Fine Young Gentlemen escrita por Lerdog


Capítulo 10
Language of Love


Notas iniciais do capítulo

Para aqueles que tenham interesse, eu coloco fotos dos intérpretes dos personagens aqui: https://www.wattpad.com/836418253-fine-young-gentlemen-cast

ooooou

Para aqueles que preferirem, eu também publiquei o capítulo com imagens/fotos em pdf, neste link: https://drive.google.com/drive/folders/1IZcqVARlVN4rj4RmZRPUibA-wlhlgfU1



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Rainfort, Connecticut, Estados Unidos. Novembro de 2020.

Todos os alunos e professores da Saint Dominic Academy For Boys estavam reunidos no maior auditório da academia. Eu estava sentado ao lado de Samuel, com Beckett e os rapazes do time próximos de nós. O Pujit estava provavelmente nos bastidores, se aprontando para a grande estreia. Eu estava genuinamente empolgado pelo meu amigo.

As luzes se apagaram e o meu coração bateu mais rápido. Aquele auditório era realmente majestoso, mais bonito do que qualquer um que eu já tinha visitado no Japão; e na minha experiência pessoal, apenas comparável a Broadway. Logo quando eu cheguei aos Estados Unidos, uns meses antes, meu pai nos levou para assistir Hamilton. Aquela tinha sido a primeira e única vez que eu tinha realmente me sentido próximo dele.

Quando Pujit entrou, eu fui o primeiro a começar a aplaudir, e o Samuel me acompanhou. Meu amigo se posicionou no centro do palco, o holofote colocado apenas nele. Pujit falou:

— Essa peça é dedicada ao Matt, meu melhor amigo.

E então meu amigo voltou para trás das cortinas. Olhei na direção do mister Graves, e ele tinha uma expressão meio irritada no rosto. Eu acho que ele não esperava por aquela dedicatória.

Eu percebi as pessoas vestidas de branco no mesmo instante, sentadas próximas do professor. Eram quatro, duas mulheres e dois homens, todos muito elegantes. Eu não conseguia ver da distância onde estava, mas eu tinha certeza que eles tinham broches da Foundation presos em suas peças de roupa. Tudo aquilo ainda me incomodava bastante.

Lord of the Flies começou e seguiu sem nenhum outro imprevisto ou problema. O Pujit estava realmente muito bom no papel de Ralph, o herói da história. Eu ainda não entendia como o professor Graves tinha confiado aquele papel ao meu amigo depois da suspensão do Barrett, mas eu estava feliz por isso. O Pujit realmente tinha brilhado como Ralph, de maneira como nunca tinha interpretando Piggy nos ensaios.

Quando as luzes se apagaram pela última vez, eu novamente fui o primeiro a me levantar e começar a aplaudir. Os aplausos inundaram o auditório, e pelos rostos dos outros garotos ao meu redor, eles também tinham gostado. O elenco voltou ao palco um pouco depois, junto daqueles que ficavam nos bastidores, e então eles se curvaram. Eu olhei na direção de Pen e acenei, e o garoto sorriu de volta para mim. Um segundo depois as luzes se acenderam e os professores começaram a encaminhar todos para fora.

Eu esperei até que Pujit deixasse os bastidores. Quando meu amigo apareceu, eu o interceptei com um abraço.

— すごい! Você foi incrível, Pujit!

— Obrigado. — Meu amigo, respondeu, um pouco envergonhado. — Eu acho que ainda preciso melhorar uma coisinha aqui e ali até a performance para os nossos pais, mas... Eu estou satisfeito. O mister Graves não cobriu o rosto nenhuma vez durante a peça, então eu acho que eu fiz um bom trabalho.

Assenti com a cabeça, sorrindo. Aquela tinha sido a primeira apresentação oficial de Lord of the Flies, apenas para aqueles que faziam parte da St. Dominic; mas a verdadeira performance seria feita dali algumas semanas, quando os pais dos pupilos visitavam a academia para buscá-los para as festas de final de ano. Os adultos ouviam algumas palavras do Headmaster, assistiam a peça e conversavam com os professores, antes de partirem. Os garotos então tinham alguns dias em suas casas e voltavam para a academia logo depois do réveillon.

O Pujit tinha me contado que na prática nem todos os pais compareciam, e que pelo menos um quinto dos garotos passava as festas na academia, longe da família. A princípio eu tinha achado aquilo bastante triste, até me dar conta de que eu provavelmente seria um desses garotos. Eu não tinha ilusões de que meu pai fosse comparecer para me buscar.

