Bravado escrita por Camélia Bardon


Capítulo 18
Lar é onde o coração está




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/785950/chapter/18

Nosso momento de bebedeira deu lugar ao momento sério e de estudos na semana seguinte. Fazíamos uma escadinha: Thomas finalizava seu quarto ano, Hugh o terceiro e eu estava indo para o segundo. Certo, era uma escadinha irregular, não vamos nos ater tanto aos números. Fosse como fosse, a semana de provas foi uma tortura psicológica para dar e vender, porém se estávamos juntos era mais suportável.

Ao final da sexta-feira, fui o primeiro a voltar para o quarto. Isso me fez pensar em outras questões: será que eu tinha feito tudo rápido para matar logo o nervosismo? Ou será que isso significava que eu fazia as coisas de qualquer jeito? Isso era um medidor de capacidade intelectual ou revelava que eu tinha raciocínio rápido?

Ah, meu Deus.

Tomando uma lufada generosa de ar para os pulmões, me revirei na cama. Eu tinha certeza: se não era um infarto chegando, eram apenas gases. Eu estava torcendo para ser a segunda opção.

Uma batida na porta me despertou do meu ataque de ansiedade. Ergui a cabeça para ver quem era o originador do som, deparando-me com os cachos e olhos verdes de Thomas em resposta. Resmunguei em meu esforço de dizer “olá”. Foi bem patético.

— Minha nossa. Ainda bem que cheguei, sabe-se lá em quanto tempo o senhor viria a óbito — Thomas gargalhou enquanto eu me arrumava na cama para deixar de enxergá-lo de ponta-cabeça. — Relaxe um pouco, Alex, os resultados só saem no domingo.

— Até lá o corpo fede a carniça...?

— Exatamente. Viu só, já está pegando o espírito da coisa. Ande, vamos dar uma volta e ocupar a cabeça com outra coisa.

Assenti com a cabeça, me espreguiçando. Sentia os ossos das pernas doendo, apesar do frio não estar mais tão insuportável àquela altura da temporada. Fechei os olhos, tentando abrandar a dor de cabeça que começava a substituir o frio como meu objeto pessoal de ódio.

— Ah, a propósito, encontrei Hugh no meio do corredor, ele pediu desculpas por não poder vir hoje, mas precisa ir para casa ajudar a família a receber uns parentes para o verão.

— Entendi — ri baixinho, me levantando. — Não é como se não fôssemos fazer o mesmo.

— Pois é. Aproveitando a deixa, podemos ir ver  casa para você e Adele. Disseram-me que em Sutton o bairro é lindo e bem acessível para poucas pessoas. Imagino que vocês dois não vão querer extravagâncias.

Neguei com a cabeça, sentindo o suor frio ameaçando escorrer pela testa. Procurei deixar isso não me afetar.

— Menos é mais.

— Perfeito. Quer ir agora?

Fiz que sim mecanicamente, me arrastando para pegar um casaco e colocar os sapatos. Thomas continuou observando-se, não comentando um “a” sobre meu estado de espírito deplorável. Achei muita gentileza de sua parte, então sorri meio torto como agradecimento. Ele me presenteou com um tapinha nas costas de incentivo.

A perspectiva de dormir em casa foi bem mais agradável conforme andávamos e pegávamos o trem. O chacoalhar da engenhoca era relaxante, então foi um processo gradual. Não era nada mal imaginar chegar a nossa casa e ser acolhido por um abraço de urso de Maélie. Ou então com um milhão de beijos da mamãe.

Thomas tinha razão. Eu era um sujeito bem previsível. Porém, isso não era um defeito sempre.

Após o trem, tomamos uma carruagem de aluguel. Descobri que Sutton era uma versão mais arborizada de Bloomsbury, o que me fez ficar confortável com o ambiente. Além disso, ficava bem próximo da Charing Cross, então não é como se estivéssemos nos mudando para o fim do mundo. Thomas me olhava de lado, estudando minhas reações.

— O que achou?

— Se parecem muito com as casas de Bloomsbury — externei meus pensamentos, ao passo que ele assentiu com a cabeça. — Acho que é suficiente para um começo, não?

— É bem mais do que suficiente. Não precisa ficar com medo, vamos lá.

