Olhe outra vez escrita por psyluna


Capítulo 6
Dúvida




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Se preguiça for um pecado, queimar um pouco depois de morto até vale o que pesa. Pela primeira vez em dias, vira o corpo sob o lençol sem preocupações com a cabeça. Nem sinal da aurora; o escuro quase completo do quarto e a ventania lá fora silenciam sua mente. Dormiria outra vez se não sentisse tanta fome. Doze horas sem comer, nessa época, é tempo demais até para mim. A sonolência agradável quase o convence a ficar.

Não contava com o armário tão perto. Evita outro acidente aparando o corpo com o braço direito. Calma, destino. Só uma semana de folga, tudo bem? Tateia em busca do interruptor e nota estar só no quarto. Sua intuição nada diz de errado, mas confere a casa depois de buscar os biscoitos de arroz. Sótão, aqui vou eu. Sobe os degraus com toda a paciência, segurando o corrimão com firmeza.

Reimu se senta no topo de uma caixa alta demais, com a lanterna de mão acesa sobre o colo. Está entretida com um brinquedo de madeira e não deu sinais de tê-lo visto. Ela já passou da idade para essas coisas.

—Perdeu o sono também?

A bola pesada do brinquedo acerta o rosto dela.

—Que susto. Você anda sempre em silêncio assim?

—Nunca notei. - Foi meio de propósito dessa vez. Disfarça uma careta irônica. - Se puder descer de um lugar tão instável, meu lampião ficaria grato pela segurança.

—Disse o dono que se acidenta até parado.

—Eu não diria que ele está mais seguro sob seus cuidados depois de ver você bater em si mesma.

Ela desconsidera estar errada, desce da caixa e pede ajuda para colocá-la na horizontal. Não me lembro do que há aqui. Por favor, não seja quebrável. O impacto no chão cria uma súbita nuvem de poeira.

—Sente-se, fique à vontade. Como se a casa fosse sua. - Reimu ri; volta a jogar e não custa a conseguir encaixar a esfera de madeira nos copos laterais ou no espinho central.

Um biscoito atrás do outro alimentam Rinnosuke até a alma. Não pareciam tão bons quando eu não estava faminto. Sente um arrepio por baixo do pijama, por mais longo que seja. O aquecedor não supre o sótão como faz com o resto da casa e da loja. É uma boa noite para não largar a chaleira. Recapitula os planos para o dia seguinte, despreocupado até uma dúvida crucial.

—Reimu, o que vamos fazer quanto ao feitiço de rastreamento?

Ela para de manusear o brinquedo e o fita como se não o compreendesse.

—Depende. Como isso funciona?

—De forma semelhante a uma bússola. - Gesticula com uma mão só enquanto descreve. - Você referencia algo que está procurando com um material e os aparelhos do feitiço vão indicar em que direção está a coisa mais semelhante a aquilo. Existem diferentes métodos de se rastrear, também. O mais adequado para um caso como esses, onde o objeto não está consciente de ser procurado, é a confecção de um mapa. O que me preocupa é se a direção mudar enquanto você estiver a caminho de encontrar Tenshi, ou qualquer falha do gênero.

—Se eu entendi bem, isso tudo vai acontecer aqui.

—Na minha loja, sim. O prazo máximo é amanhã, se levarmos em conta que já passou da meia-noite. Entende minha preocupação?

Reimu enrola a corda do bilboquê nos dedos, evitando olhar Rinnosuke nos olhos. Deixa a peça de lado, assim como a lanterna, e usa os braços de apoio para endireitar as costas.

—Eu vou ter que acompanhar o processo.

—É recomendado, quase obrigatório. E há outro problema. Marisa pensa que pedi isso a ela por interesse meu. Ela não faz ideia do seu envolvimento.

—Isso pode piorar? Quero dizer… Quais as chances de dar tudo mais errado ainda?

Controla o impulso de se esclarecer e jurar que não fez por mal. E o que isso resolveria? A situação seria ruim para ela de qualquer forma. Força o cérebro a funcionar.

—Podemos tentar outras opções. Falamos disso mais cedo.

—Não temos tempo. O ano acaba em menos de uma semana. - A voz dela enrouquece. - Patchouli talvez resolvesse, mas duvido que ela queira algo daqui como pagamento. E ir até a montanha falar com Aya pode ser inútil. Posso morrer numa avalanche, ou sei lá.

Rinnosuke tamborila os dedos sobre a própria perna. Força, você consegue.

—Acho que mais atrapalhei você do que ajudei. Peço desculpas.

—Não diga isso. - Ela volta o olhar para a janela, depois para ele e rouba o meio biscoito, o último do pacote. - Com licença.

—Se queria um, bastava pedir.

Reimu mastiga com a face de quem conquistou um troféu.

—Comida só tem graça se for compartilhada. Você devia oferecer, às vezes.

Não sei dizer se isso é um sinal de humor melhorando ou se me perdi num labirinto sem saída de intimidade. Sem mais farelos na boca, ela conclui:

—Estou a fim de pensar em outra coisa agora, se eu puder. Essa história toda está me deixando louca.

—Alguma sugestão?

—Você pode me contar alguma coisa que eu não saiba. Por exemplo… Algo inusitado.

Não é um assunto sensato de se espalhar, este que tenho em mente. Mas é inusitado, isso é fato.

—Precisa ser emocionante?

—Não, qualquer coisa fora do comum, serve.

