Bravado escrita por Camélia Bardon


Capítulo 2
Liberdade poética




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Quando se formou no ginásio, Thomas escolheu viajar. Mamãe proibiu viagens de barco a vapor, depois do incidente com o grande navio inglês que bateu contra o iceberg à altura do Canadá. Então, meu irmão optou – sabiamente – por uma que pudesse ser percorrida por um trem. Voltou cheio de ciaos, arrivedercis e afins. Como era Thomas, fazia parte do charme.

Eu, por outro lado, quando me formei, escolhi uma cópia completa de O Conde de Monte Cristo. Isso, de certa forma, trouxe orgulho à rata de biblioteca que era minha mãe. No entanto, não pude deixar de notar o olhar de perspectiva de meu pai. Ele já fora um grande inventor – tanto que até hoje nossa renda vem de sua cabeça criativa – então imagino que quisesse que fosse como ele e Thomas. Não que ele dissesse isso em voz alta, mas... certas opiniões são deduzíveis.

Thomas escolheu a biologia como profissão. Está no segundo ano de estudos em Cambridge; e é para lá que vou, daqui dois meses. Estou interessado numa carreira ainda subestimada e que, entretanto, me é extremamente interessante: a psicologia. Surpreendentemente, nenhum membro da família se opôs, por mais que a opinião popular fosse majoritariamente negativa.

De qualquer maneira, não invejo meu irmão, apesar da tendência crítica que tenho. Sei que, quando estudar, provavelmente terei respostas para meu estilo de comportamento. Então tudo que faço – e tudo que fiz ao longo de dezoito anos – é me sentar e observar, até ser requisitado. Geralmente não sou. Com exceção de Gabrielle.

Não digo que ela é minha prima favorita por não concordar com favoritismo, mas ela é de longe a prima com quem mais converso. Talvez seja porque ela seja apenas alguns meses mais nova que eu. E por sermos, na cronologia de diversos nascimentos, os que se encaixam no meio. Já devem ter escutado aquele dito: os irmãos do meio são sempre os menos privilegiados e mais privilegiados, simultaneamente. Não recebemos tanta pressão como os mais velhos, e quase nenhuma vigilância como os mais velhos. Apesar de sermos relativamente pacíficos, eu e Gabrielle poderíamos passar despercebidos se fizéssemos algo de ruim em casa, pois a suspeita sempre viria para os dois extremos em que não nos encaixávamos.

Então, quando ela se sentou ao meu lado no banco do jardim acompanhada de sua xícara de chá, não estranhei a presença, como era de costume.

— Foi decerto um fiasco sua tentativa de camuflar-se ao mundo real, sabe? — Gabrielle comentou despretensiosamente, me arrancando um riso fraco.

— Oh, céus. O que será de mim agora?

— Não deveria tê-lo ensinado a ser irônico, agora vai usar de ironia a cada letra que pronunciar!

— O que não acontece com frequência, então creio ter certa liberdade poética...

Gabrielle gargalhou, jogando os cachos castanhos para trás. Mesmo não olhando para ela, eu tinha a ciência de que ela havia erguido uma sobrancelha e um sorriso ante minha afirmação.

Liberdade poética... desde quando isso é um argumento, sr. Banks?

— Desde agora, srta. Bretonne. E não venha me chamar de senhor. Me sinto um idoso ranzinza.

— Aí é que está! Já é um idoso ranzinza, porém... com algumas décadas adiantadas.

Revirei os olhos, bufando para ela. Me recordei do tempo em que nossas mães apostavam que seríamos um casal num futuro próximo. Até nós achávamos. Para não ser injusto, o único beijo que já dei foi nela, quando tínhamos dezesseis. Concordamos com aquilo por confiarmos um no outro; entretanto, qualquer possibilidade de ficarmos juntos morreu ali, visto quão ridícula foi a ocasião. Nenhum dos dois comenta sobre o assunto – apenas, talvez, para frisar que nunca mais se repetiria.

— Então... — começou ela, o que me fez imaginar que mudaria o rumo da conversa radicalmente. — Quando vai dizer à minha irmã que tem sentimentos por ela?

Pigarreei, quase me engasgando com minha própria saliva.

— De onde t-tirou tamanha ideia ridícula, Elle? Não tenho sentimento nenhum por ninguém. N-não diga sandices!

— Para começar, de seu gaguejar sempre que comento algo sobre ela...

Maldito gaguejo.

