Drania escrita por Capitain


Capítulo 6
Fumaça




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Eu esperei Goroth desaparecer entre as árvores antes de desabar. Fazia muito, muito tempo desde que eu chorara pela última vez, e muito mais tempo ainda desde que deixara outras pessoas verem minhas lágrimas. Chorar geralmente não ajuda em nada. Não enche barrigas vazias ou cura braços quebrados. Não te dá vantagem em uma briga de rua. Não muda as circunstâncias do seu nascimento ou faz com que o tempo pare de passar. Mas, bem de vez em quando, chorar ajuda a fazer situações desesperadoras parecerem um pouco menores.

E, dessa vez em particular, foi uma boia maneira de manter a calma. Até então, tudo tinha sido tão caótico e descontrolado, que eu quase gostei da ideia de ficar sozinha em meio à clareira devastada, escura e salpicada de corpos. Quase. Eu lentamente me entreguei aos soluços, e deixei que eles tomassem o controle por só um minuto. E depois sacudi a cabeça e comecei a pensar.

Primeiro, havia a xícara que eu conseguira duplicar “usando magia”. Tudo o que eu fizera fora tentar segurar a xícara por reflexo. Eu sequer pensei em se a xicara iria atravessar a minha mão, ou calculei nada. Eu só segui o impulso de segurar a xícara antes que ela se espatifasse. Mas, interagir com a xícara não me ajudava a me mover.

Eu não podia tocar em nada nesse mundo, a não ser através de magia. Eu podia, entretanto, interagir com meu próprio corpo translúcido, e coisas feitas do mesmo material... Aurora tinha dito que a chave para me mover era empurrar a matéria escura, então talvez, ela estivesse se referindo ao material... fantasmagórico. Fazia sentido. Eu sou um fantasma, e fantasmas são feitos de matéria escura. Mas eu não tinha como empurrar a mim mesma para frente, tinha?

Só por curiosidade, eu tentei, já imaginando que não ia funcionar. Tentei empurrar meu tronco com meus braços. Sem sucesso. Tentei rodopiar, e descobri que eu de fato conseguia ficar enjoada, mesmo sendo um fantasma. E que era impossível parar de rodopiar sem ter um apoio ou barreira. Por pelo menos dez minutos, eu fiquei ali, pateticamente girando no lugar, e tentando corrigir meu curso agitando os braços.

O segredo era empurrar a matéria escura... e se eu tentasse fazer o mesmo que tinha feito com a xícara, mas usando o chão? Se eu conseguira fazer uma cópia da xícara, que eu podia segurar, talvez eu pudesse fazer uma cópia do chão e... ah é, eu não tinha pernas. Era estranho para mim não ter controle sobre parte do meu corpo. Como transmorfa, eu podia recriar e alterar meu corpo até um certo nível, mesmo sem alguém ou alguma coisa para copiar.

Eu nunca tinha perdido um membro, mesmo que eu soubesse que, tecnicamente, era possível copiar alguém que não tivesse um. Mas eu havia perdido um dedo antes. No dia em que Zhar morreu, eu tentei me proteger de uma espada com as mãos, e perdi o dedo anelar. Em algum ponto dos oito anos que se seguiram, eu havia decidido crescer um novo. talvez, com tempo suficiente, eu conseguisse crescer pernas novas, se eu as perdesse e continuasse viva. Eu já ouvira histórias de Transmorfos capazes disso.

Mas eu era um fantasma agora. Transmutar o meu corpo sequer funcionaria? Era uma pergunta que eu ainda não tinha feito a mim mesma. Quando eu morri, minhas marcas voltaram. Será que eu conseguiria escondê-las novamente, se preciso? Olhei para meus braços, rodopiando na escuridão. E me concentrei. A voz de Zhar surgiu na minha cabeça, conforme eu me lembrava do dia em que ele havia me ensinado a controlar a habilidade, três meses antes dele morrer.

“Pelo que me explicaram – ele dissera – nosso corpo é feito de coisinhas pequenininhas, chamadas células. Os Transmorfos conseguem controlar elas com o pensamento” eu imaginei minha pele mudando de cor, uniformizando-se e retornando ao tom café natural, só que sem as listras azuis. Devagar, meus braços de fantasma me obedeceram. Então eu ainda era feita de células. Perguntei-me se deveria deixar minha pele como estava, agora que tinha morrido, e era incapaz de passar fome.

Decidi deixar as faixas azuis retornarem. Nem aurora nem Goroth as haviam mencionado, então talvez eles não se importassem com o fato de eu ser uma transmorfa. E, já que eu ainda conseguia usar essa habilidade, eu só precisaria escondê-las novamente quando encontrasse Alice de novo. Alice não sabia sobre minhas marcas. Ela não era uma transmorfa.

Não é hora para pensar nisso, eu me reprendi – não vai adiantar de nada se eu não aprender a me mexer. quanto tempo já havia passado? Eu tinha uma hora para descobrir como voar, e tudo o que eu fizera fora ficar tonta e lembrar do passado. eu tinha dificuldade para permanecer focada. Não ajudava muito o fato de não conseguir parar de girar.

Se eu pudesse duplicar coisas e me mover empurrando-as, então ou teria como me apoiar nas árvores, no chão, e... eu tive uma ideia. Uma ideia tão simples que tive vontade de me estapear por não ter pensado nisso antes. “nós somos feitos de coisinhas pequenininhas”, Zhar havia dito. Sim. Tudo que era grande era feito de coisas pequenininhas. As pessoas, as plantas, a terra e... O ar.