—Você conhece a história de como quase tive o rosto derretido? - Ela balança a cabeça em negação; Rinnosuke continua. - Esta lanterna ao seu lado tem a ver. Quando eu ainda estava lidando com os protótipos, houve um trecho das propriedades que escrevi ao contrário e ela absorvia a luz do ambiente até determinado raio, ao invés de gerar claridade. Usei isso para pregar uma peça antes de conseguir uma solução… E minha vítima, por impulso, disparou uma bola de chamas perfeita de acordo com o livro que lia. Calcule as possibilidades.

—Isso tem cara de Marisa.

—Ela tinha cinco ou seis anos. Ficou um mês me olhando torto e me ignorando.

De braços cruzados e com o olhar perdido, Reimu apenas ri e se cala.

—Eu… Não devia ter falado sobre isso. Má ideia.

—Relaxa. Eu te disse, não? Não consigo odiá-la. - Sofre para completar o raciocínio, o que Rinnosuke aguarda com paciência. - Ela faz falta.

Difícil dizer se eu gostaria de saber como é, ou se prefiro nem imaginar. Deixa de lado o pacote vazio de biscoitos. Prepara-se para ouvir mais confissões imprevisíveis.

—Você sente saudade de alguma coisa, Rinnosuke?

De todas as coisas que eu esperava, essa não estava na lista.

—O que saiu minha vida para que eu sinta falta? Ou melhor, quem? - Ele abre a mão vazia, dando a resposta. - Você deve se lembrar de quando me conheceu. Ou não, já que faz tempo demais.

—Não sei o que isso tem a ver.

—Não mudei nada. Você sabe disso. Nenhuma ruga. Nenhum fio de cabelo a menos. Minha saúde é a mesma, e nem preciso de muito para me manter assim.

Está escuro demais para ver, mas o som ainda denuncia a nevasca lá fora. Reimu o observa com curiosidade; notou pelo canto dos olhos. Gostaria de saber de onde ela tirou esse tipo de pergunta.

—Mas não sou muito forte, ou muito livre, ou muito devoto. Há seres assim por aí, que causam problemas ou são jogados no meio deles, e esses seres têm poder para sair desses problemas. Os meus incidentes são bem comuns, em comparação. - Soava mais inteligente quando eu não tinha que expressar isso. — Suponha que um humano qualquer me prejudique. Basta me recolher e esperar que as décadas façam seu serviço. Não terei mais a quem odiar. Se o contrário acontecer e eu me arrepender, estarei aqui para recordar meu erro.

—Não deve ser muito agradável chegar a esse tipo de conclusão.

Ele ri, sentindo-se estranhamente leve.

—Não, não é bom.

Só o vento soa por um instante. Rinnosuke se espreguiça e coça o olho, considerando voltar para seu monte de cobertores. Que horas devem ser agora? Estende a mão para a lanterna acesa.

—É, acho que te devo mais um segredo agora.

—Perdão? - Deixa o objeto no lugar.

—Você me contou algo, eu conto outra coisa em troca. - Ela o trata como se tivesse dito um absurdo. - Achei que fosse óbvio.

—Como assim? Digo, não me lembro de termos um acordo do tipo. - Pensando bem, é algo que eu queria esclarecer há um tempo. - Quando isso começou?

—Você não se recorda… - Reimu arregala os olhos. - É mesmo. O acidente. Você bateu a cabeça.

Desiste de formular uma frase e a deixa continuar. Quanto mais eu tento, mais confuso fico. Nem sei quantas horas passei desacordado depois.

—Naquele dia, você me perguntou sobre um bloco de papel. Eu o peguei emprestado. Mas… Não te disse o motivo. Você me propôs contar algo, então eu teria um segredo seu por segurança.

Eu estava curioso, disso eu sei. Não me responsabilizo pelo resto.

—Continuo sem saber. Agradeço o esforço em explicar, de qualquer forma.

—Não faz mal. Enfim.

Como se meditasse, ela passa um instante de olhos fechados; a expressão não tão calma passa para uma mais neutra. Reimu dá um suspiro conformado.

—Sou muito hipócrita.

Se você está tentando me desorientar, conseguiu.

—Esse é seu segredo…?

—Sim, é. - Ela se endireita e cruza as pernas. Demora até se pronunciar de novo, olhando-o nos olhos pela primeira vez em um bom tempo. - Marisa me faz sofrer, mas não sou tão diferente dela.

O que quer dizer com isso? Tem que guardar o pensamento; Reimu não o deixou falar. Ela o puxou pela gola da blusa rápido demais, deixando os dois a uma distância curta demais. Não a empurra, nem rejeita, nem retribui. Fechar os olhos é a única coisa que consegue fazer. Aos poucos, sua mão direita se descontrai e encontra apoio no ombro dela.

Eles se afastam, só o bastante para respirar, e ela pergunta:

—Algo de errado?

Não faço a menor ideia. Qualquer resposta soa péssima.

—Não. Nada.

—Você não parece muito bem.

—Eu estou… - Confuso. Demais. — Surpreso.

Por favor, alguém me explique o que está acontecendo, e que eu não pareça tão idiota quanto me sinto. Reimu tem a expressão intrigada, mas não diz mais. Ele arrisca:

—Se me permite, há quanto tempo estava planejando isso?

—Um minuto, talvez.

—Não foi o que eu-

Ela o silencia com o indicador em seus lábios.

—Você questiona demais.

