O que ele estava pensando? O que ele e Tom estavam pensando? Aquilo era uma loucura! Não havia chance de aquilo dar certo. Eles estavam indo invadir o que aparentemente era um dos lugares mais mortíferos do Multiverso sem nem sequer terem um plano! Como em sã consciência conseguiriam fazer aquilo?!

O coração de Dipper golpeava a sua caixa torácica. O garoto teve que se sentar para recuperar o fôlego, tendo fisgadas de magia reagindo à sua crise de ansiedade sob sua pele. Guiou o rosto até uma escotilha que havia por perto e focou o seu rosto no exterior para poder se desafixar um pouco das paranoias. Lá fora, o deserto corria, areia subia e rodopiava rápido com o movimento da cavalaria. Por falar na cavalaria, as ossadas trotavam a alguns metros acima do chão, a carruagem planava sobre as dunas, deixando uma trilha de faíscas e cheiro de queimado por onde passava, cortando o céu lilás como se fosse o único astro naquela dimensão, uma estrela cadente.

A visão apaziguou Dipper o bastante para que ele conseguisse retornar à sala. Quando chegou, Tom estava posto ao peitoril da mesma janela, igualmente admirando a paisagem como Dipper. Ele tinha o seu coelho rosa de estimação nos braços, e o acariciava com tanta força e rapidez que Pines se impressionou do bichinho não estar se machucando.

“Ele também está nervoso...”, refletiu Dipper, aliviado de pelo menos não estar sozinho naquilo.

— Estou pronto — avisou. Tom se virou para analisá-lo. A capa longa de cetim negro, o cropped e os shortinhos de couro caíram feito uma luva (também pudera: eram mágicos).

— Ótimo, só tá faltando uns detalhes. — Tom gesticulou o indicador apontado para a roupa de Dipper e, com seus poderes, persuadiu o capuz da manta a se levantar e cobrir a cabeça do menino. — Só preciso dar um jeito com o resto do seu rosto agora. — Lucitor deixou o coelho de lado e caminhou até uma estante embutida na parede próxima. De dentro ele tirou uma máscara que parecia artesanal, pintada com escribas tribais e militares. Era um rosto de um monstro esculpido, com presas e cifres longos. — Use isto. — Deu a máscara para o garoto.

Dipper a vestiu. Era pesada e desconfortável. Fedia à madeira guardada e tinta acrílica, e era áspera o bastante para deixar uma leva de farpas na cara dele assim que a retirasse. Mas Dipper a usaria mesmo assim. Por Cipher. Por Ford. Por Mabel. E quem sabe até mesmo por Wirt, que estava por aí, confuso e assustado, tendo o seu corpo utilizado pelo mais maligno demônio de todos. “Tadinho...” O seu coração se contraiu de dor.

Subitamente, a carruagem deu uma freada brusca que quase jogou Dipper pra trás. Tom nem se mexeu, esgueirou o olhar de volta pra janela e soltou um suspiro pesado. — Chegamos. — Aprumou a postura, respirou fundo e galgou até a saída.

“O quê?! Já? Como...” Porém, quando Dipper saiu logo atrás de Lucitor, deparou-se com a última coisa que consideraria ser uma prisão mortífera.

Parecia-se com uma taverna. Uma taverna temática comum. Havia pilares nórdicos em formato de dragões circundando toda a arquitetura, detalhes bárbaros e medievais adornando o pórtico da entrada que exibia, logo acima da porta, a placa Dragon Spit.

— Isso é um... pit stop? — questionou ele ainda descendo os pequenos degraus que o separavam do chão erodido e seco.

— Dance conforme a música. Toque conforme a banda — advertiu Tom entredentes, a musculatura tensionada, como se ele estivesse pisando um campo minado. Dipper olhou de soslaio e teve um vislumbre do rosto de Tom: triste, ansioso, enquanto observava a pulseira de metal ao redor do seu pulso.

“O que caralho estamos fazendo?”

