(Re) Nascer escrita por EsterNW


Capítulo 13
Colorindo sensações


Notas iniciais do capítulo

Música do capítulo: Casa Aberta de Scalene.



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Lysandre olhou nos olhos cor de jabuticaba de Fausto, vendo como o bezerro sugava do leite da mamadeira com gosto. Estava maior, mais forte e logo estaria livre para poder correr na campina do lado de fora do curral, o único ambiente que conhecia até ali.

E acreditar que aquele animalzinho inocente poderia não ter sobrevivido, se não fosse todo o empenho que tiveram para cuidar dele naquele quase um mês… Incrível pensar também que já se passara tudo isso. Tinha a impressão que os dias escorreram menos vagarosos naquele mês. Talvez fosse a falta de repetição. A novidade à frente era excitante.

— Falei que ele ia tá aqui. — O fazendeiro foi capaz de ouvir a voz de Chico comentar com alguém na entrada do curral. 

Logo, uma risada conhecida foi ouvida. Lysandre tentou esconder o sorriso no rosto ao perceber que Clarice estava de volta. No mesmo dia em que prometeu que retornaria, sem tirar nem pôr. Quando viu a veterinária entrar com o caseiro, teve certeza que ainda estava com os lábios curvados em um sorriso. A mesma expressão tomou conta do rosto da moça.

— Acho que alguém pegou o meu trabalho — ela comentou, rindo com o caseiro.

— Esqueci que retornaria hoje. — Aquilo não era bem verdade. Lysandre estava bem ciente de que aquele dia era domingo e que seria o dia que Clarice voltaria. Por que não admitiria sua expectativa era uma dúvida. 

O fazendeiro ergueu-se, tendo terminado de alimentar o animal. Fausto levantou o rosto, procurando o bico da mamadeira com a boca.

— Por hoje acabou, Fausto, só amanhã — Lysandre advertiu e abriu a porteira da baía, deixando que os outros dois entrassem. — Você veio vaciná-lo, suponho — concluiu ao ver a veterinária com uma pequena caixa térmica e a maleta em mãos.

— Certíssimo. Fausto tem quase um mês e tá mais que na hora dele tomar a primeira vacina — ela respondeu, abrindo a maleta e a caixa térmica e retirando luvas, seringa e agulha. O bezerro assistia a tudo curioso no canto da baía. Seria a primeira dose contra carbúnculo da curta vida de Fausto. — Não sabia que você também tinha costume de conversar com os animais — ela comentou, preparando a vacina para ser aplicada.

— Ouvi dizer a alguns anos atrás que eles podem ser mais compreensíveis do que os seres humanos — Lysandre citou e os olhares dos dois se cruzaram, junto de sorrisos, quando ambos recordaram-se de uma mesma memória em comum.

Clarice abaixou o rosto, rindo. Chico apenas analisou a dupla, coçando a cabeça e percebendo algo escapando pelas entrelinhas daqueles dois amigos. Talvez não estivesse vendo coisas, como suspeitara alguns dias atrás. 

— Precisa de ajuda, doutora? — o caseiro propôs, ao ver que a veterinária finalmente finalizara o preparo da vacina, encaixando a agulha na seringa.

— Eu agradeceria muito se vocês ajudassem — ela respondeu, olhando para os dois homens. — Fausto é um bom menino, mas é melhor não arriscar.

Com isso, o caseiro se precipitou para segurar o tronco do animal e Lysandre fez o mesmo com a cabeça. Mesmo com a sutileza de Clarice ao aproximar-se, Fausto começou a se agitar, com a situação estranha que se formava ao seu redor. Para a alegria dos três, a vacina conseguiu ser dada sem mais problemas. Exceto por um bezerro mal humorado no canto da baía, que os olhava como se se sentisse traído.

— Vai passar — Clarice disse, deixando uma dúvida se comunicava-se com Fausto ou com os dois homens.

