Equilibrium escrita por Diane


Capítulo 31
Capítulo 30 - A garota que desvanece




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Puta que pariu, pensei. 

Era de matar. Todo aquele trabalho para pegar a merda da adaga e depois para esconder e puff, a criatura roubou direto do meu roupão. Só para conferir, passei a mão no meu bolso. Vazio. Sabe aquela cena de desenho animado com fumaça saindo das orelhas? Bem, se minha vida fosse ilustrada, acho que esse seria o momento. 

Deuses, a adaga estava dentro do bolso não fazia nem dez minutos e já tinha sido roubada. Érebo deveria verificar a paternidade de Trivia, talvez Hermes fosse o pai. 

— O que foi? Sua cara está esquisita — Idia disse. 

Encarei a gata. Ela literalmente dormia no meu travesseiro, então, haveria escolha melhor do que ela? Idia também era uma metamorfa, só que nunca vi ela na forma humana, o que dava para disfarçar as suspeitas porque é natural que a gente foque nos "humanos" como suspeitos. Apesar de conhecer Ií desde pequena, eu não sabia nada da personalidade dela porque ela agia como uma gatinha normal. Era como uma tela em branco para atuar. Quão engraçado seria se disfarçar como a protetora que Nix enviou? 

Notei um tom cínico na "sua cara está esquisita". Era neurose ou fato? 

E, é claro, não podia esquecer que a adaga sumiu quando fui com Idia para a cozinha. Ou pelo menos notei naquele momento. 

Foi esse último pensamento que me impediu de arremessar a adaga não mágica que estava no outro lado do roupão na gata. Seria bem mais fácil dar um fim em Trivia naquela forma e seria inesperado para ela. Mas no fim, dava para ter certeza. 

E meu coração era mole demais para machucar uma gatinha. Trivia é articulada, pensei.

— Christine, o que foi? — Idia falou novamente. 

— Nada. 

Era melhor que ninguém soubesse. Iria ser o caos e meio mundo iria cair em cima de mim criticando — Já bastava meu próprio cérebro cantarolando " orelha de burro, cabeça de E.T". — Se a criatura conseguia me roubar sem nem encostar, aposto que ela conseguiria esconder essa adaga onde eu não pudesse achar em uma inspeção geral. Além disso, ela achou a adaga como se pudesse rastrear. A adaga não fazia volume no roupão, era fina. Eu tinha tirado ela da geladeira no meio de um pote de sorvete, ninguém iria imaginar. 

Ela imaginou, querida, meu lado mais perverso dizia.

 Eu precisava de tempo para pensar. Isso é, se eu tivesse tempo. Ela poderia cortar minha garganta à noite fácil fácil 

Gostaria mesmo de dizer que me manti pragmática o tempo todo. Que respirei fundo e vi que a melhor solução era continuar. Na verdade, eu queria socar a parede feito machinho irritado. Só que no máximo, iria conseguir o punho fraturado. E uma Trivia rindo, pode apostar. 

Então, me mantive inexpressiva e voltei para a sala. Eles estavam como eu tinha deixado: nenhuma expressão mais suspeita que a média. Vanessa me encarou um pouco mais longamente, mas poderia ser suspeita por causa da demoram 

Dei meu sorriso mais polido. Esperava que meus dentes afiados não dessem a impressão de um monstrinho animado. 

— Mare, você pode vir conversar comigo lá fora?

Antes, ela estava olhando a TV e parecia perdida nos próprios pensamentos. Depois, ela ficou bastante pálida e atenta. 

Quase ampliei o sorriso. Meu lado antiético gostava que tivessem medo de mim. Possivelmente, isso tinha chances de virar síndrome do pequeno poder. 

— Claro — Mare disse e me seguiu para fora. 

Caminhamos até as cadeiras de balanço do quintal e sentamos lá, igual duas idosas fofocando. Era arriscado, mas as chances de Trivia dar algum indício pensando que não estava sendo observada pelos demais era maior. 

Eu não sabia como começar a conversa com a garota que usou meu rosto nos últimos dias e colocou um alvo nas costas (mas que também tinha chances de ser a própria Trivia disfarçada). E aí, como vai? Tem saudades de ser essa beldade? 

— Como é ser metamorfa? — comecei. 

Ela pareceu ficar mais nervosa, e isso fazia sentido, Trivia era uma metamorfa. Mare não parecia ameaçadora, era uma garota baixinha, com traços faciais delicados. Parecia uma Tinker Bell morena e com cabelo quase preto. Aparentemente inofensiva e angelical, mas eu não era trouxa para cair nessa. 

Mare deu uma risada. 

— É o pior poder. 

Ergui as sobrancelhas. Não me parecia tão ruim. 

— Por ficar sempre na linha de frente como alvo?

Ela reclinou a cabeça para trás.

