Surpresa, Yue sentiu a sua temperatura corporal se elevar, enquanto a jóia em suas mãos continuava a ressoar cada vez mais forte. Sem compreender o que estava acontecendo, a garota notou que um formigamento se alastrava por todo o seu corpo. De repente, o poder emanado pelo bracelete parecia invadir a sua mente, e flashes confusos embaralhavam os seus pensamentos. Yue não compreendeu de imediato, mas as visões por ele mostradas existiram num passado distante do Makai, quando os kamaitachi ainda dominavam aquelas terras demoníacas.

Primeiro, ela os viu reinar, depois os viu ruir. Kamaitachi que outrora ostentavam a sua força, agora morriam de forma sanguinária. Inimigos diversos os atacavam sem piedade alguma, assassinando inclusive idosos e crianças. Que o Makai era um mundo hostil, Yue já sabia, porém nada a havia preparado para assistir aquele massacre. 

Foi então que ela o viu. 

 Com o estômago embrulhado, Yue sentiu uma pontada aguda atravessar o seu peito. Os seus batimentos cardíacos se aceleravam na mesma intensidade em que Kurama Youko destruía o clã das doninhas. Ela o assistiu assassinar o líder kamaitachi, decepando-lhe a cabeça para, em seguida, roubar a relíquia que agora estava em suas mãos. 

Yue sentiu um asco profundo e, por um instante, quis jogar fora aquele objeto valioso, como se estivesse banhado de sangue. Sujo e amaldiçoado. Somente quando uma lágrima involuntária escorreu pelo seu rosto, ela rompeu enfim aquela dolorosa conexão. 

Exaurida, quase caiu de joelhos ao chão, notando então que, ao seu redor, inúmeras plantas jaziam imobilizadas no ar. Eram armadilhas preparadas para impedir o roubo do bracelete, no entanto, a força da própria relíquia — agora desperta nas mãos de Yue — foi capaz de deter a estratégia de defesa de Kurama.

A cabeça de Yue latejava como se toda a sua energia vital tivesse sido drenada de seu corpo. Fraca, percebeu então que sua visão estava embaçada, escurecendo lentamente, enquanto a sua pressão caía. Justamente por isso, Yue nem notou que já não estava mais sozinha. Quando percebeu a presença de um youkai, não pôde fazer nada. Ao deparar-se com uma silhueta já conhecida, abriu os lábios em protesto, mas a sua voz falhou em sair de sua boca.

A última coisa que viu antes de desmaiar foi um par de foices se aproximando. 

Em seguida, tudo ficou escuro.

~*~*~

Alheio ao que acontecia em seu apartamento e, munido de seu chicote de rosas, Kurama avançou em direção a Yami. Furioso pelo sequestro de Shiori, precisava fazê-la pagar por usar a sua família de maneira tão covarde. Por sua vez, Hiei, Kuwabara e Yusuke faziam o mesmo com Hiro e Ban, travando um embate fervoroso no local.

— A quem você obedece? — Kurama perguntou ao encurralar a sua oponente. Em seus olhos havia uma frieza ímpar — Quem está por trás de tudo isso?

Sem pretensão de responder, Yami apenas esboçou um sorriso de escárnio, e logo partiu para cima do kitsune com suas lâminas afiadas. Porém, contrariando as suas expectativas, dessa vez ele não recuou. Aproveitando-se da proximidade, ela desferiu então um ataque no pescoço do kitsune, que propositalmente havia se deixado atingir pelo golpe, embora já estivesse preparado para minimizar os danos, evitando-se deixar acertar em pontos letais. Ao conjurar a sua própria espada feita de fortes raízes cortantes e serrilhadas, fincou-a no estômago de Yami, atravessando o seu corpo fatalmente.

Enquanto isso, o tilintar da katana de Hiei ecoava ao se chocar com as foices de Ban. O kamaitachi já havia ouvido falar da agilidade do youkai do fogo, mas,  somente ao lutar contra ele, percebeu que a fama realmente lhe fazia jus. Irritado por não conseguir alcançar o alvo, falhou ao escapar de seus contra-ataques. As chamas negras se espalhavam a cada golpe de Hiei, o lesionando gravemente por toda extensão de seu corpo, de modo que, os seus músculos, já prejudicados pelos irreparáveis danos, não respondiam adequadamente aos seus comandos.