— Gostaria de ficar para o café? — Lysandre voltou a se manifestar finalmente, finalizado todo o trabalho no curral. 

Fechando a porteira da baía, os três começaram a deixar o local juntos. 

— Não vou poder ficar — a veterinária respondeu e o trio alcançou o lado de fora, sendo recepcionados por um ventinho gelado, que castigaria qualquer um que estivesse sem blusa de mangas compridas. — Vou ir com a minha tia à vila. Vamos pintar a fachada da casa e precisamos de tinta.

Levando em consideração como a tinta branca da fachada da casa das Guimarães estava gasta, era mais do que na hora. Passado todo o calor dos meses anteriores, Marina finalmente propusera a atividade para a sobrinha.

— Se vocês precisarem de ajuda, é só chamar — Chico se ofereceu de pronto. — Uma mão a mais sempre é bom, né? 

— Também gostaria de ajudá-las — Lysandre completou. — Assim o trabalho terminará ainda mais rápido.

— Que prestativos! — Clarice exclamou, retirando as luvas descartáveis das mãos e enrolando-as numa bolinha uma na outra, deixando-as na caixa com agulha e seringa, pronta para descartar quando pudesse. — Vamos começar amanhã depois do almoço, é só aparecer por lá.

— Estaremos lá — Lysandre respondeu, olhando para o caseiro, que confirmou com a cabeça.

— Se quiser eu te acompanho até a porteira, doutora — Chico propôs e os dois começaram a se afastar do fazendeiro.

— Já disse que pode me chamar só de Clarice, Chico! — a veterinária fingiu-se de exasperada, conseguindo risos do amigo ao longe. — Tchau, Lys — ela se despediu com um aceno alguns metros distantes.

Lysandre desejou por mais alguns minutos de conversa com a veterinária. Como fora a estadia na capital? O casamento? Tudo ocorrera bem? Estava melhor da garganta? Pena não poder apreciar alguns minutos mais de sua companhia, mas exultante de saber que Clarice estava de volta à sua rotina. A grande questão era: ainda tinha uma rotina? Com as mudanças em seus horários, passava a acreditar que não.

O clima do dia seguinte imitava o do anterior, com o céu limpo, o sol lançando raios frios sobre o solo e um vento castigando qualquer um que se atravesse a caminhar sem um agasalho. Chico era um desses, vestido apenas em mangas de uma camisa velha e desbotada, do que outrora fora marrom.

Lysandre também não estava muito distante, com uma camisa de malha puída sobre a camiseta e um jeans velho. Como seria inevitável se sujar durante o trabalho da pintura da fachada da casa das Guimarães, fizeram a melhor escolha de vestuário.

Após os pouquíssimos minutos de caminhada que separavam as propriedades, Lysandre abriu a porteira e os dois homens entraram. Chico acenou ao longe para tia e sobrinha, que não o viram, distraídas em preparar as tintas, rolos e pincéis para o trabalho.

Passado o chiqueiro e a baía de Godofredo, o cavalo, Clarice acenou para a dupla, finalmente enxergando-os. Marina ergueu-se e cumprimentou o fazendeiro e o caseiro com um aperto de mão e uma expressão simpática.

— Clarice me disse que vocês ofereceram ajuda ontem, muito obrigada — a mulher agradeceu, pegando uma das latas de tinta. Chico ficou com a outra e sobrou para os mais jovens carregar os rolos e pincéis. — Como andam as coisas por lá? Faz tempo desde a última vez que eu te vi — Marina puxou assunto com Chico, deixando os outros dois mais para trás.

Apesar de reservada e de não muitas palavras, a filha caçula de dona Gleice encontrou um bom papo com Chico, que sabia muito bem como conduzir uma conversa, encontrando tópicos em assunto desde o clima a novidades da vila e a música de Almir Sater que tocava no radinho de pilha que deixaram próximo à porta da frente. O caseiro nunca se separava de um de seus companheiros mais fiéis.