Não é para menos. Quando ela começou a vê-lo dessa forma? Que atitudes dele fizeram-na chegar a esse ponto? Isso muda algo amanhã, ou depois, ou ainda depois disso? Ele foi incompetente em não notar indícios, ou ela foi habilidosa em escondê-los? Reimu desliza devagar a ponta dos dedos por seu queixo e maxilar, logo com a palma da mão na lateral de seu rosto; um arrepio leve o percorre. Antes que Rinnosuke se expresse, ela repete o que fez. Nada mau.

—Lembre-se de não espalhar. - Reimu dá um sorriso astuto e desce da caixa. - Boa noite.

Não responde; não é capaz. Ela desce as escadas cantarolando. O sótão volta a seu silêncio empoeirado habitual. Sem motivo, pega a lanterna e a segura como faria com um copo quente. Quando pisca, é como se Reimu ainda estivesse lá, tão perto, a pele recordando a sensação. Leva a mão aos lábios secos e os toca por um momento. Olha para a janela. Estranho como as horas da noite parecem todas iguais. Descarta a ideia de apagar a luz até chegar à porta do quarto. Dormir nele ou não é a decisão difícil. Só queria pensar direito, é pedir muito? Gira a maçaneta de forma que não faça ruído. Ela entenderia mal se eu amanhecesse na sala de repente.

Os cobertores não parecem mais tão aconchegantes quanto antes. Vira de um lado para outro incontáveis vezes, cansado e incapaz de dormir. Estende a mão para acordar Reimu, que dorme o trigésimo estágio do sono, e desiste largando o braço no chão. Ela não vai me explicar nada. Puxa o edredom até cobrir meio rosto. Eu precisava muito de álcool agora.

 

~

 

Uma olhada sonolenta para o despertador o situam às oito da manhã de um dia sem sol. Se não hoje, amanhã vai ser um longo dia. O corpo dói de uma forma irritante e a vontade de beber não passou. Pudera. Estou congelando. Nem o aquecedor dá conta de mantê-lo confortável; escolhe uma blusa mais quente e a leva na saída. Espia sobre o ombro. Reimu se ajeita durante o sono, agarrada ao travesseiro.

Com a água do chá já quente, separa um tanto para a sopa. Por sorte, as embalagens do mundo exterior têm instruções, o que eliminam as chances de erro. Guarda-as para ocasiões especiais, raras como são suas aparições deste lado da barreira. Espanta qualquer pensamento intruso como faria a um inseto. Também esbanja tirando do armário o tão precioso saquê caro, quente como o tempo manda. Munido de cuidado, faz duas viagens até o quarto com todas as porcelanas.

Agora, eu espero a mágica acontecer. Ela ainda dorme; talvez não por muito tempo com o cheiro da comida. De intrusa, para amiga, para companhia, para… Não sei mais. Que progresso. A noite anterior era uma incógnita. Como ela o trataria a partir dali? Força a memória a recordar as revistas do mundo exterior, com enfadonhas reportagens sobre relacionamentos amorosos. “Cinco sinais de que seu casamento precisa de ajuda”, “Dicas de presentes para o aniversário de namoro”, “Os mais fantásticos lugares para uma lua de mel inesquecível”; tudo raso, fútil e inadequado. Tudo sobre relações estabelecidas e consensuais. Não que eu a tenha impedido… Ou que tenha sido ruim. Não vê por que se repreender. Definitivamente não estava nos meus planos, e acho que nem nos dela. Quanto tempo fazia desde que uma pessoa se tornara tão próxima? Bom, depende do aspecto. Minha amizade mais franca de todos os tempos está num espelho. De resto, qualquer coisa meio semelhante a isto não envolveu complicações.

—Bom dia. - Reimu ergue o corpo devagar, esfrega os olhos e desamassa o rosto. - Isso aí é para mim?

—Sim, é. Coma antes de-

Tarde demais; ela vira o copo de bebida sem pensar duas vezes e aproveita para raptar as cobertas onde ele dormiu. Rinnosuke sabe que não adianta, mas tenta:

—Cedo demais para isso, não acha?

—Que frio, deve ter nevado até a porta. - Ah, a maravilha de ser ignorado.

—Ainda não fui conferir.

Promete a si mesmo não perguntar nada problemático até o fim do dia. “Você questiona demais.” A lembrança da frase faz seu estômago gelar.

—Tive um sonho estranho hoje. - Ela dá um gole na sopa e sua expressão muda para uma mais suave. - Um pássaro gigante passou pela minha casa e pousou para falar comigo.

—Sabe dizer que tipo de pássaro?

—Uma coruja. Aquelas marrons com penas espetadas na cabeça, sabe? Ela me disse para tomar cuidado com frutas. Acho que não significa nada. Tem mais sopa?

—Só a minha. - Olha para o fundo do pote pela metade. - Pode pegar.

Como pensou, ela aceita sem comentar o assunto. Não dá para argumentar contra… Ontem. Cada segundo em silêncio torna mais tentadora a ideia de tirar suas dúvidas e a perna cruzada balançando denuncia seu nervosismo. Certo, preciso de uma desculpa.

—Vou conferir como está o tempo, já volto.

Já fora do quarto, escuta Reimu pedir por mais saquê. Eu não deveria atender. A neve alcança o beiral da janela da cozinha, menos que na semana anterior. Na volta, entrega o copo com relutância e se acomoda com o próprio aquecendo as mãos.

—Exagerar não vai fazer mal?