Atravessaram o pátio. Tom olhava para todos os lados, afoito, o que só fazia Dipper só ficar mais ansioso. Altamente consciente do perigo que corria, as cordas vocais de Pines congelaram duras e petrificadas. Tinha a impressão de que se ele falasse um mísero “a” uma bomba iria ser ativada. Por que estavam ali? Qual era o plano? Tinha um plano?

Um urro grosso e profundo como o de um leão ecoou próximo a Dipper, ele saltou de susto e quase tropeçou em cima dos seus próprios pés. Ao olhar na direção do som, viu que era apenas um dragão bocejando... um dragão muito... estranho. Apenas o seu busto se mexia; virado na horizontal, do torso para baixo, rodas, escapamento e pedais substituíam os seus braços e pernas. Ele estava preso há uma espécie de bicicletário junto a vários outros espécimes parecidos. Todas elas híbridos de máquina, veículos com as traseiras vivas.

— São dragãocicletas — Thomas acalmou, sem desviar o passo nem o olhar. — São inofensivas, exceto que você tente roubá-las do seu dono. Aja como monstro, Pines. Por favor.

Pisaram para dentro do estabelecimento empurrando um par de portas duplas, como se estivessem em um filme velho e clichê de faroeste. A taverna era exatamente como a fachada: repleta de arquitetura nórdica e bárbara. Candelabros de madeira pura pendiam do teto e archotes queimavam perfilando as paredes, garantindo a luz do local. Uma miríade de monstros habitava o ambiente, de tantos os tipos que Dipper nem pode contar. Temia olhar algum deles nos olhos por muito tempo.

Como se nada fora do normal acontecesse, Tom sentou num banco em frente ao bar e estalou os dedos, requisitando a presença do garçom.

— Então Thomas, onde estamos mesmo? — perguntou Dipper, passando o próprio peso de uma perna pra outra, o olhar nervoso esgueirando de um canto a outro.

— Dragon Spit, ué. Não leu a placa? Os drinks daqui são maravilhosos. — Tom nem sequer olhava para o garoto enquanto respondia, só para o seu bracelete. Por mais que soasse despreocupado, o seu corpo não mentia. O demônio girava a pulseira em torno do seu pulso sem parar.

Dipper ficou atônito por um momento.

— Tom... por que estamos aqui? Que lugar é esse?

— Um lugar onde eles podem nos encontrar.

Levou alguns segundos até Dipper processar o que o outro havia dito. A história que Lucitor havia lhe contado sobre viver escondido nas cavernas que eram irrastreáveis, fugindo da Guarda, se tornando um criminoso, parte de uma revolução, o bracelete no seu braço que era como a coleira que os seus antigos donos usavam para conseguir lhe controlar... Dipper abafou um grito de espanto.

Tom estava se entregando!

— O seu bracelete! — Apontou ele, sussurrando em tom de conspiração e choque. — Você me disse que a Guarda de Time Baby poderia te rastrear através dele se você ficasse muito tempo fora da caverna.

— Ah, bingo! — debochou Tom. O garçom, uma besta ao mesmo tempo admirável e grotesca – um híbrido de homem com águia –, retornou com duas bebidas de uma cor amarronzada desconhecida.

— Perdeu o juízo?

— Pode até ser que sim. Mas esse é o único jeito de nós conseguirmos entrar no Exílio sem sermos pegos ou mortos, pode acreditar.

— Tom, mas...

— Pines, duas pessoas não têm chance alguma contra a segurança daquele lugar. Um exército inteiro tentou e foi dizimado num sopro! Confie em mim — ralhou como se pressentindo alguma reclamação do pupilo. — Toma. — Thomas deslizou um dos copos na direção de Dipper. A bebida borbulhava, uma fumaça verde exalava das bordas e, de dentro do líquido, algo que parecia um olho apareceu boiando. — Você vai precisar disso. Não vai querer estar sóbrio quando ver aquele lugar. Sério — frisou. O mau agouro enviou um arrepio vertiginoso na nuca do garoto.

