Redenção escrita por Pollyanna Felberk, Salgarello


Capítulo 2
Capítulo I




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/789667/chapter/2

—Eu tenho que dar um jeito nisso... – murmurei enquanto descia a colina da propriedade da família Edwaine. -Tem que ter um jeito...

A verdade é que nossa situação era realmente difícil, Aila era bem nascida e eu um simples plebeu. Meu pai era o ferreiro da vila e minha mãe o ajudava e cuidava de meus dois irmãos mais novos. Sendo o filho mais velho de um artífice, toda a vila esperava que eu seguisse os passos de meu pai. “Ele vai ser igualzinho o Ulfric...”, murmuravam quando eu passava. E de fato eu havia herdado o porte físico do meu pai, forte e com ombros largos, afinal toda minha infância foi passada na forja ajudando-o.

—Mas um ferreiro não casa com nobres... – A profissão era bem quista: todos na vila e na propriedade Edwaine precisavam do trabalho do meu pai, e ganhávamos dinheiro suficiente para sobreviver aos invernos, porém a diferença social ainda era gritante.

Esses pensamentos me perturbavam diariamente, sem trégua desde aquele fatídico dia. Eu não devia ter mais que dez invernos, era primavera e os pássaros chilreavam em sua cacofonia da época de acasalamento e nós decidimos nos aventurar e explorar o bosque da propriedade.

Brincávamos nos escondendo atrás de troncos e rochas quando me distanciei um pouco. Não sei o motivo, mas foi como se algo magicamente estivesse me guiando por entre aquelas altivas árvores. Lembro como se fosse hoje, as folhagens novas nas copas dos carvalhos, a relva e os animais se escondendo ao som dos meus passos desajeitados... E lá estava ela. Aila era um anjo, bem ali, no coreto da propriedade, brincando com seu cachorro.

A beleza daquela garota permeou-me e fiquei inebriado, esquecendo completamente da ordem vigente do lorde: é vetada a presença de qualquer um à propriedade sem convite. Quando eu percebi já estava dando os primeiros passos para além do bosque, quase me debruçando sobre a grade que circundava a propriedade.

Porém, antes que eu pudesse chegar mais próximo para admirar aquela bela criatura, um de meus amigos, Peter, o filho do sapateiro, me impediu. Segurou minha mão e disse algo como “Você está louco? Vão te pegar!”. Foi o suficiente para me despertar do estupor e, quando olhei novamente, Aila já tinha voltado para dentro de casa.

Aquele dia foi um divisor de águas. Voltei para casa e contei tudo para minha mãe. Eleanor, uma mulher forte e guerreira, porém com um coração doce. Eu disse algo como: “Mamãe, mamãe, quero me casar com a garota da propriedade! Ela tinha um cachorro felpudo!”. Minha mãe me ouviu e, até hoje, lembro da única lágrima que escorreu de seus olhos.

—Filho... não sei como te dizer isso sem te magoar, mas casamento entre nós da vila e os de sangue nobre é algo impossível.

Aquelas palavras não surtiram efeito naquela época e não surtem agora.

É verdade que um plebeu não pode se casar com um nobre, pois a família nunca permitiria. Porém, se um homem adquirir renome, fama e dinheiro... Bem, qualquer pai quer que sua filha se case com um herói, não é?

Todas as histórias que meu pai me conta, sobre Thror, o anão que derrotou o dragão Greth, ou o elfo Gyllin que derrotou todo um exército com sua voz e magia... Nenhuma dessas histórias cita o berço dos personagens, apenas sua bravura, sua honra e seus feitos, que os levaram à fama e glória.

—Não importa o que eu tenha que fazer, eu irei conquistar o direito à mão dela... – Esses pensamentos me conduziram bosque abaixo.

Finalmente cheguei na vila: um amontoado de casas baixas de madeira na parte ocidental da colina. Um riacho que brotava na propriedade corria bosque abaixo e se tornava um pequeno rio que atravessava o coração da vila.

Andando ao lado do riacho, percebi que meu reflexo parecia extremamente cabisbaixo. Fitei a água límpida e observei um risco rápido cruzando o céu acima da minha cabeça. Olhei para o céu e lá estava: a “maldição”, fogo e desespero.

⚜️⚜️⚜️

Enne escovava meus cabelos enquanto eu encarava nossos reflexos no espelho da penteadeira. Apesar de ser filha da cozinheira, tínhamos praticamente crescido juntas e eu a considerava mais uma amiga e confidente do que alguém a meu serviço. Eu sabia que podia confiar nela.

—Você já se apaixonou, Enne?

Observei-a se surpreender com a pergunta e logo uma coloração rosada apareceu em suas bochechas queimadas pelo sol. Imaginei ver a ponto de um sorriso ali.

—Não acredito que você não me contou! - Virei-me para encará-la e tirei a escova de suas mãos, como uma mãe que repreende uma criança.

—Essa pergunta diz respeito a um certo alguém que todos os dias fica rondando a propriedade? - Enne pegou a escova de volta e me induziu a virar para que ela terminasse seu trabalho. -Você sabe que seu pai é capaz de matá-lo se souber disso – sussurrou por fim.

Eu sabia. Mas houve uma época que as coisas não eram assim. Uma época que nós duas sentávamos na grama do jardim e sonhávamos com nossos casamentos por amor, sem imaginar que uma de nós talvez nunca tivesse isso. Nós viramos melhores amigas quando ambas tínhamos um pouco mais de oito anos, antes disso éramos apenas eu e meu irmão mais velho.

