(Re) Nascer escrita por EsterNW


Capítulo 5
Café com verso


Notas iniciais do capítulo

Música do capítulo: Versus Mudos da Marjorie Estiano.



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Lysandre alimentou o fogo com mais um pouco de lenha, ouvindo a água para o café começar a borbulhar na chaleira. Percebeu que logo teria que cortar mais lenha, visto o pouco no canto da cozinha. Torcia para não se esquecer disso mais tarde.

— Acho que é a primeira vez que vou tomar seu café. — O fazendeiro teve um leve sobressalto ao ouvir a voz de Clarice e uma cadeira ser puxada às suas costas.

Estava acostumado a passar boa parte da tarde em silêncio, tendo apenas outra voz humana um pouco mais tarde, quando Chico vinha para o café. Mas não reclamaria da companhia de Clarice. Nunca reclamaria.

— Espero que seja aprovado — comentou ainda de costas e ouviu um riso, sorrindo junto.

Clarice apoiou os cotovelos sobre o tampo da mesa de madeira — ignorando o pensamento de que sua mãe diria que isso é uma tremenda falta de educação — e observou as costas do fazendeiro na camisa branca de algodão, mais distraído em tirar a chaleira do fogo e passar o café. Logo, o aroma começou a se espalhar pela cozinha, conforme a água ia descendo pelo coador de pano e a bebida ficando pronta.

— Amo esse cheiro — ela comentou, com vontade de fechar os olhos. Do lado de fora, ouvia-se o canto de alguns passarinhos em algum lugar próximo. Aquilo era como uma de suas melhores memórias. 

— Acabamos deixando de lado esse tipo de coisa na cidade — Lysandre respondeu, voltado para a pia.

— Na correria, é mais prático usar uma cafeteira ou comprar um por aí mesmo — ela afirmou e os dois conseguiram rir um pouco. A cozinha parecia ter um clima mais leve, sem todas aquelas imagens, o que acabava refletindo na conversa, que estava correndo com um pouco mais de facilidade. A única coisa a observá-los eram as louças guardadas nos armários, os utensílios de cozinha e a vaquinha do pano de prato.

Clarice contemplou o vaso de prímulas amarelas frescas sobre a mesa da cozinha, percebendo como Lysandre tentava manter a casa como sempre foi. Ou pelo menos como ela se lembrava que era. A única diferença sobre o caminho de mesa de crochê era uma pilha de papéis, debaixo de um celular, o único sinal da modernidade dentro do cômodo.

Um bule fumegante foi posto sobre a mesa junto de duas xícaras e outra com leite. 

— Biscoitos? — Lysandre ofereceu e colocou um prato cheio de biscoitos caseiros ao lado.

— Isso é a receita da sua mãe? — Clarice perguntou, no que o fazendeiro apenas confirmou enquanto puxava a cadeira ao lado dela para se sentar. — Dona Josiane ficaria orgulhosa — comentou e mordeu um biscoito, se deliciando com o sabor.

Lysandre sorriu tímido e tomou um gole de seu café, escondendo a expressão por trás da xícara. Certo, não era uma boa ideia ficar tocando no assunto dos pais. Difícil de se evitar naquele lugar... 

No meio do silêncio que se instaurou enquanto bebiam o café, Lysandre esticou o braço, na intenção de pegar seu celular próximo a Clarice. Porém, seu malabarismo para desviar-se dos objetos sobre a mesa não foi bem sucedido, entornando a xícara da veterinária sobre o crochê.

— Que bagunça! — ela exclamou, retirando os papéis e celular do meio do caminho, enquanto o líquido marrom manchava o branco do crochê.

— Vou dar um jeito nisso — Lysandre afirmou e começou a retirar os objetos de sobre a mesa, sendo ajudado por Clarice.

O fazendeiro saiu da cozinha, na intenção de deixar o tecido de molho do lado de fora, e a moça voltou tudo para seu lugar de antes — após uma passada de pano sobre o tampo —, devolvendo o vaso de flores para o centro, bule, biscoitos, xícaras e a pilha de papeis com o celular sobre ela. Ao se sentar novamente, ouviu o barulho da porta, vendo Lysandre voltar para o cômodo.

— Não precisa se desculpar — adiantou-se, sabendo exatamente o que o amigo diria a seguir. Os anos de convivência faziam esse tipo de coisa. — Ainda bem que não molhou seus papeis. Imagina se pegasse café nas suas contas? —Encheu a xícara novamente.

— Não são contas — Lysandre corrigiu, fazendo com que a veterinária erguesse uma sobrancelha. — São letras de música e poemas — respondeu, sabendo da curiosidade da amiga. 

Mesmo que com o passar dos anos ela tivesse aprendido a controlá-la — ainda mais sabendo do desconforto do amigo com esse tipo de coisa —, o rapaz sabia que, no fundo, Clarice sempre se coçava de curiosidade pelas coisas.

— Que bom que você ainda escreve — ela disse com um sorriso e os olhares se cruzaram, com uma memória que ambos se recordavam passando entre eles.

...

Os corredores da escola eram uma gritaria na hora do intervalo. Mesmo os alunos do ensino médio pareciam crianças, Clarice pensou enquanto caminhava por entre as portas das salas de aula. Todas estavam abertas, mostrando que os estudantes estavam mais ocupados no pátio. Apenas uma concentrava um ocupante. A menina colocou a cabeça para dentro, vendo os cabelos platinados de Lysandre no fundo da sala, caindo sobre os olhos devido à cabeça abaixada e o foco centrado na folha de papel à sua frente.