—Onde guardou isso todo esse tempo? - Ela desdenha de sua opinião com a feição maravilhada. - É o melhor que já tomei aqui.

—Se eu dissesse, acabaria num piscar de olhos. - Rinnosuke a encara em tom de ameaça por trás da bebida. Um momento depois, nota o que realmente fez. Oh, droga. Eu a desafiei.

—Interessante…

—Vamos com calma. Eu preciso disso para me alimentar, sabia?

Reimu murmura alguma reclamação incompreensível, cortada por um bocejo. Ela não mudou nada em relação a mim. Então, também não preciso mudar. Acho. O sino da loja toca e é bem provável que signifique problema. Os dois se entreolham, ele encosta a porta e corre para atender. Mal fechada, a entrada cedeu ao peso da pilha de neve, que se espalha pelo chão. Eu comemoro a descoberta, lamento o trabalho ou me sinto um imbecil por não ter pensado nisso antes? Pede ajuda num tom alto o bastante para ser ouvido do quarto; Reimu espia por uma fresta da porta e vai atrás das ferramentas. A contragosto, ambos vestem mais camadas de roupa, calçam sapatos, desbloqueiam a porta e enxugam o chão.

—Parabéns pela atenção. - Reimu importuna sem ofender. - É bom não sentir frio.

—Você também não tinha notado.

—Mas não moro aqui, moro?

—Eu gostaria de voltar a mesa para a sala. - Discussões perdidas ignoradas? Dois podem jogar esse jogo.— Traga as almofadas, por favor.

A súbita volta à ordem da casa o deixa em paz. Digamos que tive dias agitados. Distrai-se com um livro de regras de um jogo com peças, mapas e opções demais. É possível que as situações criadas aqui não se restrinjam só ao imaginário. Se uma dessas figuras poderosas de Gensokyo tivesse controle sobre um mundo inteiro desses… É bom que Yukari não tenha remexido muito essa caixa. Reimu revira um conjunto de dados de um lado para outro da caixa, o mais chamativo deles com muito mais do que seis lados. Não sabe precisar se ela está entediada, triste, pensativa, todas as opções ou nenhuma delas.

—Já decidiu o que quer fazer? - Rinnosuke busca o tom de voz mais leve que consegue. - Sobre o rastreamento. Pode ser que aconteça hoje.

Ela respira fundo, hesita e evita seu olhar, mas responde:

—Pensei em algo que pode ajudar. Tem alguns trocados?

—Gostaria de saber o motivo do envolvimento do meu dinheiro nisso.

—Vou à vila comprar jornais. - Fica de pé e endireita a saia. - Não me olhe com essa cara. São só dois volumes e Kosuzu sempre me dá um desconto.

—Tudo bem, pode pegar. Agradeceria se trouxesse mantimentos na volta. Vou fazer uma lista.

Cebolas, nabo, conservas, batata-doce, raiz de lótus, cogumelos… E mais saquê. Coloca três notas num envelope com o lembrete. Estende-o para Reimu; ela recolhe o pacote tocando sua mão por mais tempo do que esperava e sai dizendo que não vai demorar, parecendo se arrepender do que fez. Timidez demais em comparação, não acha? Sorri de maneira cínica quando já está só. Pouco depois, balança a cabeça em busca de foco. Sentido. Faça sentido.

 

~

 

—Sabe dizer o que é destreza?

—Habilidade refinada, precisão. - Rinnosuke folheia a seção “Atributos e aplicações”. - É bom gastar pontos nisso em arqueiros e artesãos, mas acaba sendo necessário para qualquer profissão de combate físico. Que tipo de personagem você pretende desenvolver?

—Gostei dos paladinos. São a versão legal do meu trabalho.

—Se posso dar um conselho, tenha cautela em lidar com esse tipo de jogo. Sabe-se lá que consequência isso pode ter em outro mundo.

—Como se chama, mesmo? - Reimu olha a face ilustrada da caixa. - Ah, Sanae já me falou a respeito. Ela até tem algumas peças. Diz ela que é só imaginário.

—Parece ritualístico demais para ser inofensivo, na minha opinião. Existem aplicações mágicas que acontecem de forma bem semelhante em várias culturas. Sabe algo sobre a religião católica? - Ao que ela nega, continua a explicar. - Alguns devotos com muitos seguidores e influência local se tornam beatos. São como divindades que já viveram. Se a Igreja central reconhece algum de seus milagres, passam a ser santos. Fiéis têm estátuas deles em casa, fazem preces a elas, recontam sua história em datas comemorativas, fazem oferendas quando suas orações são ouvidas e podem castigar a figura se o santo as ignorar.

—Não consigo imaginar alguém punindo uma boneca da Kanako pela má colheita.

—Crenças são crenças em qualquer lugar do mundo. Alguém certamente poderia estranhar o próprio conceito de encargos como o seu, por exemplo.

—Deixando isso de lado, dê uma olhada nas notícias.

Reimu afasta o mapa de um país inexistente e estende os dois encadernados que trouxe. “Delinquente do gelo recebe uma lição por perturbar a ordem pública” figura na manchete do tabloide de Aya, acompanhado de uma gravura em tons de cinza; Letty tem o colarinho puxado por uma gripada sacerdotisa.

—Você chegou a notar o flash da câmera na semana passada?

—Sim, mas não dei atenção. Aya tem faro para polêmica e já tirou umas fotos que não dá para saber como. - Ao que ele tenta virar as páginas, ela gesticula para que desista. - Já li no caminho. Não tem nada importante

—Que seja o outro, então.