Mole e inerte de tantos calafrios, Dipper ficou observando Tom descer o copo de bebida inteiro num gole e requisitando ao garçom um novo sem nem fazer careta. Seu rosto começou a coçar com a aspereza da madeira da máscara, e ele teve que segurar o seu rosto de não cair com o peso dela.

— Tsc — reclamou —, por que você não usou magia para mudar minha aparência para a de um monstro ou algo assim? Seria bem mais fácil. Esse disfarce é um sacrilégio.

— Porque senão você não iria durar assim que chegasse ao Exílio. Eles iriam descobrir a fachada num segundo.

Um nó pesou na traqueia de Dipper, como se ele tivesse acabado de engolir um seixo de chumbo. — O que você tá querendo dizer? — gaguejou.

— Ah, não te falei? Não tem como usar magia dentro do Exílio. O edifício foi meticulosamente construído para que bloqueasse o uso dos poderes de qualquer um dos prisioneiros lá de dentro.

Se as pernas de Dipper não estivessem tão bambas, ele teria dado meia volta, corrido para dentro da carruagem e fugido a toda velocidade agora mesmo.

— Cê tá de sacanagem com a minha cara! — vociferou entre dentes rangidos. — E como você espera que eu consiga resgatar o Bill e sair de lá sendo que a única coisa na qual eu tenho aprendido até agora é justamente como manejar meus poderes?!

Tom desceu mais um copo vazio na mesa com rudez, quase violento. Ele fuzilou o pupilo com o olhar mais ofendido e irritado que já tinha dado até então e declarou seu ultimato: — É essa mesmo a única coisa que eu venho lhe ensinando, Pines?

Dipper ficou mudo, sem fazer ideia do que falar. De algum jeito que ele não entendia, sentia-se muito, muito burro e culpado.

— Você vai resgatar Bill e nos tirar de lá do mesmo modo que você conseguiu fazer tudo dar certo até agora — continuou. — Perseverando. E com garra.

“É só uma maneira bonita de dizer que você não ideia nenhuma do que fazer”, Dipper quis rebater com isso, mas aquilo não era hora. Ele estava prestes a ir para o que talvez fosse a provação mais mortífera pela qual teria passado até então durante toda sua jornada. Brigar com o seu único aliado talvez não fosse a melhor das ideias naquela hora.

Inconformado, Dipper saiu batendo o pé para longe do demônio. Talvez espairecer ao redor do bar lhe deixasse menos em pânico. Andava olhando para os próprios pés, que iam pra lá e pra cá, tentando encontrar o rumo que ele nunca teve na vida. Achava engraçado estar tão nervoso, ele já tinha passado por coisa pior àquela altura.

Coisa pior...

De repente, algo que alguém havia lhe dito há tempos voltou a lhe aconselhar mentalmente, como um sussurro fantasmagórico:

Você sempre dá conta. Eu já te coloquei em uma situação em que você não pudesse ser capaz de controlar?

Bill Cipher havia falado aquilo dias antes.

E, provavelmente, havia sido a maior verdade que o demônio já havia conseguido proferir mesmo estando sob o controle das cordas de Time Baby, seu mestre.

Sem perceber, Dipper começara a sorrir. Bill sempre esteve do seu lado. Mais do que ele pudera perceber. Até quando ele não estava, ele estava do seu lado. Claro, daquela maneira bizarra, contraditória, confusa e Cipher de ser... mas ainda assim... do lado dele.

Era a chance de Pines provar para Bill que ele estava certo. Não poderia deixá-lo. Era a hora de provar para Cipher de que Dipper o considerava o suficiente para vingar suas palavras. De fazê-lo acreditar que, agora mais do que nunca, entendia a sua lealdade e sua fidelidade. E que ele estava pronto para retribuí-la. Retribuí-la finalmente depois de tanto tempo a repudiando, a mal interpretando... Bill deve ter sofrido tão com aquela falta de consideração.

Começou a sentir vergonha. Vergonha da maneira como havia tentado afastar o afeto de Bill a todo custo o tempo inteiro, a ponto de até mesmo mudar as correntes do tempo. Uma vergonha afiada, daquelas que é tão grande que chega a causar um desconforto físico – seu rosto se contraiu para dentro. Dipper quis sumir de constrangimento. Apenas se ele conseguisse sumir...