De fato, foi bem mais fácil passar por uma sessão intensa de corretores de imóveis, papeladas e cheques com Thomas me acompanhando. Como havia prometido, ele deu entrada na casa – “é um absurdo querer que seja aluguel uma vez que você vai morar e trabalhar em Londres, Alex”— e cuidou para que ele falasse por mim. Não que eu não fosse independente, mas o nervosismo da situação fazia com que minha língua se enrolasse toda dentro da boca. Por que não poupar desastres iminentes, não?

Com uma escritura e um contrato em mãos, eu me sentia um novo homem fazendo o caminho de Sutton até Bloomsbury. Finalmente as coisas iam bem, e eu iria tentar ao máximo não estragar tudo com minha falta de jeito para a vida. Acho que deixei claros demais meus pensamentos através das expressões faciais, porquanto que Thomas sorriu ao meu lado na carruagem.

— Estou orgulhoso, Alexander Banks. Continue assim.

Então, eu continuei.

┗━━━━━━༻❀༺━━━━━━┛

A pessoa que abriu a porta não foi Maélie e nem mamãe. Foi Elena. Ao abrir a porta, abriu um sorriso de lado, se voltou para trás e exclamou em voz bem alta:

— Mãe! Encontrei dois mendigos na rua! Posso ficar com eles?

Eu e Thomas gargalhamos, ao passo que mamãe veio correndo para ver o que é que estava acontecendo de bagunça bem diante de sua porta. Seus cabelos cacheados estavam presos num coque prestes a se desfazer, estado que ela só se permitia a ficar quando estava auxiliando nosso pai com algum trabalho. Eu sorri para ela, acenando por cima do ombro de Elena, e foi então que ela sorriu para os seus dois mais velhos com completa alegria.

— Ah, o que vocês dois estão fazendo aí? Entrem, entrem!

Elena nos deu passagem, aí então pudemos entrar e receber os abraços calorosos. Mamãe me apertou um pouco demais, mas eu nunca esperava que ela fosse delicada. Já a Thomas, tenho quase certeza de que ela o ergueu do chão.

— Já receberam os resultados da faculdade? — Lena perguntou, enquanto Thomas ainda se recuperava da tentativa de quebra de coluna da mamãe. Segurei a risada por completo respeito. Certo, talvez não por completo.

— Ainda não, Lena. Só no domingo.

— Descobri então o porquê de vocês virem antes da hora... Para matar a mãe do coração — Elena replicou, gargalhando. Então, ergueu a voz para o andar de cima. — Evan! Maélie! Venham aqui cumprimentar seus irmãos antes que eu vá buscá-los pelo cabelo!

Eu e Thomas nos entreolhamos, porém mamãe só nos olhou com sua melhor expressão de “vão se acostumando”. Como num passe de mágica, o tom autoritário de Elena surtiu efeito, pois os dois cachorros desceram as escadas com o rabo entre as pernas. Eu devia confessar: eu tinha gostado bastante dessa nova Elena. Era a prova viva para mostrar que uma pessoa não era sempre a mesma ao longo da vida, ao contrário do que alguns defendiam com unhas e dentes. Essa era a beleza da Psicologia: a inconstância em contato com as bases de nossos caráteres.

De qualquer maneira, o olhar de Maélie se iluminou. Evan fez o de sempre: acenou com a cabeça e se escorou num canto da parede.

— Alexy! Tom-tom! Que maravilha! — num abraço duplo, Maélie exalou toda a energia dos dois lados da sua família. O uso dos apelidos de infância foi um belo presente para uma semana de provas. Retribuí o abraço do meu lado, para ela também não cair de ter se atirado daquele jeito. — Eu vou fazer biscoitos! Posso, mãe?

— Pode, querida. Use a farinha que está no pote — foi a concessão da matriarca. Com isso, Maélie saiu saltitando para dentro da casa, quase levando Evan junto com ela. Isso valeu a noite. — Meu Deus, eu acho que estou criando um monstrinho culinário.

— É verdade — Elena sorriu com a fala. — Depois que ela descobriu que sabe cozinhar, virou a atração da casa.

Thomas sorriu, pendurando o casaco atrás da porta. Percebi que, com o calor que estava lá dentro, seria uma boa ideia fazer o mesmo.

— É bom que ela descubra algo que goste de fazer enquanto ainda é nova, aí pode aprimorar o quanto quiser...