“Maior nevasca dos últimos vinte anos assola Gensokyo”. Nada novo, por enquanto. A primeira página indica ser um volume especial sobre o assunto. “População questiona a data do festival”, “Templo Moriya em reunião com os líderes na busca por uma solução”, “Estudantes em férias competem pela melhor escultura de neve”. “Templo Myouren desaparece”. Sério? A imagem do local exibe um terreno vazio, próximo à vila. O que será que foram fazer? Rinnosuke relembra as vezes em que Byakuren apareceu atrás de reparos para a motocicleta, que conseguiu sabe-se lá como. Serve mais bebida para ambos; ela deixa o lápis de lado.

—Terminei a ficha. Pode conferir?

—Claro. Sobre os jornais, nada útil, mas acho que o pessoal da montanha passou na sua frente em resolver o problema. - Corre o dedo sobre o papel. - Falta escolher uma cidade de origem. E paladinos não podem ser elfos. Está nas regras.

—Os fiéis delas não são os meus. - Reimu recolhe a folha e corrige os dados. Você tem fiéis?

—De qualquer modo, a população tem que se preparar para o festival, não importa a data. Sugiro que informe quem puder espalhar a notícia.

—Não é melhor termos uma solução primeiro?

Termos?” Que honra.

—Como preferir. - Aguarda que ela feche o encarte de mapas do jogo. - Não gosto de tocar no assunto, mas talvez Marisa venha hoje.

—Não me importo. - Acho que eu deveria ter ficado calado. Também acho que você se importa.— Aliás, o que ela sabe?

—Que esse trabalho todo é para mim. Você poderia justificar a presença dizendo que vai me ajudar. Parece plausível.

Mais tempo em silêncio significa mais aflição. Começa a rabiscar no bloco de fichas do jogo até decidir escrever de vez no próprio dicionário. “Dúvida: ????????” Não preciso de palavras. Vê Reimu terminar mais um copo e apoiar o rosto avermelhado na mão.

—Obrigada.

—O que eu fiz agora? - Isso não foi ironia, foi?

—Não tenho muito o que explicar.

Rinnosuke dá de ombros e aceita. Agora, resta esperar. Talvez seja interessante criar um herói para mim. Considera elaborar um de desenvolvimento simples, mais próximo de si mesmo, mas decide pelo contrário. Se tenho a chance de experimentar outras possibilidades, por que não? Um sátiro carismático com grande habilidade musical ganha vida na ficha. Defeitos…? O quesito o deixa indeciso. Olha para o lado oposto da mesa. Problemas com álcool. Mais um tanto de pesquisa e imaginação transformam sua ideia inicial em Alnus Burnitt, um boêmio criado nos subúrbios de uma cidade-satélite, famoso por sua voz, habilidade na harpa, força de soco em brigas de bar e sucesso com as mulheres. Irmão do meio, não participou da fase próspera da família como o primogênito, nem foi mandado para um mosteiro como o caçula; o temperamento entre a insanidade criativa e a revolta o levaram à alta requisição em tavernas, depois aos grupos de viajantes e aos eventos da nobreza. Isso é mais divertido do que parece.

—Ei. - Reimu puxa a manga de sua blusa. - Tem alguém batendo à porta.

—Juro não ter ouvido. - Deixei trancada?— E se-

—Só vá.

Encara-a por um tempo em busca de confiança, assente com a cabeça e se levanta. Dois giros de chave trazem de volta o ar frio e Marisa como novidade, com uma bolsa de viagem sobre o ombro.

—Devo te cumprimentar? - Rinnosuke pergunta com uma risada.

—Não sei. Você decide. Tem chá? Eu vim voando, preciso de um.

—Decidi por saquê hoje. Sei que é cedo, mas a justificativa está preocupada em criar pingentes de gelo no meu telhado. Deu tudo certo com os materiais?

—Quase virei a noite, mas deu, sim.

Talvez ela fosse completar o raciocínio e desistiu no meio do caminho. Antes que tenha tempo de se sentir ansioso, as duas já se viram. Observa por um instante, depois vai para a cozinha, ouvidos atentos a uma conversa unilateral. O que anda fazendo, se algo novo aconteceu, planos para o fim do ano; nada que ele mesmo não saiba, muito que Reimu esconde. Quanto tempo Marisa vai levar para notar? Enquanto reaquece o jarro de servir, tem um estalo. Reimu queria vê-la. Estava com saudade. Não é exato, mas é possível, e a bebida lhe deu a coragem que faltava. Para evitar que comece a maquinar demais o mistério, retorna.

—Falta o suco, não é? - Marisa pergunta ao receber o copo. - Posso ficar com ele como parte do pagamento?

—Não. Trato é trato.

Não dou uma semana para isso não estar mais nas minhas estantes. A lata longa e cor-de-rosa tem pêssegos estampados, acomodada na prateleira do meio com as outras bebidas. Pensa por um milésimo de segundo em jogá-la para o alto para tentar apanhar na queda. De jeito nenhum. Eu poderia perder um olho ou algo do tipo. A mesa se apresenta diferente: um mapa de Gensokyo em escala cartográfica, desenhado à mão com nanquim, e um livro aberto, as páginas contendo desenhos de mesmo traço e esmero. Eis nossa desaparecida e seus poderes excêntricos. Marisa dispõe uma corda fina em círculo ao redor do espaço que as três pessoas presentes ocupam; ela pede pela lata e a posiciona sobre o livro.