— Ei! Olha pra onde anda, chifrudo!

Uma vozinha ressabiada sibilou na frente de Dipper, retirando-o do seu enlevo. Tinha esbarrado em alguém sem nem notar. Quem? O garoto olhou para todos os lados e não conseguiu encontrar ninguém próximo o bastante ou olhando para ele.

— Aqui! — a vozinha coaxou de novo. Dipper olhou na direção do som.

Algo começava a se materializar no meio do ar vazio. O espaço se contorceu e retraiu, delineando um vulto, uma silhueta semi-translúcida com escamas. Dipper semicerrou os olhos, tentando entender a visão alienígena. Então, num passe de mágica, as escamas da criatura deixaram de ser transparentes e adquiriam a tonalidade de um verde musgo mucoso. Onde antes aparentemente não havia nada, surgira um mosntro, parado a encarar o garoto com os seus olhinhos bravos.

Um camaleão. Da mesma altura de Dipper, bípede, que estava camuflado, invisível, há apenas alguns segundos.

— Foi mal — sussurrou Dipper.

— Some daqui! — O bicho agitou o punho no ar.

Sumir...” Ele escaneou o corpo da estranha criatura e acabou encontrando algo mais estranho ainda: a couraça de escamas dela – não era a sua. Parecia como um casaco, uma capa que o cameleão usava. “Interessante...”

— Não teria como eu ter te visto — defendeu-se ele humildemente.

— A gente não pode nem ser mais nós mesmos por aqui! — O bicho saiu, ainda reclamando enquanto retirava do corpo o seu casaco de escamas de invisibilidade. Ele caminhou até uma mesa onde alguns outros monstros pareciam estar jogando uma espécie de jogo, pegou um lugar e deixou a couraça sobre o encosto da cadeira. A parte de cima da cadeira, a que era coberta pelo casaco, sumiu e ficou semi-transparente.

“Sumir!”, realizou Dipper, surpreso. “É isso!” Ele iria sumir... mas não de vergonha.

Quando se virou na direção oposta, tomado pelo arroubo de euforia com a nova ideia, viu Thomas entornando o quinto copo na quina do bar e travou no lugar. Não. Iria fazer aquilo sozinho. Ele precisava fazer aquilo sozinho. Teria que se acostumar com a ideia desde já. E agir. Rápido. Não fazia ideia de quanto tempo lhe restava antes de alguma autoridade chegar.

Estava de volta ao nervosismo. Andando de um lado para outro. “Pense, Dipper, pense!” Foi até aos fundos do estabelecimento, próximo a um alpendre que cobria a porcentagem de uma área externa do estabelecimento. Passou a admirar a coleção de anomalias. Criaturas que remetiam à fadas, animais que conhecia do mundo humano, pessoas com mais de um braço, e outras que era alienígenas demais para poder serem comparadas a alguma coisa pré-existente. Respirou fundo, tentando encontrar alguma coisa ideia no meio daquela miríade. Em seguida, seu olhar descansou nas paredes ao redor – estofadas de escudos, espadas, capacetes vikings e selos esculpidos à bronze.

“O que é isso?” Aproximou-se e encontrou uma placa de metal por debaixo da curiosa coleção que explicava a mostra:

INSTRUMENTOS DE BATALHA ORIGINAIS

RESTOS HONROSOS DA GRANDE REBELIÃO

Vocês serão para sempre lembrados

Dipper arquejou de surpresa.

Aquela não era uma exposição comum.

Era um mural de conquistas.

E não só isso, mas um do levante que Ford havia criado. Uma batalha que ele havia inspirado entre os escravos daquela dimensão contra a Guarda.

Imediatamente interessado, Dipper correu até um cartaz rudimentar de pergaminho laminado atrás de uma camada de vidro na parede. Metade dele estava escrito numa língua alienígena na qual ele não compreendia. Entretanto, havia algo que parecia ser o mesmo texto logo em baixo, só que traduzido para o Inglês.