— Você acha que os seus pais vêm para a peça? — Perguntei.

Meu amigo deu com os ombros.

— Provavelmente não. Se eles não se importassem tanto com o que os outros vão pensar, acho que não me buscavam nem pra passar o Natal com eles e com as minhas irmãs.

Tentei abrir um sorriso fraco, mas não consegui.

xxx

Pen e eu conversávamos ao final de quase todas as aulas. Aos poucos eu adquiri o hábito de aprender pelo menos uma frase nova por dia na língua de sinais, e daí eu puxava assunto com ele a partir daquela frase. No começo o garoto precisava escrever bastante para que eu entendesse, mas aos poucos os gestos mais frequentes se tornavam conhecidos para mim. Eu ainda precisava pensar bastante antes de dizer alguma coisa, mas eu já conseguia entender Pen sem que ele precisasse realizar os movimentos muito lentamente.

Naquele dia foi Pen quem puxou assunto comigo, pela primeira vez. Eu ainda estava terminando uma atividade na sala vazia quando o garoto se sentou diante de mim. Ele esperou que eu terminasse e estendeu um livro na minha direção.

Por um segundo me lembrei da ocasião em que Binky tinha realizado o mesmo gesto na quadra de esportes, depois de ler Battle Royale. O sentimento de angústia começou a me invadir, mas rapidamente meneei a cabeça de maneira negativa, tentando afastar aquela memória.

Pen aguardava pela minha reação com expectativa.

— 源氏物語! — Eu exclamei. — Genji monogatari... É com grande vergonha que eu admito que nunca li esse livro.

Dessa vez foi Pen quem arregalou os olhos. Ele pegou sua caderneta e escreveu:

“O mister Takami me disse que essa é talvez a mais importante obra de literatura japonesa de todos os tempos!”

— Eu sei, eu sei, eu sou uma vergonha para os meus ancestrais... — Comentei, sentindo meu rosto enrubescer.

Ouvi a risada audível de Pen e sorri. Eu não conseguia descrever a risada dele com nenhuma outra palavra diferente de “atraente”. Me distraí por alguns segundos, pensando naquele adorável som. Preso na lapela do paletó de Pen, eu observei o cachorro marrom pela primeira vez. Era curioso que eu não tivesse reparado no detalhe de que ele também era um Dog até aquele momento.

— Você está lendo?

Pen assentiu com a cabeça. Ele gesticulou algumas coisas e escreveu outras, e eu consegui completar as frases na minha cabeça:

“Eu pensei que talvez nós pudéssemos começar aquele clube de literatura asiática. Eu tenho certeza que o Lysander topa participar, então nós já teríamos três pessoas, pelo menos.”

Abri um sorriso genuíno, concordando com a cabeça. Mas então eu refleti. Lysander, aparentemente o único amigo de Pen. Ele não parecia gostar de mim. Nós nos esbarrávamos com frequência pelos corredores, quando eu cumprimentava Pen, e eu o cumprimentava educadamente, mas na metade das vezes ele não me respondia; e na outra metade, apenas acenava com a cabeça. Eu desconfiava que Lysander devia ter ciúmes do amigo, por algum motivo.

Tentei ser otimista:

— O Lysander deve entender de literatura taiwanesa e chinesa, certo? Eu conheço muito pouco, então vai ser muito bacana!

Pen assentiu positivamente, parecendo bastante animado também.

“Nós podemos começar essa semana, o que você acha? No sábado, depois do seu treino. Com o Genji monogatari, se você não se importar. É a sua chance de lê-lo pela primeira vez!”, o garoto disse, entre gestos e palavras escritas.

— Perfeito! Eu vou conversar com o mister Takami pra ele nos liberar uma das salas e eu te aviso assim que souber. Tudo bem?

Pen concordou e se afastou, acenando. Eu terminei de recolher minhas coisas e saí da sala. Parei na porta por um segundo, observando o garoto. Havia algo de leve e precioso em Pen, algo que eu não sabia explicar, mas que me agradava tremendamente. Observei seu pescoço com as cicatrizes rosadas e senti uma vontade incontrolável de protegê-lo. Eu não sabia dizer proteger de quem ou do quê, apenas...

Não, para com isso.