—Tudo pronto. Posso começar?

—Às ordens. - Reimu permite, entediada. Não esperava por tanto autocontrole.

A maga apoia a mão aberta no topo da lata e fecha os olhos. Recita um encantamento longo com algumas pausas, numa pronúncia tão rápida que Rinnosuke não consegue acompanhar. Ao que ela afasta a palma, um disparo repentino em tons de verde atinge o papel. Cada colina, montanha, árvore, casa e corpo d’água ganha cores reais. Esplêndido. Marisa trança um colar multicolorido para um pingente em forma de losango, girando as amarras entre os dedos indicadores para abrir o resultado final num triângulo. Concentrada, ela espia pelo espaço vazio do ornamento, que balança como se estivesse inquieto.

—Se você pudesse parar, seria muito bom. Você é mais pesado do que parece. - Ela ralha com o objeto. - Que tipo de visão é essa?

—Algo errado?

—Eu deveria ter uma noção dos lugares que Tenshi viu nas últimas horas. Mas só mostra o céu. E o feitiço não daria resposta se ela estivesse fora de Gensokyo.

—Isso significa que ela está em casa, não? - Dá uma olhada breve para Reimu, calada na outra ponta da mesa. - É uma resposta coerente.

—Não, não tem nada a ver. Já dei uma passada por lá. Vou tentar outra coisa, torçam para funcionar.

Marisa deixa de lado a primeira ferramenta e arremessa uma moeda dourada ao ar; ela cai sem dar um único giro bem em cima da Kourindou no mapa, arrastando-se devagar para a esquerda.

—Como? Isso não tem lógica! Onde eu errei?

—Você pode tentar de novo, temos o dia todo.

—Tenho uma hipótese. - Reimu se pronuncia, bocejando enquanto fica de pé. - Ela está passando aqui por cima. É só sairmos para olhar.

—Mas só nós duas conseguimos chegar tão alto.

—Decidimos isso lá fora. Não vamos perder tempo. - Interrompe-as. Que vontade de passar frio. Mal posso esperar.

Arrumam-se às pressas. Rinnosuke as empresta mais roupas e luvas grandes demais. Assim que cruzam a porta, um imenso vulto dá as caras no céu, impulsionado pela corrente de ar. Os três deixam escapar alguma expressão maravilhada; o Navio Palanquim não é uma vista tão frequente.

—Suspeito que temos nossa resposta, Marisa.

—E como vamos fazer para, sei lá, não virarmos cubos de gelo?

Você vem junto?

—Deixa comigo. - Reimu espreguiça, alonga os braços e endireita o corpo. - Vou fazer uma barreira protetora, mas tem um problema.

—Que seria…? - Por favor, não envolva mais acidentes nisso.

—Durar três horas e nos fazer dormir um dia inteiro depois.

—Não tenho que fazer nada amanhã. E vocês? - Marisa olha ao redor em busca da confirmação. - Acho que é uma boa saída.

Por que ela carrega talismãs em tempos onde nada acontece? Reimu coloca os poderes em prática; brilham em frente a ela, depois Marisa, por uma fração de segundo e tudo retorna à ordem natural.

—Pode se abaixar, por favor? - Demora a notar que ela o chama. - Não alcanço sua testa.

Pede desculpas e dobra os joelhos. O contato breve o deixa tenso. Marisa, eufórica, dispara na frente com a vassoura; não demora a perderem-na de vista.

—Segure-se bem. - Reimu diz num tom monótono e vira de costas.

Pensa em várias coisas a se perguntar, mas desiste de todas. Como se faz isso sem destruir a coluna de alguém? Estende os braços e os enlaça de maneira razoável ao redor do pescoço dela.

—Dessa forma?

—Mais… Longe do meu ouvido, se puder.

Ah… Sim. Ficar em silêncio. Entendido. Reimu agarra seu antebraço com as duas mãos e salta em direção ao templo flutuante. Definitivamente, ela é mais forte do que eu pensei.

 

~

 

Estreitando os olhos, Rinnosuke vislumbra uma movimentação no convés. O navio atracou em pleno ar ao perceber que era seguido. Evita olhar para baixo ou sentiria vertigem. Uma garota em trajes de marinheiro se aproxima da amurada, o olhar sério demais para alguém com uma aparência tão jovem. Juro tê-la visto atravessar aquele barril. Mas o que é uma coisa dessas em comparação com… Seja lá o que aconteça nesse lugar.

—Quem são vocês?

—Ah, para, você se lembra da gente. Daquela vez! - A condutora do barco passa um tempo se indagando sobre a referência que Marisa deu, sem frutos. - Você até me ensinou a usar o astrolábio.

—Claro, como pude me esquecer. Vocês duas, eu sei quem são. E o peso morto ali?

—É um convidado nosso. Não se importe com ele.

—Creio que Hijiri conhece minha loja, se isso auxiliar. - Interrompe o desdém antes que piore. - Sou proprietário do comércio de antiguidades na estrada para a floresta.

—Vou informar a senhora da chegada de vocês. Sejam bem-vindos ao navio.

Ficar de pé é um alívio instantâneo para o corpo. Se eu sinto dor, imagine quem me carregou. Reimu não deu um pio desde que alçaram voo e mantém o semblante fechado. Temos só meia certeza se Tenshi está aqui, também. Não dá para culpá-la. Venta forte, mas isso não o incomoda, nem parece fazer mal às outras duas.