— Como quando descobriu que queria fazer Biologia brincando de bruxo roubando meu almofariz e pilão da cozinha, querido? — mamãe usou seu falso tom doce, mas de brincadeira. Thomas riu de nervoso, coçando a nuca com a polêmica revelação de infância.

— É verdade. E ele nos dava para tomar, dizendo que era remédio — Evan contribuiu para a exposição de Thomas. — O gosto era horrível! Lembra-se disso, Lena?

Ela riu com maldade, tirando um cacho da frente do rosto. Estavam mais curtos, mais definidos. Era a moda fazendo com que ela se aceitasse mais um pouco.

— Eu não. Eu fingia que bebia e jogava na grama. Vocês, homens, vivem menos por um motivo.

Thomas se fingiu de decepcionado, colocando uma mão no peito como se tivesse levado um choque.

— Acho incrível como vocês levavam de forma comprometida meus talentos para botânico...

— Podia ter sido um perfumista... — opinei, segurando a risada.

— Ou um fabricante de venenos... — Evan apoiou, dessa vez provocando uma risada em todos. — Para ratos!

Elena revirou os olhos, como fazia com qualquer “a” vindo do gêmeo. Estava de volta para casa, e não sabia o quanto havia sentido falta daquela bagunça até ter contato com eles novamente. Ser um universitário era bom, mas ser um filho era melhor ainda.

┗━━━━━━༻❀༺━━━━━━┛

Após Maélie servir seus biscoitos com manteiga – que eram bons segundo sua grande reputação conquistada entre um público de agora seis pessoas ao todo –, eu e Thomas dividimos a narrativa de como estava Cambridge e da compra da casa em Sutton (adicional de uns “parabéns” e uma história de como meu pai encontrou Bloomsbury depois de pedir minha mãe em casamento em Avignon). Mamãe ofertou seu sacredieu de praxe, estendendo os braços para nos abrigar debaixo de sua proteção materna. Então, fomos dispensados para descansar um pouco.

Eu e Thomas aproveitamos que Evan sairia com os amigos para ficar com o quarto para nós. Chegamos num ponto da vida “adulta” em que já não tínhamos mais paciência para saideiras e bebedeiras exageradas. Porém, não julgávamos Evan por isso – pela primeira vez, ele era o filho mais velho da casa e tinha esse direito. Alguma hora ele se cansaria e pensaria como nós. Era um ciclo inevitável.

Deitados lado a lado, encarávamos o teto com a barriga cheia.

Depois de um tempo, a familiaridade de casa ficava estranha...

— Alex? — Thomas chamou na cama ao lado. Virei o corpo com preguiça. — Acho que chegou a hora...

— Olhe, eu sei que comemos bastante, mas ninguém morre de muita comida.

Ele gargalhou um tanto quanto abafado. Fiz o mesmo, apesar de ter os méritos pelo mau posicionamento na cama. Meu Deus, eu estava quebrado. Uma semana de provas e eu já era um morto-vivo.

— Não! Estou falando de... Hum... Aquela outra coisa.

Franzi a testa, olhando para ele.

— Que coisa? Não estou entendendo o seu misticismo, Tom.

Thomas pigarreou, ajeitando-se na cama. Com a postura ereta e tensa, entendi do que se tratava. Sua revelação do porque andou estranho todo esse tempo. Após um ano esperando, ele resolveu contar numa reunião de família desprevenida? Isso era muita coisa para o meu pobre coraçãozinho. Certo, tendo em vista de que ultimamente meus parâmetros de parada cardíaca estavam ficando consideravelmente mais frequentes...

— Eu... Resolvi contar por conta da lembrança dos “remédios” que a mãe, o Evan e a Lena mencionaram. Tem... Muito a ver com isso. Sabe quando te perguntam quando você é criança o que quer ser quando crescer, e não diz... Porque tem medo que as pessoas vão te achar meio bobo ou... Por ser algo grande demais que não seja levado a sério? Como... “quero ser rei”, ou... “quero ser médico”. “Quero ir à Lua”?

Assenti com a cabeça, bem seriamente.

Então, Thomas respirou fundo, pronto para abrir o coração.  E eu, que só tinha meu coração e meus ouvidos para oferecer, ouvi.

Pela primeira vez na vida, não senti a palpitação de costume. Estava completamente tranquilo.

Era o que sempre quis ser quando era criança. Entedia-o perfeitamente.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Ufa, finalmente chegamos nos finalmentes!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Bravado" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.