— Isso é o menor dos problemas. As transformações são complicadas, eu não assumo só a aparência das pessoas. É complicado explicar, mas parece que alguns traços deles ficam para trás depois que volto ao normal. 

— Memórias? — perguntei, alarmada. 

— Não… são mais como impressões e gostos. Na minha família, pelo menos, ninguém me falou sobre manter memórias. 

Menos mal. Se Trivia ficasse com as memórias, já era. A dificuldade para pegar iria dobrar. 

— Mas se você está perguntando sobre Trivia, não posso ter certeza. Ela é descendente direta de um deus, os poderes dela devem ser bem mais fortes. 

É claro que teria um porém, pensei. 

— O que permaneceu de mim? — A minha suposição anterior é que ela só tinha ficado com a minha aparência por um tempo. Não sabia que iria ficar alguns vestígios pessoais sobre mim. Pô, Ilithya poderia avisar sobre a invasão de privacidade. 

— Vou ser sincera, eu tinha medo que uma transformação na reencarnação de Diana fosse forte suficiente para me mudar permanentemente ou algo do tipo. Mas até agora, só restou um amor absurdo por pizza de palmito, vontade de agradar todos gatinhos e cachorros da rua e levar para ONGs, um impulso alto para achar todos idiotas e um interesse repentino para estudar genética. 

Ri. Parecia verídico. 

— Demora quanto para passar o efeito? 

Mare pareceu repetinamente triste. 

— Não passa. E eu sei disso porque estou me transformando em diversas pessoas desde criança. 

Então era isso. A maldição dos metamorfos: em algum momento, eles perdem a própria personalidade e viram uma colcha de retalhos. 

— Porque vocês se transformam então?

— Proteção política, necessidade, influência. Diversas causas. Quando não se tem um poder destrutivo de larga escala no nosso mundo, é bem fácil se tornar um subordinado.

Eu poderia ficar filosofando aquilo por horas. Até que ponto valia viver se você fosse se perdendo aos poucos? Em que ponto, em quantas transformações, a personalidade original se esvaia? 

— Esqueci de dizer uma coisa — Mare disse e naquele momento, ela não parecia mais uma menina pequena e assustada — Quanto mais tempo Trivia ficar nessa forma, mais traços irão ser absorvidos. Dependendo do tempo, isso vai ser mais do que gostos. Pode até alterar permanentemente. 

Trivia estava se arriscando. E também devia estar com pressa. 

Mas a questão era: pra quê? Ela tinha acabado de pegar a adaga, a outra estava em posse do irmão dela, que era ligado à Érebo e entregaria facilmente. Me matar? Ela tinha tido mil oportunidades, no mínimo. 

O que Trivia queria, afinal? 

Puta que pariu, pensei. 




— Picasso ficou tão obcecado com amarelo porque nunca conheceu o castanho dos seus olhos. 

Gargalhei.

— Já vi essa no facebook — E que a verdade seja dita: meus olhos parecendo castanhos avermelhados no sol não são tão bonitos. São assustadores. 

Talvez essa tenha sido a razão para escolher aquele lugar especifico para o interrogatório. 

— Eu tinha que tentar — Samir murmurou enquanto se sentava na cadeira do lado. 

— Você acha que vai conseguir desviar as suspeitas com um flerte, Samir? 

A criatura era bonita, isso era inegável. E eu gosto de seres altos, o que também era inegável. Mas a reencarnação de uma feiticeira poderosa inflitrada deixa as coisas bem mais analíticas. Pode ser paranóia — quem pode me julgar? — mas minhas suspeitas em relação ao coitado deram uma duplicada. 

— Eu só estou nervoso e tentei desviar — ele admitiu.

Estreitei os olhos. Com ele falando, reparei que essa era a voz da criatura que tentou me azucrinar enquanto dormia. 

— O que você queria fazer enquanto eu cochilava inocentemente?

Ele apertou o braço da cadeira.

— Você ouviu, então — piscou os olhos, inocentemente — Queria jogar água na sua orelha. 

Não era muito criativo, mas aposto que se ele conseguisse, iria ganhar pelo menos um chute na cara.

Dei um bote e peguei o óculos dele. Encarei o objeto nos últimos raios remancentes do sol. Bem, parecia um óculos normal. Encarei ele e o rosto continuava o mesmo. Paranóia Clark Kent = descartada. 

— Qual é a do óculos? 

Ele deu os ombros. 

— Miopia.

Encarei ele. 

— Miopia? Em descendente de deuses?

— Mestiço. Minha mãe é mortal. 

Ergui minhas sobrancelhas. Se as aptidões físicas ficavam diluídas a ponto de gerar miopia, os poderes também podiam sofrer o mesmo efeito. 

— Por que Ilithya te mandou aqui? — ergui as sobrancelhas. 