No ano 3000269788 (1970 – numeral terráqueo), uma esperança do céu caiu.

Tudo sobre a ordem Mindscapiana ruiu.

Ergueram-se monstros, garras e presas a rugir.

A guerrilha de Lord Stanford há sempre, em espírito, reagir!

A tragédia do Massacre do Exílio abalou toda uma raça em carne, mas não em alma. Em memória daqueles, nossos semelhantes, que deram as suas vidas pela oportunidade de liberdade. Embora ela ainda não fora adquirida, a Rebelião nos garantiu este simbólico espaço – o lugar onde todos os monstros legalmente libertos da Guarda podem desfrutar da esperança de um futuro melhor em todo o Multiverso.

Avante!

Toffee of Septarius (1982)”

Acometido por uma onda estonteante de fascínio, Dipper procurou se apoiar na viga mais próxima. O sorriso involuntário de mais cedo estava de volta mais largo do que nunca. Dipper teve a mesma sensação de mais cedo, nas grutas. O fantasma da proteção de Ford cobrindo tudo ao redor com uma pitada inebriante de orgulho. Mais uma coisa incrível que Stanford tinha feito e Dipper nem sequer havia se dado conta. Mesmo quando dava errado, seu tio avô parecia ter a habilidade de fazer dar certo. De um jeito ou de outro, tudo parecia se transformar na presença dele.

Um pingo de tristeza manchou a tela de emoções do garoto. Ford era tão tudo. Tão forte. Tão destemido. E lá estava Dipper, tremendo até com a própria sombra.

Estava prestes a voltar para o interior do bar quando: outra miudeza. Uma pintura. Algo cultural, quase rupestre, ainda atrelado à temática barbárica do lugar. Era uma imagem retratando o que parecia ser a grande batalha. Um apinhado de monstros arremetia-se contra a silhueta grande, negra e agourenta de Time Baby. Do lado dele, tão grande quanto o ditador, estava Ford – o único da gravura em cores vivas e detalhadas – empunhando uma espada enorme, pronto para confrontar a autoridade.

Acima disso, estava pendurada a própria espada representada na imagem, suspensa por ganchos de ferro, dentro de uma caixa de vidro. Era longa e esguia, quase como uma de esgrima. Porém requintada o bastante para pertencer a ninguém menos do que Stanford. Carregava a imponência dos seus ideais e ao mesmo tempo a delicadeza do seu perfeccionismo e inteligência.

Queria ser mais daquela maneira, queria ser mais como...

“Chega!”

O pensamento irrompeu no automático.

“Chega de se comparar, Dipper. Isso não vai te tirar dessa situação. Ficar pensando está te atrasando. Aja!”

Não lamente. Nunca!, o ensinamento que Tom tinha lhe presenteado mais cedo voltou a arder na sua cabeça, como se marcada à ferro em brasa no seu cérebro, doendo a ponto de se parecer com um puxão de orelha.

Com a rapidez e inflexibilidade de uma lufada de vento, Dipper eclodiu bar adentro. Ziguezagueando com passos firmes até a mesa onde o camaleão de mais cedo ainda estava sentado. Com naturalidade absurda, Dipper surrupiou o casaco de escamas invisíveis da criatura e continuou andando.

— Ei! — O camaleão chiou pelas costas de Pines. — Seu ladrãozinho chifrudo!

O Poder dentro de Dipper fez seus pelos do antebraço se eriçarem, como se pressentissem perigo. O garoto girou, magicamente prevendo o ataque que o camaleão nem sequer ainda tinha pensado em fazer.

— Me economiza! — E, simples assim, Dipper socou o camaleão na cara. A criatura curvou para trás e despencou da cadeira com o impacto. A cena deixou todos os monstros próximos de boca aberta. Apertou o passo e encontrou Thomas virado pra ele com o queixo também praticamente no chão.

— Que porra tu tá fazendo?

Dipper sorriu maroto por debaixo da máscara. — Planejando.