—Falta pouco.

Ela está pensando alto, acho. Sente-se na obrigação de responder, no entanto. Olha em volta para detectar Marisa; vê a maga atrás de coisas interessantes, importunando uma youkai com orelhas de roedor. Respira fundo e apoia a mão no ombro de Reimu.

—Sim. Conseguimos.

Interrompe o contato sem observar seus efeitos, preocupado com opiniões alheias. Aproxima-se do beiral para dar uma breve olhada na paisagem, só o bastante antes de sentir náuseas. Ela o acompanha sem dizer uma palavra. Marisa os segue, dividida entre requisitar a atenção de Reimu e manipular uma ampulheta dourada envolta por vários aros giratórios. É a menor que eu já vi. Alguém mede mesmo a passagem do tempo com isso?

—Não esperava por visitas agora.

A figura de Byakuren é mais imponente do que sua estatura; carrega tanto poder quanto tranquilidade. Ela se curva, só o bastante para se mostrar acolhedora. Rinnosuke olha em volta para tentar copiar as outras duas, mas Marisa acena com alegria e Reimu não parece se importar. Decide ser mais formal e ouve a senhora do templo rir.

—Gostariam de conversar na cabine? Minamitsu não me disse o que os trouxe aqui. Se bem que estamos num ângulo magnífico para se observar o panorama. - Ela luta para manter o cabelo fora do rosto e olha para a porta de onde deve ter vindo. - Sei que está aí, Shou. Por que a pressa? O assunto chegaria a você em algum momento.

Como ela notou? Para acessar o aposento, ainda levam metros e mais metros de convés, assim como uma escada. Shou responde algo ininteligível em tom de brincadeira, sumindo para o lado de dentro. Byakuren os convoca para acompanhá-la enquanto comenta sobre duas novas faces do templo.

—Não estão por aqui há muito. Menos de um mês, talvez. Se olharem com atenção para a cesta, talvez vejam uma delas. Elas não se entendem muito bem, na verdade.

Do alto, brota uma cabeça com um par de chifres. Suika grita algo para Reimu assim que a vê, agitando a garrafa ao ar; impossível saber se está vazia ou cheia. Um sorriso. Que surpresa. Curva-se para cruzar a porta. Marisa decide que não quer entrar e desce para os outros compartimentos do navio. Bom para nós, acho.

A cabine tem o mínimo: mesa baixa sobre um tapete vermelho, alguns baús e uma cama ao lado da janela, cujos pilares se unem ao teto baixo. Por um instante, fica aflito ao ver só Byakuren e Shou sentadas ao redor da mesa. Perdemos a viagem? As cobertas brancas se movem e uma figura os cumprimenta em meio a bocejos. Não sabe a qual deus agradecer. Tenshi dispensou o vestido chamativo por um traje mais adequado ao Templo Myouren, mas de cores a seu agrado.

—Cochilar o dia todo não deixa você com dor nas costas? - Byakuren graceja.

—Cheguei à idade de curtir esse tipo de coisa. - Ver os visitantes faz Tenshi abrir os olhos de vez. - Você por aqui, Reimu? Quem diria. Não conheço o rapaz.

—Você sabe que a tendência é dormir menos à medida que se envelhece, não? - Shou a corrige com ironia.

Byakuren interrompe o início de discussão apresentando Rinnosuke a elas. Antes distraído com o turíbulo em forma de lótus sobre a mesa, endireita a postura e deixa escapar um suspiro de alívio. É a hora da verdade.

—O que os traz aqui em um dia tão inóspito? - Shou indaga, bem mais séria que antes, as mãos dentro das mangas.

Ambos começam a falar ao mesmo tempo, se calam e olham um para o outro. Deixa-a prosseguir. Reimu se explica com humildade, algo raro de se ver; mesmo que o assunto seja com a hóspede celestial, seu histórico é o bastante para Byakuren não querê-la ali. Pudera. Ela trataria os protegidos do templo com a boa e velha exterminação.

—Se já estiver comprometida com as tarefas daqui, Tenshi, perdoe o incômodo.

—O festival é público. Não acho que tenha problema. - Olha em volta e encontra aprovação. Dá de ombros. - Estou aqui mais a passeio, de qualquer forma.

—Acho arriscado não impor restrições a esse tipo de feitiço. - Byakuren cruza os dedos sobre o colo.

—Não seja por isso. Podem me dar só um momento?

Tenshi deixa a roda para revirar um dos baús. Não a notam até ela começar a discutir com os objetos desordenados. De repente, solta um grito de triunfo com o punho fechado. Tem em mãos um caderno de capa gasta e um pêndulo azul numa corrente prateada.

—Precisa de espaço? - Shou faz menção de se levantar. - Não sei se vem caos por aí.

—Pode ficar onde está. O funcionamento é o seguinte: esta joia aqui vai acumular o feitiço em si. - Ela gesticula um tanto enquanto explica. - Você a segura em mãos, recita o encantamento exatamente como está no papel e isso vai liberar o controle das nevascas por um dia. Só pode ser usado de novo dali dez meses. Dúvidas? Não? Lá vou eu.

A voz dela muda da tonalidade casual para uma que preenche a sala e surpreende os ouvidos. Com o ritmo em aceleração, luzes surgem na cabine, circulando a origem do poder. O mantra termina sem que Rinnosuke compreenda uma palavra; os feixes claros são atraídos para o pêndulo como se ele sugasse a energia e a joia cai exausta nas mãos em concha logo abaixo. Sinto que sou o único impressionado aqui. Enquanto Tenshi faz anotações, a porta se abre para Marisa bisbilhotar o cômodo, em dúvida se já estão no fim.