Enquanto caminhava pelos corredores, meus pensamentos foram levados ao Binky. Naquele momento ele já devia ter se estabelecido na escola nos Alpes, onde ficaria por uns meses, depois da briga com o Barrett. Me frustrava o fato de nós não termos conseguido conversar depois daquela desastrosa noite de Halloween, mas não havia o que fazer. Talvez nós pudéssemos sentar e falar sobre o que tinha acontecido quando ele voltasse, mas eu duvidava que Binky fosse ter interesse. Naquele assunto e em mim.

Eu não especulava sobre o motivo da briga dele com o melhor amigo. Aquilo não era da minha conta.

Notei o garoto olhando fixamente na minha direção no fim do corredor antes mesmo de me aproximar. Lysander caminhava a passos rápidos, com algumas pastas debaixo do braço. Quando nossos caminhos se cruzaram, o garoto taiwanês parou exatamente na minha frente, bloqueando a minha passagem. Lysander tinha um cheiro... Curioso. Eu não conseguia identificar exatamente o que era, mas me lembrava o shampoo de criança que os meus otouto-chan usavam.

— Ito. — Ele falou com solenidade. — Nós podemos trocar umas palavrinhas?

Assenti com a cabeça, um pouco confuso e desconfortável. Lysander passou por mim e me chamou com a mão, seguindo em direção a uma sala no outro extremo. Nós éramos os únicos naquele ambiente no momento, e nossos passos ecoavam no corredor vazio.

Quando paramos diante da porta, eu li a inscrição: “Sala de edição”. Lysander destrancou a sala com suas chaves e a abriu, pedindo que eu entrasse. Assim o fiz, e o garoto entrou em seguida, trancando a porta atrás de si.

A sala era bastante cheirosa e limpa. Embora se tratasse de uma sala de trabalho com diversos papeis por todos os cantos, tudo ali estava absurdamente bem organizado. As paredes eram escuras, e as mesas, cadeiras e estantes tinham o mesmo estilo vitoriano do restante da academia. Havia até mesmo duas máquinas de escrever pretas e brilhantes em um canto, e as folhas de papel nelas pareciam indicar que ambas eram funcionais.

Lysander indicou uma cadeira para mim e se sentou em uma na minha frente. Relutei por alguns segundos, mas então me sentei.

— Eu vou ser direto com você, Ito. — O garoto começou a falar. Ele tinha a voz um pouco fina, como a de uma criança que ainda não tinha passado pela puberdade. — Quais são as suas intenções com o Pen?

Franzi o cenho. Embora aquela pergunta não me surpreendesse, eu não sabia exatamente como respondê-la.

— Como assim?

Lysander bufou, parecendo um pouco irritado com a minha pergunta.

— Todas as vezes que eu encontro com o Pen no final das aulas, ele está conversando com você. E o Pen nunca conversou com ninguém. Então eu quero saber o que você está planejando. É o desgraçado do Knox que te enviou, certo? Eu sei que vocês são amigos de time e...

— Eu não sou amigo do Knox. — Eu respondi de maneira firme. — De nenhum dos caras do time, aliás. E com todo o respeito, Yang, eu não lhe devo nenhuma satisfação.

Eu acho que o garoto taiwanês não esperava por aquela resposta, porque ele ficou alguns segundos em silêncio com uma expressão de surpresa no rosto. Quando ele falou, sua voz parecia muito menos resoluta:

— Eu estou de olho em você, Ito. Eu não vou deixar que você e esses outros jocks imbecis machuquem o Pen. Eu sou capaz de aguentar as pancadas, mas eu não vou permitir que vocês atinjam ele.

Estava claro para mim que a situação ali ia muito além do que eu era capaz de compreender. Por algum motivo o Lysander não se dava bem com os rapazes do time. Na verdade, eu conseguia deduzir o motivo com certa precisão. Eu sabia sobre Matthew. Eu sabia da reputação de Knox. E o garoto taiwanês parecia uma figura bastante combativa, o que eu imaginava que fosse um prato cheio para ser incomodado por bullies.

Fiquei alguns segundos em silêncio. Eu conseguia entender o desejo de Lysander de proteger Pen.

— Eu entendo o seu desejo de proteger o Pen. — Falei verbatim o que passava pela minha cabeça. — Eu ainda mantenho que eu não lhe devo nenhuma satisfação, mas eu também lhe asseguro que eu não tenho intenção de provocar ou maltratar o Pen. Eu genuinamente gosto da companhia dele, assim como você.