Enfrentando Hiro, Yusuke e Kuwabara também ostentavam a vantagem na batalha, deixando claro que, a união de seus poderes não poderia ser facilmente combatida. Para a surpresa do kamaitachi, Kazuma simplesmente destruía todas as suas lâminas de vento com o auxílio da espada dimensional, ao passo que Yusuke demonstrava o incrível domínio de sua energia demoníaca, utilizando explosões possivelmente mortais para atingi-lo. 

— É com esse poder que está querendo nos vencer? — divertindo-se com a instabilidade emocional de seu adversário, Yusuke o provocava, deixando-o cada vez mais desordenado — Vai ter que fazer melhor do que isso, otário!

Quando a situação parecia totalmente sob controle, e os kamaitachi pareciam estar praticamente derrotados, de repente as circunstâncias inexplicavelmente se inverteram. 

Kurama viu a sua oponente levantar do chão. Apesar de estar praticamente morta, era como se recuperasse toda a energia perdida, ainda que há poucos segundos atrás estivesse agonizando com o ferimento em seu abdômen. Da mesma forma, Hiei — que antes levava evidente superioridade na batalha — enfim foi atingido pelo golpe de Ban. Aparentemente, o youkai havia adquirido uma velocidade muito maior à que já possuía, sobressaindo finalmente naquele luta. Por sua vez, depois de muito se ferir, Hiro conseguiu rebater o Leigan de Yusuke, mandando-o diretamente de volta ao seu dono. Protegendo o rosto, o detetive espiritual surpreendeu-se ao ser engolido pela sua própria energia. Kuwabara, que até então atuava a seu lado, por pouco não foi atingido, tendo que desviar ao se jogar do alto das escadas em que se encontrava. 

— Malditos! Estavam escondendo a sua verdadeira força todo esse tempo?! — Kuwabara perguntou após ver Yusuke sair revoltado dentre os escombros. 

— Não é isso — Kurama retrucou um tanto incerto, recuando ao se aproximar dos amigos — De repente, o youki deles aumentou. Digo, acabou de aumentar. Como se…

Espantado, ele interrompeu abruptamente a fala, compreendendo a situação. 

— É exatamente isso que está pensando — Yami se adiantou, escoltada por Hiro e Ban — Finalmente Shinohara conseguiu o bracelete. Finalmente o tesouro dos kamaitachi retornou para os seus legítimos donos.

— Yue…— catatônico, ele murmurou para si mesmo.

Kurama sentiu o vento gelado que soprava ao seu redor congelar até mesmo as suas vísceras. Recriminando a si mesmo por tê-la deixado desprotegida, o Youko sabia que precisava retornar o quanto antes para a sua casa. Porém, ao perceberem as suas intenções, as doninhas não hesitaram em interceptar os seus planos. Antes que Kurama pudesse sair do depósito, Yami se lançou sobre ele, com o intuito de atrasá-lo ainda mais. 

Os olhos da youkai cintilaram numa coloração amarelada. Naquele momento, um poderoso tornado se formou a partir das nuvens do céu. A ventania atingiu Kurama, Hiei, Yusuke e Kuwabara como microagulhas, perfurando-lhes os vasos sanguíneos de modo a provocar uma hemorragia interna. De maneira cíclica, as rajadas de ventos saíam e entravam em seus corpos com tamanha violência, que tornava o efeito daquele golpe quase paralisante. 

Kurama não se importou com as pontadas excruciantes que contorciam o seu organismo. Focado somente em se livrar daquela situação para resgatar Yue, ele jogou inúmeras sementes no solo, aproveitando da espalhabilidade provocada pelo vento de sua própria adversária. Em seguida, invocou-as fazendo emergir da terra inúmeras raízes que, ao rapidamente se transformarem em árvores, limitaram o campo de visão dos inimigos, ao mesmo tempo em que faziam com que o tornado perdesse a conexão com o relevo. Diminuindo a sua intensidade lentamente, ele se desfez por completo, cessando a movimentação do ar. 

Aborrecida, Yami ensaiou um novo ataque, porém não conseguiu de fato executá-lo. Antes que o fizesse, uma esfera de energia atravessou o seu caminho. Apontando o indicador em sua direção, Yusuke já preparava um novo golpe. Ágil, Hiei também interceptava os movimentos de Ban, conjurando a própria espada de fogo para enfrentá-lo. Por fim, Kuwabara se lançava de qualquer jeito sobre Hiro, segurando-o com o intuito de impedir que o youkai tentasse fazer algo.