—Nós já vamos. Pode ir, se estiver com pressa. - Toma a frente ele mesmo para respondê-la.

—Fiquem com o caderno. É um diário de viagem. Tenho mais um monte desses. - Tenshi impede que ele ouça Marisa e a porta se fecha. - Vocês têm hora para voltar?

—Acho que falta uma hora para acabar o encantamento. - Reimu passa os olhos na página aberta.

Alguém da mesa tem curiosidade o bastante para questioná-la sobre a barreira contra o frio. Enquanto ouve a explicação em segundo plano, Rinnosuke guarda consigo os objetos novos, enfim conquistados. Faz sentido que o feitiço desgaste a pessoa protegida, não só o conjurador. O próprio corpo gera calor e o mantém por perto.

—Não daria para só quem executou ser a fonte de energia? - Tenshi pergunta.

—É possível, mas não prático. - Byakuren esclarece. - Uma pessoa se sacrificaria para proteger a si mesma e outras duas, neste caso. O cansaço colateral seria muito pior.

—Vai ser uma descida e tanto até o chão. Quer que eu leve você?

—Falou comigo? - Aponta para si mesmo e a celestial confirma.

—Nada pessoal, só não parece que você saiba voar.

Verdades sejam ditas. Após agradecimentos e despedidas, saem ao convés; Byakuren sinaliza para sua capitã dar partida em breve. Marisa flutua com a vassoura ao redor da cesta, com Suika na garupa. Ao que pousam, a youkai corre para cumprimentar Reimu. Não dá muita atenção à conversa delas, mas é bom ouvir ofensas amigáveis no lugar de silêncio, confissões ilógicas e lágrimas. De relance, vê as três compartilhando bebida, Byakuren recusando-a, Shou fazendo o mesmo com relutância e Tenshi evitando contato depois de um trago. Ela tira Rinnosuke do chão como se não pesasse e salta ao ar com ele no colo.

—Segure-se aí.

—Não precisa pedir duas vezes. - Depois de quase me matar de susto, claro.

Mesmo que desnecessário, Reimu acompanha Marisa na vassoura. Estão bem próximas. Aliás… Segurando-se uma na outra. Nunca vou compreender isso tudo. Deixa escapar um riso desconcertado.

—Algo de errado? - Tenshi balança a cabeça para tirar o cabelo do rosto.

Por que mentir?

—Bastante coisa.

—Sério? - Parece surpresa. - Quer mudar de assunto?

—Não é necessário. Acho que ninguém mais está ouvindo.

—Que seja. E qual é o problema?

Agora, preciso resumir uma semana anormal, um acidente, uma perda de memória, um envolvimento pelo qual eu não pedi, nem procurei e uma amizade que… Não sei mais onde classificar.

—Pessoas.

—Isso foi bem vago.

—É o melhor que consigo fazer, perdão.

Mesmo que ela esteja literalmente me segurando, isso não é uma tortura. Uma sonolência o encontra e o frio começa a incomodar.

—Você é um cara peculiar. Enfim, aceita um conselho? - Reluta e acaba concordando. Tenshi continua. - Nada acontece da mesma forma duas vezes.

—De que maneira isso deveria me ajudar?

—Você só fica entediado se quiser. Acho que vejo sua casa daqui.

—Se for fazer qualquer movimento brusco, por favor-

A descida quase em queda livre gela mais seu estômago que os graus negativos.

—O que você disse? - Ela eleva a voz por cima do vento.

—Quero chegar ao chão vivo.

O voo desacelera até caírem numa pilha de neve. Fica de pé com receio depois que Tenshi já se levantou e escorrega para a segurança da terra. Sua condutora parte quase na mesma hora em que as outras duas aterrissam; Marisa ainda fica por um tempo, entretida em derrubar os pingentes de gelo do telhado com o cabo da vassoura, depois vai para casa deixando um rastro de preguiça por onde passa. O navio se locomove entre as nuvens outra vez, numa direção que ignoram.

—Vou à vila falar com o líder sobre o que conseguimos.

“Vá pela sombra” não serve num clima desses. Entrega o caderno e o pêndulo a Reimu. Ela desce os degraus da entrada, alonga o corpo e diz, olhando por cima do ombro:

—Até mais tarde.

Poda as indagações antes que se tornem irresistíveis. Ótimo, agora diga algo decente.

—Vou deixar a porta destrancada.

Estima meia hora para desmaiar pelo dia seguinte. O silêncio permeia sua refeição leve, a pausa para a bebida, o chá, o segundo momento alcoólico, o banho fervente e os instantes sonolentos sob seus cobertores. Por que não só dormir de uma vez? Remexe-se na cama improvisada. Esbarra a mão num objeto desconhecido sob o armário e alcança a lanterna para descobrir o que é; uma pulseira de contas coloridas, par de uma gargantilha semelhante. Girando contra a luz, as joias falsas formam belos reflexos. Era aqui que estava, então. Cada piscar de olhos é um início de sonho sem sentido ou um período de completo escuro. De longe, o sino soa, mas não considera atender. Nem a própria porta do quarto ou o vulto que a abriu o despertam. Crê ter ouvido algo como “durma bem”, mas as palavras se enrolam na resposta. Nem é noite ainda.


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