Lysander me encarou por alguns segundos, em silêncio. Eu desviei meu olhar do dele e escaneei a sala por alguns segundos. Como um presente do acaso, notei uma parte de um dos papeis que o garoto carregava anteriormente, agora em cima da mesma. Eu conseguia perceber que era o pedaço de um triângulo branco, mesmo na folha alva.

— Obrigado pelo seu tempo, Ito. — Foi tudo o que Lysander disse depois de um tempo.

O garoto se levantou e destrancou a porta, segurando-a aberta para mim. Eu assenti com a cabeça e me levantei. Antes de sair, porém, eu estiquei o braço e discretamente peguei o papel com o desenho do símbolo da Foundation. Enquanto Lysander estava distraído olhando para fora, eu guardei a folha dentro do meu caderno.

Passei pelo garoto taiwanês e saí no corredor. A porta atrás de mim se fechou um segundo depois.

xxx

Pujit pulava na cama, empolgado. Aquele era um dos raros momentos em que Atticus não estava no quarto.

— Vamos! Ler! Isso! — Meu amigo falou de maneira entrecortada, continuando a pular.

— Eu estou um pouco receoso, confesso. — Falei, encarando o papel dobrado diante de mim. — E se isso for algo com o qual nós não devíamos estar mexendo?

— Ah, qual é, River. Você realmente acha que o Yang estaria envolvido se a Foundation fosse um negócio sério assim? O mister Graves, claro. O Headmaster? Óbvio. Mas Lysander Yang? Pff.

Fazia sentido. Meu amigo se aproximou de mim e colocou seu queixo em cima do meu ombro, encarando o papel nas minhas mãos. Eu neguei com a cabeça, rindo, e então o abri.

Por alguns segundos foi difícil compreender as anotações de Lysander. Com exceção do símbolo desenhado, toda a escrita estava em mandarim, e embora eu fosse capaz de identificar os kanji, eu não era capaz de compreender o significado de todos eles nas frases. Havia setas vermelhas apontando para palavras e as ligando a outras, e eu não conseguia distinguir onde frases começavam e terminavam.

Pedi que Pujit esperasse e então peguei uma folha de caderno, tentando decifrar aquele amontoado de símbolos. Felizmente, o mandarim de Lysander não parecia ser muito complexo, o que me permitia distinguir um bocado de coisas somente com o meu japonês. Depois de trabalhar nas frases por alguns minutos, eu achei que conseguia compreender o significado geral do que estava escrito ali. Havia um bocado de suposições na minha tradução, mas eu achava que devia estar pelo menos uns 60% correto.

Encarei o texto finalizado e olhei para meu amigo, deitado na cama com uma expressão de impaciência no rosto. Ele se levantou assim que eu olhei para ele, tomando o papel da minha mão e lendo. O que Pujit havia dito sobre Lysander estava correto. Ele não estava por dentro do que a Foundation representava, mas estava atrás de respostas assim como nós.

De maneira resumida, a Foundation parece encobrir acontecimentos sem explicação que cerquem a St. Dominic. O desaparecimento das garotas do dormitório abandonado, por exemplo, parece ter sido completamente limpo por eles. E esse incidente não foi o único. Eu consegui encontrar evidências de eventos datando desde a fundação da academia. Até mesmo o suicídio de Matthew foi especulado, antes que concluíssem que não havia nada de inexplicável nele.

Por algum motivo, essa organização não gosta que coisas não facilmente explicadas pela lógica comum sejam conhecidas pelas pessoas. Eu não consigo compreender, porém, o porquê. Minha teoria é a de que eles não estão diretamente envolvidos nos eventos, mas aparecem após o seu desfecho.

P.S. Entrevistar The King?

— Ok, isso faz bastante sentido. — Meu amigo falou depois de alguns segundos de silêncio, me entregando a folha de caderno. — Aliás, arrasou no hacking, River-boy! Eu nem sabia que japonês e mandarim tinham tanto em comum.

Dei com os ombros.

— Você acha mesmo que faz sentido?

— É claro, River, se liga! — Meu amigo respondeu, me dando um tapa na nuca. — Inclusive estar tudo escrito em chinês. Ele não queria que ninguém encontrasse o papel acidentalmente e entendesse as investigações que vem fazendo. O Yang só não contava que mais alguém na academia compreendesse o idioma...