— Ah, é? Seu plano envolve encarar uma taverna inteira de monstros no soco? — Tom apontou, Dipper seguiu. Grande parte dos monstros que tinham presenciado a cena já havia se levantado e perfuravam o garoto com seus olhares fiados.

Dipper deu um risinho debochado e um dar de ombros. — Já passei por pior. — E com essa deixa ele dispensou a máscara, atirando-a para longe e rapidamente se cobrindo com o manto de escamas do camaleão. Dipper desapareceu por inteiro num piscar de olhos.

Tom ficou parado, confuso, tentando entender o que tinha acabado de acontecer assim como metade do público que tinha focado em Dipper. De repente, uma voz fantasmagórica sussurrou dentro do seu ouvido: — Não poderei usar magia, mas poderemos usar isso, não é?

O demônio tomou um pequeno susto, mas disfarçou, notando rápido que era Dipper quem confabulava. — Ótima ideia — segredou Tom com um sorriso de orgulho para o pupilo (onde quer que ele estivesse).

O bracelete de Tom então acendeu uma luzinha vermelha que ficou apitando, acendendo e apagando. Beep! Beep! Beep! Beep!

Achô! — Ele sorriu para o dispositivo com um prazer antagônico. — Salvo pelo gongo — sussurrou para Dipper. — Se eu fosse os senhores, eu me afastaria — alertou casualmente para a plateia de monstros enraivecidos.

O chão começara a vibrar de leve, como se uma manada havia debandado do lado de fora e estivesse prestes a colidir contra o edifício, ficando cada vez mais perto e perto...

Levou um segundo ou dois para um dos clientes notar a presença do bracelete em Tom, levantar o dedo na sua direção e gritar de olhos esbugalhados: — Olhem! Ele é um fugiti–!

CRASH! Todas as janelas da taverna explodiram! Choveu lascas de vidro por todos os cantos do bar. Os clientes se abaixaram em sintonia, desconcertados aos gritos com a explosão. Os rombos e todas as entradas e saídas do local transbordaram de homens formados em spandex pretos futuristas. Os Agentes do Tempo.

— A cavalaria chegou... — disse Tom em escárnio, sem mover um músculo.

Os guardas, cobertos de escudos de obsidiana e armas de plasma que chiavam eletricidade de tanto carregadas, circularam Lucitor em menos de três segundos, passando e pisando por cima de mesas cadeiras e monstros. — Parado aí! Guarda Temporal! — bradaram vários deles em uníssono. — As criaturas continuavam sob as mesas, colados no piso, tremendo de medo. Dipper arredou ainda mais para trás do amigo.

Tom ergueu as mãos pra cima despreocupado.

— Thomas Draconius Lucitor, o senhor é acusado de foragir-se da responsabilidade de servir às necessidades da Guarda, tal como conspirar contra o regime decorrente da Rebelião de Stanford Pines nos últimos trinta anos! — prosseguiu um deles, o mais próximo.

— Eu me rendo. Tô cheio de brincar de pique-esconde. — Ele juntou os pulsos e os estendeu na direção do oficial. O homem se aproximou e fez surgir um par inteiriço de algemas feitas de algum material que Dipper ainda desconhecia, mas parecia pesado e inquebrável.

Um outro homem foi pegou o demônio pelas costas e o mar de oficiais se abriu para que Thomas pudesse ser escoltado para fora do recinto. — O senhor será sentenciado a cumprir tempo no Exílio até futuras ordens dos seus superiores — relatou o escolte, decorado feito uma máquina. Dipper foi atrás, pé-ante-pé, encolhido dentro do casaco da invisibilidade sem que nenhum dos guardas pudesse sequer imaginar a possibilidade da sua presença.

— Estou bem atrás de você — avisou a Tom pela última vez, sussurrando o mais baixo que conseguia.

De queixo empinado e postura ereta, Tom sorriu de ponta a ponta, mostrando os dentes afiados iguais a pregos, maliciosos e prontos para causarem um estrago.

De garras e presas a rugir, eles desfilaram rumo à punição.

— Vamô nessa.


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