Se eu conseguisse “usar magia” para copiar o ar ao redor do meu corpo, quem sabe eu conseguisse empurrá-lo para manter-me flutuando em uma direção. Eu era bastante leve na minha forma fantasma, e a xicara que eu tinha duplicado mais cedo era também mais leve que uma xícara comum. Ao invés de tentar controlar o meu rodopiar, tentei imaginar o ar à minha volta como parte do meu corpo, convencê-lo a se transformar em um ar fantasma.

Levou tempo. Muito tempo. Mas agora que eu tinha uma ideia geral de como tudo aquilo funcionava, eu estava confiante de que ia conseguir. Se a ideia que eu tinha não estivesse completamente errada, é claro. Na enésima tentativa, eu vi uma fina camada de “matéria escura” brilhando ao redor da minha mão. quando eu a movi, a camada se desfez, espiralando com fumaça pelo ar. Minhas mãos agora soltavam fumaça brilhante. Presumi que aquilo fosse o ar sendo transformado em matéria escura.

O restante foi tentativa e erro. Com o tempo, fiquei boa em criar aquela trilha de fumaça. Não era uma coisa que eu podia controlar diretamente. Era quase como um instinto. Como respirar ou comer. Talvez aquele fosse um instinto que todos os mortos tinham. Levou um absurdo intervalo de tempo até eu ter “ar” suficiente para eu poder usá-lo e parar de girar, e ele se espalhava com muita facilidade.

Se eu ia empurrar aquela fumaça para longe de mim, usar as mãos simplesmente não era eficiente. Talvez se eu conseguisse soltar jatos pelas minhas palmas. Mas eu senti que não dava. Era um sentimento estranho, esse instinto de duplicar as coisas ao meu redor. Levou tanto tempo para entender, mas era tão fácil de se controlar. Eu parei de criar fumaça com minhas mãos, e ela se dispersou em uma fina camada de neblina violeta.

Cá entre nós, era bem bonito. Mas não era nisso que eu estava interessada. Tentei “expelir” a fumaça pelos meus braços, minha cabeça, meus ombros, minha barriga. Eu tinha recuperado o controle. Meu corpo era uma das únicas coisas que realmente me pertencia quando eu era viva. E ele finalmente voltara a ser meu depois de morta. “Crie algo que você possa empurrar”, era o que aurora tinha me dito?

 E se eu usasse minhas costas para gerar matéria escura? Talvez isso me empurrasse par a frente. Eu então imaginei uma linha, dividindo meu tronco na vertical, entre frente e costas. E depois, tentei converter o ar diretamente atrás de mim em matéria escura. Funcionou. eu me movi para a frente, deixando uma trilha de fumaça translúcida por onde eu passava, e meu vestido começou a ondular com o vento fantasma.

Ah, talvez essa seja uma boa hora para mencionar que eu estava usando um vestido. Eu não costumava usar vestido quando viva, porque 1, eles eram caros e 2, eu não via como uma peça enorme de decido te seguindo como uma cauda fosse ajudar a me esgueirar, pular muros e correr. Mas eu sempre usava um vestido quando ia visitar Alice. Um dos dois ou três que eu tinha, guardado em um baú escondido eu uma sala secreta nas ruínas do que um dia fora uma adega. E fora com aquele vestido que eu morrera.

O que me trouxe a preocupação, um tanto ridícula, a respeito do que podia ser visto sob ele, agora que eu estava voando. Pensando bem, aquela era uma boa hora para investigar o mistério de poque minhas pernas tinham sumido. Mesmo sabendo que eu estava sozinha, eu olhei em volta apreensivamente, e então levantei meu vestido, e descobri porque as minhas pernas não estavam lá. Na verdade, nada abaixo do meu umbigo estava lá.

No lugar aonde antes estava a minha cintura, agora havia uma massa disforme de ossos e músculos, pendurados ao meu tronco como roupas no varal. Em algum ponto, no meio da minha queda, eu tinha sido cortada ao meio. Deixei o vestido voltar ao seu lugar, e se eu pudesse, teria vomitado. Eu podia imaginar meus órgãos pendurados ali, e só o pensamento me dava ânsias.

Então a lembrança veio do nada, invadindo a minha mente, me fazendo lembrar da dor.

Eu estava em pé, na beira da muralha, olhando para as rochas, centenas de metros abaixo, e o lago, mais à frente, quilômetros de água refletindo as estrelas. Eu não queria estar ali. Eu não queria cair. Eu não... de repente, eu estava de volta no ar, me debatendo, gritando, tentando pensar em alguma coisa, qualquer coisa, que impedisse que as rochas chegassem mais perto... plaft.

Eu não lembrava como tinha ido parar na muralha. Ou como caíra. A minha última lembrança antes da queda era uma vaga imagem de estar caminhado por um beco à tarde, pensando nos prós e contras de contar para Alice... contar o quê? Tinha uma coisa que eu precisava contar para ela, que eu não podia morrer antes de contar, mas o que era?

Foi então que percebi. A escuridão me fizera esquecer. Mesmo que eu conseguisse chegar até Alice, eu não saberia o que dizer.

O Vazio havia tirado aquilo de mim.


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