Me senti um pouco orgulhoso com aquela frase do meu amigo. Ele continuou:

— E essa teoria dele sobre a Foundation faz bastante sentido. Eles sempre me pareceram uma força lawful neutral, mais do que qualquer coisa.

Meneei a cabeça negativamente, contendo um sorriso. Pujit falou:

— Talvez a gente devesse unir forças com o Yang. Se a gente chantagear ele e disser que sabe que ele descobriu algumas coisas, nós...

— Nós não vamos chantagear ninguém, Pujit. E eu acho que o Lysander não trabalharia comigo mesmo se nós fizéssemos isso.

— Como assim?

— Digamos que ele não é o meu maior fã.

— Huh. — Pujit resmungou, surpreso. — Bom, se você diz. Mas esse papel aí é de longe a nossa maior descoberta sobre todas essas coisas que têm nos intrigado.

Pujit tinha razão. Ideias circulavam a minha cabeça desde a noite em que jogamos The Eerie Dungeons com Atticus e ele nos contou sobre sua família. Embora eu ainda não fosse capaz de compreender o que exatamente acontecia por ali, as investigações de Lysander tinham me dado um norte, algo para especularmos e talvez procurarmos mais a fundo. Isso se realmente quiséssemos. No fim das contas, não havia nada além de nossa curiosidade nos pressionando para aquelas descobertas.

Eu tentava repetir a mim mesmo, uma dezena de vezes, que nada daquilo era da minha conta, mas mais e mais aquelas palavras perdiam o significado. Talvez fosse da minha conta. Talvez eu quisesse que fosse da minha conta. Se a noite do Halloween tinha sido algum indicativo, eu agora fazia irreversivelmente parte daquela escola e de seus segredos.

xxx

Eu ouvi o som do piano no momento em que dobrei o corredor. Meus cabelos ainda estavam molhados por conta do banho apressado que eu havia tomado depois do treino, mas o importante era que eu não chegaria atrasado.

Parei diante da porta aberta da sala, observando Pen tocando com graciosidade. Ele tinha os olhos fechados, e seus dedos passeavam pelas teclas com naturalidade. Eu também era capaz de tocar Moonlight Sonata de olhos fechados, então ouvir aquele som, tão distante de casa, fez com que eu subitamente me sentisse nos braços de minha mãe. Eu conseguia sentir seu abraço quente, enquanto ela tocava com a mesma pureza do garoto diante de mim. A música sempre havia sido minha conexão maior com minha okaasan, e doía em meu peito perceber que nem mesmo Beethoven tinha sido capaz de salvar nossa relação quando ela descobriu sobre Hikaru.

Meu coração batia forte no peito, mas eu continuei parado, sem fazer um único som, até que Pen terminasse a música. Quando ele abriu os olhos, eu bati na porta, fingindo que tinha acabado de chegar.

A sala de piano era uma das mais bonitas de toda a St. Dominic. Ela tinha dois andares, com grandes janelas em ambos e uma escadaria escura que levava até o segundo. O principal piano estava colocado no centro da sala, em cima de um suntuoso tapete vermelho. Havia também outros dois, menores, nos cantos da sala.

Do lado de fora chovia fracamente, mas o sol do fim da tarde ainda existia no céu, sua luz entrando através das cortinas abertas.

Pen falou, utilizando somente gestos de mão:

“Eu te percebi quando você chegou, River”. E riu.

Meu rosto ficou imediatamente vermelho, e eu abaixei a cabeça. Quando a ergui, o garoto me chamava com a mão, pedindo que eu me sentasse ao seu lado. Eu assim o fiz. Pen então trocou a partitura em cima do piano, deixando em destaque Fantasia in F minor, de Schubert. Eu havia tocado aquela música uma única vez, com minha mãe. Aquela era uma música para ser tocada por duas pessoas em um mesmo piano.

Pen me encarou com expectativa. Eu assenti com a cabeça.

As notas invadiam a sala e o meu coração. Enquanto os movimentos de Pen eram leves e precisos, os meus eram pesados e erráticos. Mesmo assim, eu me esforçava para conseguir acompanhá-lo. Daquela distância, tão perto do garoto, eu não conseguia evitar reparar em suas cicatrizes. O calor da perna dele próxima da minha era agradável, e mais do que nunca os seus cabelos me lembravam as areias finas de uma praia...

Nossas mãos se tocaram acidentalmente quando eu errei uma nota. Pen riu de maneira audível e continuou tocando. Eu chacoalhei a cabeça e também continuei. Quando terminamos, o garoto começou a aplaudir.

