A Herdeira escrita por Nany Nogueira
Heitor desceu contente para o café da manhã, assobiando uma canção. Felipe reparou:
— Está feliz, meu genro?
— Como não poderia estar, meu sogro? Tenho a minha filha de volta e a minha esposa também, que vivia triste a choramingar todos os dias. Minha família é linda e está completa! A vida é boa e eu sou o homem mais feliz desse mundo!
— A minha filha ainda não se levantou? – perguntou Doralice.
— Ainda não, estava cansada, dormia profundamente, tive pena de acordá-la.
— Fez bem.
— E a minha filha?
— Vitória é um anjo! Acordou poucas vezes à noite, dei a mamadeira e logo dormiu, ainda dorme, como a mãe.
— Puxou Anita, que adora dormir – comentou Felipe, rindo.
— Mas, quando bebê tinha ótimos pulmões e pouco sono – recordou-se Doralice – Vitória deve ter puxado ao pai.
— A minha mãe sempre diz que eu fui um bebê calmo e que deu pouco trabalho – contou Heitor.
— Viu? – disse Dora ao marido.
Depois que todos tomaram o café da manhã, Felipe e Heitor foram cavalgar. Dora foi chamar a filha. Anita já havia se levantado e estava pronta para descer. Dora falou:
— A noite ontem foi boa, não é Dona Anita?
Anita corou:
— O que quer dizer?
— Que você deve ter dormido muito bem, já que perdeu a hora do café da manhã.
— Ah – murmurou ela, sem graça.
Dora riu e falou:
— Minha filha, agora você é uma mulher casada, não deve se envergonhar de ter intimidades com o seu marido.
— Como sabe?
— Ora, isso não faz parte do casamento?
— Faz...
— Imaginei que seu marido deveria estar ansioso e ouvi a empolgação de vocês.
Anita ficou ainda mais vermelha. Dora prosseguiu:
— Ainda bem que seu pai já estava dormindo. Deitou e logo dormiu. Ele ficaria imensamente constrangido de ouvir as intimidades da sua princesinha.
— Meu Deus! – disse Anita, tampando o rosto.
— Seu marido estava que era uma felicidade só no café da manhã.
— Heitor não sabe ser discreto...
— Filha, fico feliz que você seja feliz com o seu marido em todos os aspectos. O casamento de vocês foi uma imposição política. Eu tive medo de que não fosse feliz, de que não pudesse amá-lo e passasse a vida presa a ele, a um casamento infeliz.
— Não, mãe. Eu sou feliz. Eu amo o meu marido, como jamais imaginei que fosse possível.
— Que bom, minha filha. Eu vejo nos olhos de Heitor que ele também a ama com todas as forças.
— Mãe, você e o papai ainda se amam com a mesma intensidade do início do casamento?
— Com o tempo, o amor amadurece, fica mais calmo, mas não menos amor. Quando éramos bem jovens, o fogo era maior, embora a gente ainda faça...
— Agora foi a senhora que ficou vermelha – comentou Anita, rindo.
— Eu e seu pai nem esperamos o casamento...
— Nossa! Verdade?
— Sim. Morávamos na mesma casa, seria difícil esperar. Nos primeiros anos de casamento, era um fogo só. Com o tempo, os filhos, as obrigações, o fogo foi diminuindo, mas a chama nunca se apagou. Hoje temos um amor mais maduro, mas ainda somos tão felizes quanto no início do casamento.
— Eu também quero ser feliz assim com o Heitor.
— Será minha filha, tenho certeza.
Vitória acordou chorando e as duas correram para vê-la.
Nos dias seguintes, Açucena e Jesuíno chegaram para conhecer a neta e logo ficaram encantados com ela.
Algum tempo depois, o batizado foi na catedral da Capital de Seráfia do Norte, com todos os familiares presentes, até mesmo aqueles que residem no Brasil. O povo se aglomerava em volta para ver o sacramento.
A pequena foi batizada de Vitória Cristina Alice Aurora Avignon de Toledo Araújo D’ávila.
Na saída da igreja, enquanto o povo aclamava a princesa Vitória, a primeira com o sangue das duas casas reais, Anita viu a bruxa de longe, quando olhou novamente ela havia desaparecido, sentiu um frio na barriga. Não havia contado a ninguém sobre a promessa que ela lhe obrigara a fazer no chalé.
De repente, um tumulto começou a se instalar na Praça em frente à Catedral. Homens encapuzados investiam contra a multidão, tentando chegar até a família real.
Heitor pegou a filha do colo da esposa, puxou Anita pelo braço e correu com elas para os fundos da Catedral. Lá, deram de cara com Augusto Frederico, filho de Rei Augusto e Maria Cesárea.