Aiden sempre foi um exemplo para mim, foi um pai quando o nosso estava ocupado demais em seu escritório para nos dar atenção e uma mãe em todas as vezes que me machuquei em nossas aventuras, cuidando de cada um dos meus arranhões ele mesmo.

Adorávamos correr por aqueles corredores frios e cinzas e nos esconder na infinidade de quartos que existiam ali, mas foi em uma dessas brincadeiras que as nossas aventuras juntos teve um fim.

Eu tinha dez anos e Aiden tinha doze. Era uma tarde chuvosa e devido a estarmos fadados a permanecer dentro da casa não parecia de bom tom brincarmos com a filha da criada na sala de estar, logo não nos foi permitido ver Enne.

Depois de esgotarmos todas as brincadeiras e jogos, eu estava sentada no tapete felpudo da sala fazendo carinho em Cometa, o cachorro peludo de Aiden, enquanto ele andava de um lado para o outro, impaciente. De repente seus passos pararam de ecoar.

—Já sei! O que acha de uma expedição no jardim? – Um sorriso animado já tomava conta de seu rosto.

—Está chovendo muito, Aiden! Mamãe vai ficar uma fera.

—Não se ela não souber – Ele estendeu a mão e, mesmo um pouco receosa das possíveis consequências, aceitei.

Não foi nada fácil sair sem que ninguém percebesse, a cada volta que dávamos tinha um guarda ou um criado à nossa espera, mas Aiden já tinha uma história preparada para todos eles e finalmente conseguimos chegar ao jardim, com a chuva começando a molhar nossas roupas.

—Vem, Aila, talvez a gente encontre alguma coisa interessante, os passarinhos não conseguem voar em tempos assim – disse ao me puxar pela mão procurando o canto com a maior quantidade de árvores do jardim, atrás de algum ninho caído.

Ficamos horas na chuva, andando de um lado para o outro enquanto Aiden colocava vários insetos diferentes dentro de um pote que pegou na cozinha. Meu vestido já pesava sobre mim e eu começava a duvidar se aquilo tinha sido uma boa ideia. Sentia frio e meu penteado não existia mais. Se nossa mãe não descobrisse, Maria, nossa governanta, certamente descobriria.

Enquanto eu insistia pela terceira vez para que voltássemos para dentro, ouvimos o tão temido grito.

—Aiden! Aila! Apareçam, vocês estão muito encrencados!

Não me lembro muito bem daquela noite ou dos dias que se seguiram. Uma forte gripe se abateu sobre mim e em mais da metade do tempo encontrava-me em alucinações provocadas pela febre alta. Em determinado momento, acreditaram que eu não sobreviveria.

Foi só depois de cinco dias que tive finalmente uma considerável melhora. Apesar disso, minha respiração nunca mais foi a mesma e passei a sofrer com faltas de ar periódicas. Porém, o pior disso tudo foi que meu relacionamento com Aiden nunca se recuperou por completo.

Uma semana depois, quando as pessoas quase estavam me tratando como uma criança normal novamente, encontrei com Aiden no corredor logo que saímos de nossos quartos.

—Aiden! Como você está? – perguntei sem conter um enorme sorriso.

—Estou bem. E você, Aila, sente-se melhor? – Ele deu apenas um mínimo sorriso, o que estranhei, não era de seu feitio esconder suas emoções.

—Sim... Por que não nos vemos mais? – Eu sentia uma imensa falta do meu irmão, principalmente porque ainda não estava autorizada a brincar no jardim com Enne.

—Tenho que crescer, Aila – E após dizer isso, me deu as costas, aquele não era mais o Aiden que eu conhecia e amava.

Passei a vê-lo apenas no horário das refeições ou nos esbarrando pelos corredores e mesmo nesses momentos suas palavras eram breves. No resto do tempo, Aiden vivia trancado na biblioteca com nosso pai, resolvendo “coisas de homens”, ou com os guardas aprendendo o manejo da espada.

Quando finalmente voltei a brincar com Enne aprendi que as meninas não são caçadoras de aventuras. Nossa maior aventura era fazer coroas com flores roubadas do jardim e esperar sermos salvas por um príncipe. Fingíamos ser ninfas bondosas, fadas com varinhas mágicas ou princesas de reinos distantes, todos os personagens das histórias que a mãe de Enne contava para ela, as pessoas da vila eram extremamente criativas em suas mitologias.

Já fazia algum tempo que Enne me deixara sozinha no quarto absorta em meus próprios pensamentos e, sem motivo aparente, comecei a sentir a familiar falta de ar. Em alguns períodos do ano eram mais frequentes que em outros e alguns dias mais sérios que em outros. Quando a leve dificuldade para respirar aparecia, eu me encaminhava para o famoso “corredor dos arqueiros”, onde diversas fendas diagonais me permitiam respirar ar puro e observar a lua, as estrelas e a aldeia aos pés da colina. E foi para lá que imediatamente fui quando senti a respiração falhar, aquele lugar me acalmava e isso normalizava a entrada de ar em meus pulmões.

Assim que vislumbrei a vila através da primeira fenda, senti como se o ar tivesse faltado completamente. Nada mais passava por minhas vias respiratórias enquanto eu observava a luz alaranjada que a vila irradiava e, aos céus, uma criatura que jamais havia visto ou sequer imaginado nos meus piores pesadelos. As escamas das asas enormes refletiam o vermelho vivo das labaredas que engoliam as casas abaixo. Sentia que a minha consciência aos poucos se esvaía conforme eu compreendia que a vila se tornara o sol na terra. E, antes que a escuridão me tomasse por completo, observei aquele ser tão estranho cuspir fogo sobre os últimos campos de trigo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Redenção" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.