“Bom trabalho”, ele gesticulou. Eu sorri.

Não me movi do banco. Abaixei a cabeça e fiquei em silêncio. Pen também não disse qualquer coisa por vários e vários minutos, e então ele começou a escrever algo em sua caderneta. Quando tinha terminado, Pen tocou meu ombro e eu o encarei. O garoto estendeu o objeto na minha direção e eu li:

Foi um acidente de carro, quando eu tinha dez anos de idade. Eu perdi os meus pais nesse mesmo dia. As minhas cordas vocais foram esmagadas e danificadas irreversivelmente, por isso eu não sou mais capaz de utilizar minha voz. E é por isso também que eu tenho as cicatrizes.

Ele tinha percebido que eu prestava atenção em suas cicatrizes. Meu coração doía. Minha maior vontade naquele momento era a de abraçar Pen, cobrindo-o com meu corpo de forma que o mundo não pudesse machucá-lo nunca mais. Tentei dizer alguma coisa por três vezes, mas as palavras não saíram. Não havia nada que eu dissesse que pudesse ser suficiente. Eu não conseguia imaginar a dor que ele deveria carregar.

Estiquei o braço e toquei a mão de Pen no banco ao meu lado. Ele não se moveu. Os dedos dele eram pálidos, macios e quentes. Quando virei o meu rosto em sua direção, Pen me encarava com seus olhos azuis da cor do mar. Meu coração batia forte no peito.

Batidas na porta. Dei um pulinho no banco, sobressaltado. Eu ouvi a risada do garoto antes mesmo de vê-lo.

— Eu ia pedir desculpas pelo atraso, mas eu acho que vocês arranjaram o que fazer nesse meio tempo. Bonita melodia!

Me levantei rapidamente e corri até a porta, cumprimentando Woodstock com um aperto de mão. O garoto sorriu e entrou, cumprimentando Pen da mesma forma.

Eu imaginava que ele estivesse ali por ainda se sentir culpado pelo incidente no Halloween. Eu queria repetir a ele que eu não estava chateado, mas ao mesmo tempo não queria constrangê-lo no (remoto) caso de ele estar genuinamente interessado no nosso clube. Eu não tinha conversado com Woodstock nenhuma outra vez desde aquela noite na capela, mas nós nos cumprimentávamos quando nos víamos pelos corredores ou no refeitório.

Para a minha surpresa, Woodstock gesticulou alguma coisa para Pen na língua de sinais. O outro garoto pareceu tão surpreso quanto eu, mas respondeu animadamente na mesma língua. Apesar de Woodstock utilizar aparelhos auditivos, eu não tinha cogitado a possibilidade de que ele também poderia saber ASL. Aquilo me deixou feliz. Mesmo que aquela reunião e aquele clube falhassem, a conexão que se estabelecia entre eles naquele momento era uma que provavelmente não teria acontecido de outra forma.

— Nós estamos esperando mais alguém? — Woodstock perguntou em voz alta, depois de um tempo.

— O Samuel, mas eu não sei se ele vem. — Comentei.

Eu sabia que o Samuel trabalhava o dia todo nos sábados, antes e depois do treino, mas aquela era uma informação que ele tinha me confidenciado e que eu não contaria a nenhuma outra pessoa, nem mesmo ao Pujit.

Embora Pen tivesse o chamado, Lysander não viria, eu tinha certeza.

— Eu não sou o Samuel, mas se vocês me receberem...

Me virei para trás com aquela fala, dessa vez genuinamente surpreso. Quem estava ali era o mister Takami. Nosso professor estava vestido de maneira menos formal do que de costume, com uma camisa e sobretudo pretos, uma calça cinza e um par de coturnos marrons nos pés.

— Professor.

mister Takami sorriu e entrou na sala. Woodstock e Pen acenaram com a cabeça.

— Eu estava a toa nesse fim de tarde tão bonito, então achei que poderia vir participar pelo menos dessa primeira reunião. — O professor falou, e eu concordei com a cabeça. — Genji monogatari então, huh? Uma leitura meio pesada para um primeiro livro, na minha opinião. Você não quer espantar os seus colegas, certo River?

Assenti com a cabeça, mas então o Pen gesticulou algo ao mister Takami. Eu consegui compreender algumas palavras, deduzindo que o garoto estava contando que a escolha do livro tinha sido dele.