Heitor pediu:
— Guto, nos ajude a sair daqui.
Para surpresa do casal, Guto apontou uma arma em direção aos dois:
— Acabou! É o fim dos ladrões de trono!
Heitor devolveu a filha para a esposa e se colocou a frente deles, protegendo-as. Guto gargalhou:
— Acha que consegue protege-las assim? Mato primeiro você, depois elas!
Anita disse, chorando:
— Por que está fazendo isso, Guto? Somos a sua família!
— Família que rouba família não é mais família.
— Não roubamos nada! – disse Heitor.
— Não mesmo, querido sobrinho? O trono de Seráfia era meu por direito! Mas, não! Preferiram vocês, jovens, brancos, bonitos, héteros...
— Isso não tem nada a ver – falou Anita.
Vitória começou a chorar e Guto gritou:
— Faz essa praguinha calar a boca antes que eu comece atirando nela!
Anita ninou a filha, aflita. Heitor as abraçou, protegendo-as com o corpo.
Heitor falou:
— Eu não sou branco, sou caboclo do sertão nordestino, tenho sangue de cangaceiro com muito orgulho, do meu falecido avô Herculano, que Deus o tenha.
— Eu sou mulato! Gay! Filho de uma plebeia nordestina!
— O povo nunca te amou e te respeitou menos por causa disso e sua mãe é muito querida por todos – falou Anita.
— Mentira! – gritou Guto, cuspindo de raiva – Nunca me quiseram no trono, eu sou uma vergonha nacional! Têm pena da minha mãe! Meu pai é um banana que nunca lutou por mim, pelos meus interesses, se vendeu para vocês!
Nesse momento, Rei Augusto entrou correndo:
— Meu filho, abaixe a arma, vamos conversar. Você tem raiva de mim, não deles, deixe-os ir, estão com uma bebê inocente e assustada.
— Essa bebê nasceu para me roubar o trono! – gritou Guto.
— Filho, eu peço perdão se te magoei e se não atendi às suas expectativas. Você nunca me disse que fazia questão do trono, nunca se mostrou interessado pelos assuntos do reino...
— Você que nunca se mostrou interessado por mim! Eu não sou o filho homem que você desejou, não é mesmo?
— Eu não tenho preconceitos e você sabe disso, eu te amo da mesma forma que amo a minha filha Açucena.
— Mentira! Açucena é seu orgulho. Ama mais a ela e aos filhos dela que a mim! Ela é mulher, o trono não deve ir aos descendentes dela, mas a mim, que sou homem! Não o mereço por não poder gerar descendentes?
— Não é nada disso, meu filho! Você sabe que fomos obrigados a fazer isso, a guerra, os revoltosos...
— Eu comprei a fidelidade de parte dos revoltosos e quase consegui dar cabo de Rainha Anita, da mãezinha dela e dessa criança chata e chorona! Depois, daria cabo de Heitor também!
Todos se surpreenderam com a confissão de Guto. Ele prosseguiu:
— Depois, eu me autoproclamaria Rei, como me é de direito! Mas, estragaram tudo!
— Você mandou prender a sua mãe também! – falou Rei Augusto irritado.
— Eu não mandei, ela estava no lugar errado, depois mandei soltar. Jamais faria mal a minha mãe, ela é a única pessoa que me ama e me aceita no mundo.
Maria Cesárea entrou:
— Se jamais me faria mal, vai ter que deixar Anita e Heitor irem embora com a pequena Vitória ou terá que atirar em mim antes de atirar neles – colocando-se na frente do casal com a criança.
— Saía daqui, mãe! A senhora não tem nada a ver com isso!
— Eu tenho tudo a ver com isso, eu lhe dei a vida! Não gerei e criei um monstro, tenho certeza disso!
— Eu não sou um monstro, sou um rejeitado!
— Eu nunca o rejeitei, meu filho.
— Mas, o meu pai sim e todo o resto! Ninguém me aceita!
— Seu pai não o rejeitou, nem o resto. Você que não se aceita! Nós te aceitamos e te amamos como é. O trono não é seu de direito, é de direito de Vitória, a única com o sangue de Seráfia do Sul e Seráfia do Norte, só um herdeiro assim poderia pôr fim às guerras de anos que estavam destruindo Seráfia. O trono não é um capricho, é uma responsabilidade. Anita e Heitor não queriam ser governantes, tinham a vida deles no Brasil, foram chamados à responsabilidade e se comprometeram com esse povo sofrido. O espírito compassivo deles os fez reinarem além do título.
— Eu a respeito, minha mãe, mas não concordo. Os três só saem daqui mortos.
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