— ... em segundo lugar, o modo como olha para Adele, como um cachorro olha para um osso. Certas vezes, se torna um tanto assustador, pois nunca saberia dosar como seus olhares vão te delatar. E, em terceiro, sempre que ela dirige a fala a ti, você fica cheio de responder monossilabicamente. Quer dizer, somente um tolo não notaria tais sinais.

— Mais tolo é quem procura sinais onde não há nenhum — tentei me defender, apesar de nunca conseguir nada do gênero com eficiência. Tive de respirar fundo para arranjar as palavras certas sem me atrapalhar. — Além disso, Adele ama a Thomas. E não irei interpelar os relacionamentos alheios.

— Relacionamento... — Gabrielle bufou, rolando os olhos amendoados. — São preocupações adoráveis, Alex, se fosse um relacionamento concreto. Thomas flerta com ela e ela aceita essas migalhas. Não chamo isso de relacionamento.

Dei de ombros, me recostando no banco, assim como ela.

— Mesmo assim, pode resultar em algo concreto algum dia.

— E, enquanto isso, vai ficar aí sofrendo, esperando se decidirem?

— É como eu disse. Está vendo coisas onde não existem, Elle...

Escutei-a engolir em seco e virar-se para mim. Olhei-a de soslaio, procurando me concentrar nas folhas espalhadas no chão após a chuva. Talvez assim Gabrielle abandonasse aquela ideia de uma vez por todas.

— Alexander Banks, escute bem o que vou dizer — pronunciou ela, em tom sério. — Se continuar sendo passivo com as coisas que são de seu interesse, alguém vai decidir por você. Aproveite as chances da vida enquanto ainda as têm, pois... se acaso tomarem as decisões por ti, não terá mais direito nenhum de protestar. Podes negar o quanto quiser sobre o que está morando em seu coração, para mim. Contudo, não negue para ti. O mundo é bem maior do que pensa. Não será egoísta se escolher você, vez ou outra.

Assenti com a cabeça apenas para indicar que tinha escutado o que ela havia dito. Qualquer coisa que lhe respondesse seria suficiente para Gabrielle continuar falando, então com o silêncio ficamos entendidos. Daí, ela se levantou, com a xícara na mão. Pôs-se ao meu lado e apertou o ombro direito, com afeto. Isso me obrigou a olhar para ela.

— Lembre-se disso, sim? Pode ser útil em algum momento.

E assim ela me deixou, sozinho com meus próprios pensamentos.

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Mesmo não tendo me decidido acerca de o que sentia ou deixava de sentir, naquele momento consegui pensar em: tenho apenas dois meses. Vamos aproveitar em grande estilo.

O problema era que o verão francês era inquietantemente quente. Não era como em Londres, onde o verão era suficiente apenas para um leve ardor. Aqui estávamos falando de suor escorrendo a ponto de ter que afrouxar qualquer gravata ou botão – e foi o que fiz. Dobrei as mangas da camisa para cima, decidido a ir passear por algum lugar mais fresco, com um livro debaixo do braço e falta do que fazer como motivações principais.

Enquanto caminhava, aprovei que o jardim da propriedade fornecia uma bela vista do conjunto de mansões da Rue Ramponeau e da Torre Eiffel ao longe, no final da rua. Parei em frente a uma das fontes da propriedade – a que tinha o chafariz rodeado por rosas brancas – e deixei que as gotículas de água refrescassem meu rosto. Subitamente, me lembrei do Fantasma da Ópera que levava nas mãos. Um choque me fez virar bruscamente em busca de abrigo, então virei de costas para procurar alguma mureta.

Me arrependi de ter tomado tal decisão. Saindo dos arbustos – sabe-se lá como— uma tesoura de poda esperava por mim, sorrateira. Não teve outro jeito. Com o contato, senti a lâmina afiada rasgando minha carne. Foi inevitável gemer com o ardor e a sensação quente do sangue se acumulando. Até escorrer. Bem para o meu livro.

— Inferno...! — praguejei, tirando-o de perto tarde demais. Mordi o lábio para conter os próximos grunhidos de dor, olhando ao redor procurando qual era a melhor opção. Deveria lavar o ferimento imediatamente ou...?

Fui desperto de meu torpor acidental com um ah, céus do lado oposto. Um par de olhos azuis me encarava com preocupação. Desde quando Thomas estava ali?

— Ah, Alex, perdoe-me o descuido — ele murmurou, recolhendo a tesoura de poda para si. Entretanto, após notar a viscosidade do sangue, franziu a testa para a lâmina. Com uma mão em concha, lavou-a e retornou-a ao bolso, quase mecanicamente. — Deixei-a aí e sequer notei-a. Sinto muito, mesmo.