Ele desapareceu subitamente da cadeira e depois surgiu no meio do quintal. 

— Por isso. 

— Igual o Noturno? — ergui as sobrancelhas. 

— Com um alcance um pouco maior. Consigo pular uma distância de cidades. Você não pode dizer que sou inútil. 

Não poderia mesmo. Ilithya mandou ele como uma estratégia de evacuação rápida. E também colocou ele no grupo sem a Christine verdadeira, o que daria a impressão que aquele era o grupo oficial. Ilithya era esperta, Trivia poderia cair nessa, se não estivesse infiltrada. 

Ele surgiu novamente na cadeira do lado. 

— O que seu pai é? — perguntei. Se ele, meio mortal, fazia isso, certeza que o pai era fora da média. 

— Um dos membros do Alto Conselho, filho de Gaia. Ele controla os ambientes que está além de se teletransportar.

Um descendente de primordial, como eu. Era incrível como eu era a única incompetente da lista. 

— Você vai viver tanto quanto um descendente de deus comum? — perguntei. Curiosidade acadêmica. 

Ele virou o dedão com uma mão e quase o encostou no dorso do braço. Flexibilidade pra cacete.

— Poderia viver um pouco mais que um humano padrão, mas como você pode notar, sou azarado. Ehler-Danlos. 

Doença genética do tecido conjuntivo que gera hiperflexibilidade e mobilidade articular. Bastante rara e o tipo vascular, o que diminuia a longevidade, era mais rara ainda. O cara era realmente ferrado. 

— Por que está me contando isso? — perguntei. Olhem, eu tinha razões para suspeitar, poderia ser Trivia tentando me sensibilizar. 

— Para você não me colocar em lutas — ele me encarou — Se as coisas ficarem animadas demais, vou pular para uma cidade de distância na hora. Não sinto a menor vontade de encurtar minhs vida mais ainda para políticas divinas. 

Dei os ombros. 

— Só não me deixe no caos antes de pular. Traz o Damien pra cá. 




De todos os três, acho que Damien era o mais nervoso. Quem não deve, não teme, pensei quando vi ele sentado na cadeira e ligeiramente afastado de mim. Moreno, com olhos verdes grandes e expressivos, ele seria bonito se não fosse o cabelo preso em um coque samurai. Aquilo fazia ele parecer um típico esquerdomacho. 

— Me diga, Damien, qual é o seu drama? 

— Drama? — Ele tinha sotaque. Provavelmente era francês se o nome dele indicava alguma coisa. 

Suspirei. 

— Sim, drama. Alguma tragédia pessoal, limite de vida, gente assassinada e coisa do tipo. — falei — Por acaso, seus pais estão vivos? 

Ele parecia chocado. 

— Eles estão vivos. Não tenho nenhum drama, nada, sou normal. 

Encarei ele. Parecia normal mesmo. 

— Acho que as Parcas esqueceram de adicionar profundidade na sua história — constatei. 

— Bien, estou feliz sendo raso — ele me encarava como se eu estivesse prestes a fazer alguma ameaça. Bhaha, se sair da linha, vou arranjar uma profundidade no seu crânio. Nah, dramático demais para mim. 

— Fica esperto. Personagens sem desenvolvimento adequado são os primeiros a bater as botas. 

Agora ele parecia insultado. Pelo menos melhorei o estado de espírito do garoto. 

— Você é estranha. 

— Eu sei. 

Analisei a criatura novamente. Ilithya tinha algum motivo para mandar esse ser tão normal aqui. 

— Quais são seus poderes? 

— Eu apago memórias. 

Ele parecia estar falando sério. Nem piscou antes de dizer, era como se fosse a coisa mais normal do mundo. 

Depois daquilo, quem ficou nervosa foi eu. 

Se existe uma coisa que prezo, é minha mente. A ideia que uma pessoa podia apagar minhas lembranças era nauseante. Dava vontade de afogar aquele garoto na pia só para me livrar da ameaça. Mas esse era um caminho muito hardcore — e além disso, deve ser complicado afogar um vrykolaka. Devem se debater pra cacete —, o jeito era fazer um diário. 

Patético, eu sei. Coisa de criança desocupada da quinta série. Pra vocês terem ideia, não fiz diário na minha fase pirralha para ter que fazer com 17 anos nas costas. Pelo menos, a vida era mais animada agora. Iria mandar um email diário para mim mesma narrando as coisas importantes do dia só por garantia. E sempre iria andar com Idia — e a gata teria ordens para arrancar a cabeça de qualquer vrykolaka usando os poderes em mim. 

— Damien, querido…

— Sim?

Dei meu sorriso mais perverso. 

— Se tentar apagar minhas memórias, vou apagar uma parte sua. 

 


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Notas finais do capítulo

Teorias, pessoal?



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