Com Chico e Marina responsáveis pela pintura da parte da frente, onde o piso da varanda estava forrado por folhas de jornais, Clarice e Lysandre ocuparam-se de uma das paredes laterais. Enquanto ele usava o rolo, a veterinária pegou um dos pincéis.

— É meio injusto você pegar o rolo pra pintar — ela comentou, fazendo movimentos de sobe e desce com o pincel, colorindo um quadrado de parede com a tinta verde mar.

— Por quê? — Lysandre questionou quase de modo automático, os olhos coloridos fixos na parte que pintava, próxima à beirada do telhado.

— Porque você já é alto e alcança a parte de cima da parede sem o rolo. Já eu só consigo até um pouco pra cima da janela. — Apontou com a cabeça para a janela fechada por dentro. Na cozinha, de onde podia-se ver pela abertura, dona Gleice preparava um bolo e café para os trabalhadores do lado de fora. Mesmo que fosse pouco depois das duas da tarde. — Não dá pra ir muito longe com esse pincel. — Para ilustrar, a moça colocou-se na ponta dos pés e ergueu o braço, pintando uma parte ligeiramente acima da janela.

A veterinária não conseguiu colorir muito e logo desistiu, não aguentando ficar mais do que certo tempo na mesma posição sem cansar o braço. Quase para provocar, Lysandre passou o rolo justamente onde Clarice tentara pintar, cobrindo de verde o que era branco.

— Abusado — ela reclamou, fazendo uma careta de brincadeira.

— Podemos trocar, se quiser — ele ofereceu.

— Precisa não — Clarice disse, voltando a pintar a parte debaixo da janela. — Vou pintar o rodapé, que é o que dá pra fazer com o meu tamanho.

— Você não é tão baixa assim — Lysandre pontuou e Clarice apenas riu, abaixando-se para fazer o trabalho melhor.

— Sarou da gripe? — a veterinária questionou, mudando de assunto.

— Ainda tusso de vez em quando, mas estou melhor, obrigado — o fazendeiro disse, olhando para baixo e tomando o cuidado para não esbarrar na amiga. Querendo não atrapalhar, foi pintar mais para o final da parede. — E você? Lembro que reclamava da garganta.

— Ih, melhorei faz tempo — Clarice respondeu, mantendo os olhos no ponto que coloria, porém, não deixou de observar o amigo pelo canto de olho.

Começando a sentir calor pelo trabalho — apesar do vento frio que ainda soprava por ali —, Lysandre retirou a camisa de malha que cobria a camiseta cinza, amarrando-a na cintura e deixando desnudos os braços. Clarice acabou ignorando um pouco o trabalho, dando várias demãos sobre o mesmo ponto. Era ligeiramente hipnotizante perceber como os músculos do fazendeiro se movimentavam com o vai e vem que fazia com o rolo de pintura. Também estavam mais bronzeados do que se lembrava. O brilho que sua pele foi tomando com o tempo combinava mais com ele, a veterinária pontuou para si.

— E o casamento? — Lysandre retomou um diálogo repentinamente, pegando Clarice de surpresa, que estava mais ocupada em observá-lo do que na pintura em si.

Apoiando o peso sobre os calcanhares, desequilibrou-se, tendo que apoiar a mão sobre a grama para equilibrar-se. Não fora tão sutil em assim em disfarçar.

— Foi lindo! — ela exclamou, sendo simplista para descrever a cerimônia. — E a festa que teve depois… — Riu com as lembranças, principalmente a da ressaca que teve no dia seguinte. — Tem um monte de foto e vídeo, se quiser eu te mostro depois. — Lysandre apenas assentiu em confirmação, voltando a aproximar-se da veterinária para pintar mais perto da janela. — Agora a gente tem internet, né? Me sentia uma eremita sem ela. — Clarice riu com o próprio comentário.