— Tudo bem — murmurei apenas para mostrar que estava vivo. Aquela ferida doía, ainda mais com o suor do nervosismo insistindo em escorrer diretamente para lá. — Tudo bem.

Thomas pareceu compreender meu olhar indagador, porquanto que iniciou as explicações antes de mim requerê-las:

— Tia Sienna permitiu que viesse dar uma olhada no jardim... e que lhe colhesse alguns ramos de erva-doce. Parece que o jardineiro está no período de folga. Então... claro que ela pediria para o sobrinho “botânico” dar um trato na sua coleção preciosa — então, ele riu fraco, seguido de um suspiro. — Venha. Vamos lavar isso aí com sabão e água fria, antes que inflame e fique algo monstruoso.

Sequer tive tempo ou ânimo de negar ou afirmar nada pois, quando menos percebi, Tom já me puxava pelo braço saudável para dentro da Casa Bretonne.

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Contornando qualquer vestígio de mãe e pai – e sabendo que a bronca seria dupla –, Thomas me guiou pela entrada de funcionários. Escolhendo a lavanderia, Tom me fez sentar num banquinho de madeira e estender o braço para avaliar os dando. Então, contraiu o rosto em uma careta ao pegar o sabonete e avaliá-lo como se fosse o próprio braço a sofrer.

— Vamos logo com isso, pelo amor de... — comecei a praguejar, mas logo reparei que seu olhar ia por cima de meu ombro. Pisquei em confusão, e segui seu olhar até entender qual o motivo de sua preocupação.

Adele jazia recostada no batente da porta, com os braços cruzados e uma expressão ferina atravessando os traços cuidadosos de praxe. Eu e Thomas nos entreolhamos, o mesmo pensamento passando por uma conexão que apenas irmãos tem.

Merda...

— O que os senhores pensam que estão fazendo?

Sua sobrancelha arqueada não me deixou com vontade alguma de responder o questionamento. Afinal, a culpa teoricamente era de Thomas, não era...? Quando ia engolir em seco para tomar coragem para responder, sua carranca passou para uma gargalhada inusitada.

— Céus, deveriam ver suas caras. Os deixo cinco minutos sozinhos e vocês já estão utilizando a minha lavanderia de abrigo de guerra, Banks? — Adele continuou rindo, mas desta vez postou-se ao nosso lado para avaliar o estrago. — O que fez isso?

— Uma tesoura de poda... — respondeu Thomas, constrangido.

Adele, por sua vez, suspirou dramaticamente antes de afastar os fios rebeldes pretos do rosto.

— Nem quero entrar em detalhes. Bem... não use este sabonete. Ele é próprio para lavagem de roupas. Pode ter traços de soda cáustica, definitivamente não vai ajudar na ferida. Thomas, querido, faça-me o favor e colha algumas calêndulas para mim, sim?

Fiquei me perguntando como ela poderia ter tanta confiança no que dizia, visto que Adele nunca foi dada a esboçar nenhuma inclinação acadêmica – e como poderia, visto que isto não era algo permitido? Mesmo assim, Thomas não a questionou. Observei-o levantar-se de prontidão, resgatar a bendita tesoura de poda e sair em busca da calêndula misteriosa. Provavelmente meu rosto estava contraído num ponto de interrogação, porquanto que Adele sorriu e explicou:

— São aquelas margaridas alaranjadas. Elas têm certas propriedades antissépticas melhores que as do sabão.

Respirei fundo e esperei alguns segundos para ter certeza de que eu não ia gaguejar.

— Estuda... botânica, também?

— Não exatamente — ela mordeu o lábio, segurando meu pulso com delicadeza para observar o rasgo. — Eu encontrei alguns livros de enfermagem na Quartier Latin. Decorei coisa ou outra, despretensiosamente. Mas... não conte a ninguém sobre isso... pode ser?

Devido a sua hesitação, assenti com a cabeça. Antes de começar, porém, Adele olhou ao redor e aproximou-se de mim. Senti meus ombros tensionarem com a ação, mais ainda quando pronunciou:

— Alex... por acaso, já notou como Thomas anda estranho, estes tempos?

Oh-oh.


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Notas finais do capítulo

Olá ♡ como vão vocês?
Obrigada pela boa recepção do capítulo anterior, fico feliz que vocês tenham embarcado aqui de cabeça também!

A gente já começa na treta, tem pausa aqui não xD que que ocê foi fazer no mato, Thomas, meu bem? ♪