— Precisa de ajuda com a lição, Lys? — ofereceu, caminhando por entre as fileiras de carteiras até o final. Sendo ela dois anos mais velha do que o garoto, com certeza já teria aprendido a matéria antes, quando passou pelo último ano do ensino fundamental.

— Não é lição, estou escrevendo — ele respondeu, finalmente erguendo o rosto e encarando-a com seus olhos heterocromáticos. Apenas desviou-os dela quando sentiu suas bochechas começarem a esquentar, por um motivo que Clarice sequer sabia. Mas não se atreveu a perguntar.

— Continuo dizendo que você devia escrever um livro qualquer dia desses, Lys — ela disse, sentando-se na carteira em frente e apoiando o cotovelo sobre o encosto do objeto, para poder observar o amigo. Clarice nunca se cansaria de observar Lysandre. Parecia que sempre havia algo novo em suas características únicas.

— Prefiro os versos, me dou melhor com eles — ele retorquiu, colocando uma nova folha de papel sobre a que escrevia antes, corando apenas com o mero pensamento que a amiga lesse o que estava contido naquelas estrofes que não terminara.

— E aquela história que a gente começou a escrever juntos na semana passada? — ela questionou, no que Lysandre voltou-se para trás, retirando um caderno da mochila pendurada nas costas da cadeira.

— Onde a gente parou?

...

— Você nunca terminou aquela história? — Clarice questionou, referindo-se à memória da adolescência.

— Nunca encontramos um final — Lysandre retorquiu, preferindo deixar a pilha de papeis na sala e voltando para a cozinha em seguida.

— Um dia você consegue. — Clarice usou a segunda pessoa do singular, deixando o fazendeiro levemente desapontado. Aquela história não era apenas dele. Por isso, não a terminaria sozinho. — Mas você já tem músicas pra essas letras? — Entregou a xícara de café para o amigo, que agradeceu.

— Castiel costuma compor as melodias. Sou apenas letrista. — Lendo a pergunta que viria a seguir, continuou. — O antigo dono do Dragon, que logo vai entrar em turnê.

— E de que banda ele é? Não acredito que você tem um amigo famoso! — soltou em empolgação, fazendo Lysandre rir.

— Crowstorm. — Clarice balançou a cabeça com a resposta, mostrando que sequer ouvira falar do nome. — São bem conhecidos no underground da cena, por isso você provavelmente não ouviu falar.

— E que tipo de música eles tocam? — A veterinária fez a pergunta mais óbvia a vir a seguir.

Preferindo não apenas descrever, Lysandre pegou o celular — dessa vez não derrubando nada pelo meio do caminho — e entrou na conversa com Castiel, procurando um áudio recebido alguns dias atrás.

— Essa é uma demo do álbum que estão gravando. — O fazendeiro aumentou o volume, deixando o aparelho sobre a mesa e tomando um gole de café.

Quando os acordes cresciam na ponte da música, pegou um dos biscoitos, sendo observado por Clarice. A canção era o único som naquela cozinha. A canção da Crowstorm e dos pássaros do lado de fora. Após o estouro do refrão, a música decresceu para uma nova estrofe.

— Não é o tipo de coisa que costumo ouvir, mas gostei — Clarice deu um veredito após quase dois minutos. — Você quem escreveu a letra? — ela assistiu Lysandre assentir em resposta. — Você tá ainda mais talentoso do que antes, Lys — o apelido escorregou entre o elogio e Clarice mordeu a língua, porém, o fazendeiro sequer pareceu se importar. Pelo contrário, até mesmo sorriu.

— Obrigado, Clari — ele devolveu com o apelido que costumava usar para a amiga. Os dois sorriram e a música ia desvanecendo aos poucos, enquanto as mesmas notas iam morrendo e diminuindo de volume.

— Não consegui pegar muito coisa hoje, seu Lysandre — Chico anunciou, entrando de supetão na cozinha com a cesta na mão. — Boa tarde, doutora Clarice — cumprimentou ao vê-la.

— Já disse que pode me chamar só de Clarice, Chico — a veterinária corrigiu e o caseiro colocou os vegetais sobre a mesa, tentando coçar a cabeça sobre o boné, para esconder que estava sem graça.

— Costume do Chico — Lysandre entrou na conversa, no que o caseiro apenas indicou um “fazer o que” com a linguagem corporal. — Junte-se a nós — convidou o homem, esticando o prato de biscoitos na direção dele. — Vou pegar mais uma xícara.

O fazendeiro ergueu-se quando Chico sentou na cadeira vaga ao seu lado, indo pegar mais uma porcelana no armário pintado de verde da cozinha. Ao olhar para a mesa, Lysandre agradeceu por não ter apenas o silêncio como companhia naquela tarde.

 


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Notas finais do capítulo

Versus Mudos, Marjorie Estiano: https://youtu.be/4YmHY4lsqro
Mais um flashback pra morrermos de fofurinha, porque sim :3 Humm, voltando a usar apelidos, tomando café juntos... Agora as coisas estão voltando ao normal xD
E reiterando uma parte que foi dita no flashback: sim, a Clarice é dois anos mais velha do que o Lysandre. Na época atual da fic, ele tem 21 e ela 23.
Até mais, povo o/



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