— Não sabia que sentia tanta falta dela assim — o fazendeiro respondeu e Clarice se levantou, pronta para usar o pincel em um ponto mais para cima. Após esticar as costas, volveu o olhar para cima, vendo que o fazendeiro a observava de canto de olho.

— É que eu me sinto meio isolada do mundo, sabe? — Ela se afastou um pouco, indo colorir mais para perto do fim da parede, onde nem Lysandre nem ela pintaram. — Você não sente que é sempre o último a saber das notícias?

— Ainda temos a televisão — o fazendeiro respondeu, referindo-se ao telejornal que poucas vezes via. No horário do noticiário, normalmente ocupava-se com as composições que não saíam do lugar. Para sua sorte, considerava que este era um fato que começava a mudar aos poucos. Além de completar uma letra nos últimos dias, tinha a sombra de outra em mente.

— Não é nem isso. Mas as notícias das pessoas que a gente conhece, sabe? A não ser que eles façam algo digno de aparecer no jornal, a gente não sabe o que tá acontecendo com eles — ela explicou. — Me sinto a última a saber das coisas.

Lysandre apenas assentiu, preferindo apenas ouvi-la enquanto pintava a parede. Começava a se aproximar da veterinária novamente. 

Não tinha muito o que acrescentar na conversa, afinal, mesmo com  internet, mal a usava. Talvez o isolamento fosse opcional. A grande pergunta era: por quê? Talvez ele soubesse a resposta, preferindo ignorá-la. 

No dia seguinte a instalação da internet, Lysandre entrara no seu Facebook, abandonado havia mais de um ano. O algoritmo do site, faceiro como era, bombardeou-o com imagens e postagens de seus antigos colegas de escola e conhecidos. Vários na faculdade, um outro se casando e com uma criança a caminho, e alguns poucos financeiramente bem, viajando para algum lugar com imagens dignas de serem postadas no Instagram e de fazer inveja para qualquer um. Lysandre não queria admitir, mas este fora algo que ele próprio sentira. Não que desejasse mal para eles, muito pelo contrário. Apenas era deprimente pensar que estava parado no mesmo lugar havia tanto tempo. E sem pretensões de sair dali. 

Porém, era seu destino, a missão da qual ele próprio se incumbira quando resolvera se mudar para a fazenda. Logo, sabendo que isso lhe faria mal, não entrou mais nas redes sociais. Quanto mais longe do mundo, melhor.

Não querendo transformar aquela conversa leve em algo pesado, Lysandre manteve esses pensamentos apenas para si, em um intervalo que durou segundos. Desejava, de fato, compartilhar do rio de suas angústias com alguém, e Clarice era uma das únicas pessoas que confiaria para isso, entretanto, não queria sobrecarregar ninguém com o que se passava dentro de si. Era pesado demais. Até para ele.

— Vocês tão aí ainda? — Marina apareceu de repente, vinda da frente da casa e carregando na mão um rolo de pintura, ensopado em tinta verde mar. — Vão ajudar o Chico do outro lado, eu termino aqui — com autoridade, enxotou os dois amigos para a outra lateral da casa.

Balançando a cabeça, ocupou-se ela mesma em pintar o canto da parede. 






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Notas finais do capítulo

Casa Aberta, Scalene: https://youtu.be/XGB_rosENec
Olha só quem voltou pra abrilhantar nossos dias e do Lysandre! Dona Clarice e seu sorriso de luz -q
Pros novos leitores que chegaram essa semana: sejam bem-vindos! Podem pegar suas xícaras de café (thanks ao Lysandre), puxarem suas cadeiras e um papo com essa autora aqui, que quer muito conversar com os leitores ♥
Uma novidade é que agora temos a playlist completa da fic! Aqui: https://www.youtube.com/playlist?list=PLtd2o93Ew-C0fX-M7nBLNfAgid181NuhJ e aqui também: https://open.spotify.com/playlist/0GDPVMgrI3IuJEMD85KWO0
Até mais, povo o/



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