— Oh. — O professor exclamou. — Bom, de qualquer forma, eu mantenho a minha opinião. Por outro lado, aqueles que continuarem terão tido contato com, talvez, o maior escrito de toda a história da nossa civilização. Ocidente incluso.

— Wow. — Woodstock exclamou, parecendo surpreso. Aquilo me fez sorrir.

Chequei o relógio de pêndulo da sala e deduzi que Samuel não chegaria mais, então decidi tomar as redes da reunião. O mister Takami não interveio, agindo como se fosse somente mais um membro daquele clube. Pela hora seguinte, nós lemos trechos do livro, conversamos sobre aspectos da cultura japonesa e até mesmo sobre algumas coisas do meu cotidiano no Japão. Na única vez em que abandonou o seu papel de membro e assumiu a postura de professor, o mister Takami disse que aquelas conversas eram tão importantes quanto o próprio conteúdo dos livros, porque era a partir delas que nós tínhamos contato com experiências diferentes das nossas próprias.

Quando encerramos a reunião, eu estava me sentindo bastante satisfeito. Woodstock foi o primeiro a sair, acenando com a mão e desaparecendo pelo corredor. Ele tinha ficado um pouco perdido no começo, mas eu acreditava que voltaria para a nossa segunda reunião. Pen saiu em seguida, e meus olhos o acompanharam até que ele tivesse abandonado completamente meu campo de visão.

Apenas o mister Takami e eu ficamos. Eu terminava de arrumar as coisas no lugar, enquanto o professor conferia distraidamente os livros na estante da sala.

Decidi arriscar uma coisa. Suspirei baixinho e perguntei:

— 日本語を分かりますか?

O professor me olhou com uma expressão engraçada no rosto.

— Sim, eu entendo japonês, Ito—kun. Mas eu não posso dizer que falo com fluência. Meus pais nunca falaram muito japonês em casa, então tudo o que eu sei foi o que aprendi com a minha obaasan antes dela falecer.

Concordei com a cabeça. O professor tinha um sotaque britânico assim como eu, então eu deduzi que ele tivesse sido criado no Reino Unido, assim como a minha mãe. Naquele momento eu não consegui evitar me ver espelhado nele. Eu, River Akira Ito, vinte anos no futuro. Eu desconfiava que o professor Takami tivesse ainda mais em comum comigo, mas aquele era um assunto sobre o qual eu jamais ousaria questioná-lo. Mesmo assim, eu ponderava. Seria reconfortante saber que ele amava assim como eu.

— Eu fico feliz que você e o Spencer estejam se tornando amigos. Eu sempre soube que vocês tinham muito em comum. Se você tivesse ouvido o meu conselho lá na primeira aula, sobre ir atrás dele para copiar as matérias atrasadas...

Sorri com aquela fala do professor, e o mister Takami sorriu também. O professor então caminhou em direção a saída e falou:

— Lembre-se de se divertir, River.

Antes que eu fosse capaz de compreender o significado daquelas palavras, o professor já tinha sumido. Dei com os ombros e terminei minha tarefa ali, fechando a sala em seguida. Enquanto caminhava pelos corredores da St. Dominic em direção a sala do mister Graves para lhe entregar as chaves, novamente um bocado de coisas complicadas passava pela minha cabeça. A principal delas, porém, era bastante simples.

Desde o meu primeiro encontro com Hikaru, na estação de trem, naquela fria noite de inverno, a minha vida tinha virado de cabeça para baixo. Eu tinha descoberto algo novo sobre mim, e cada dia depois daquele tinha trazido um desafio e um aprendizado. Meu primeiro amor, minha primeira perda, minha primeira rejeição e decepção. E então um mundo completamente novo, na América, onde eu tinha nascido, mas onde eu achava que jamais fosse ser capaz de chamar de casa.

As coisas só haviam se intensificado desde que eu havia colocado os pés na St. Dominic. Os segredos se amontoavam, as complicadas relações que se formavam e se desenvolviam ao meu redor... Pujit, Binky, mister Takami, Samuel, Woodstock, Pen, Lysander, Matthew... Aquele era o meu mundo agora. E a partir dele eu continuava a aprender.

Continuava a aprender o que significava ser um pupilo. Continuava a aprender o que significava ser um cavalheiro. Continuava a aprender, acima de tudo, o que significava ser um homem.

 

 


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Notas finais do capítulo

Esse é o último capítulo da história! Minha ideia é postar uma continuação muito em breve, porém! :D



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