— Vai Kurama! — Yusuke gritou, entendendo a urgência do kitsune em sair dali — A gente dá conta deles.

Ele não precisou pensar duas vezes. Apesar de lamentar o fato de deixar os amigos para trás, virou de costas para os seis, colocando Shiori em seus braços. Em seguida, correu o mais depressa que pôde em direção ao seu apartamento, com a esperança de não chegar tarde demais. 

~*~*~

Furioso, Kurama fechou os punhos com força ao chegar em sua casa e perceber que nem Yue, nem o bracelete estavam lá. Desacreditado, ele perdeu a noção de tempo, enquanto tentava traçar um plano para resgatá-los. Porém, completamente enraivecido, os seus nervos lhe traíram, impedindo-o de raciocinar em seu juízo perfeito. Na realidade, ele sentia-se completamente destruído, não por ter perdido a relíquia, mas pela forma amadora com que os seus atos haviam deixado Yue em perigo. Por sua culpa, ela já não estava mais ali.

A verdade o destroçou silenciosamente por dentro, o fazendo remoer todas as decisões que havia tomado até então. E apesar de já ter sentido a familiar energia se aproximando, somente após sentir o toque em seu ombro, o kitsune despertou de seu estupor, virando-se para encarar Yusuke.

— Vocês estão bem? — Kurama perguntou examinando rapidamente os estragos existentes em cada um deles — E os kamaitachi?

— Simplesmente abandonaram a luta, mas não foi porque estavam perdendo. Estávamos equiparados, mas eles nos disseram que já tinham tudo que precisavam. Por isso, não tinham mais nada pra fazer aqui. Levaram Yue, não é?

Kurama assentiu em silêncio.

— Que porcaria! Como foi que ficaram tão poderosos de repente?! — Kuwabara perguntou indignado — Será que conseguiram recuperar o bracelete da floresta sangrenta?!

— Floresta sangrenta? — curioso, Hiei indagou.

— Sim, foi lá que o Kurama o escondeu.

— Ninguém entra na Floresta Sangrenta — Hiei rebateu — O que está dizendo é uma estupidez.

— Escuta aqui, Hiei — Kuwabara elevou o tom de voz, já perdendo a paciência — Você acabou de chegar, então não sabe de nada. Foi o próprio Kurama que roubou a relíquia dos kamaitachi! E ele nos disse que deixou lá! 

— Eu já sei de tudo isso — Hiei o respondeu, antes de se voltar para o kitsune em um tom provocativo — Pelo visto andou mentindo bastante, não é, Kurama? 

— Ora seu…— Kuwabara rangeu os dentes, ameaçando-o com o olhar.

— Hiei está certo — Kurama retrucou, descontente — Não foi da floresta sangrenta que eles a pegaram. Eu menti pra vocês. Faz tempo que fui buscar o bracelete no Makai e o deixei aqui em casa comigo. Assumo a responsabilidade pelo que houve. 

Atônitos, Yusuke e Kuwabara o encaravam boquiabertos. Por alguns instantes, a quietude tomou conta do local, fazendo a tensão pesar sobre o ambiente.

— Por que você fez isso, Kurama? Mentir pra nós? Não é do seu feitio! — chateado, Kazuma rompeu o silêncio, recriminando o kitsune — Até entendo que tenha algum motivo pra não entregar o bracelete ao Koenma, mas mentir até mesmo pra nós?! Por quê?!

— Não pretendo inventar desculpas para me justificar. Sei que falhei com vocês. Fiz isso porque achei que no Reikai a relíquia não estaria a salvo. Achei que seria capaz de dar conta de tudo sozinho. Eu me enganei. Sinto muito.

— Quer saber? Isso não me importa — Yusuke retrucou — Você teve os seus motivos pra fazer o que fez e eu não sou ninguém pra te julgar. O que me preocupa agora é que levaram Yue de refém. Precisamos ir atrás dela, Kurama. 

— Ela não é uma refém — mais uma vez, Hiei discordou — Você já sabia da verdade, Kurama? 

— Não. Disso eu não tinha ideia. Só agora me dei conta de quem ela realmente é. Mas não entendo como é possível. Eu a investiguei várias vezes e nunca houve nenhum indício que me fizesse desconfiar. O reiki dela era absolutamente comum. Fraco e trivial.

— Foi manipulado por um poderoso youkai para parecer o de uma simples humana. Ela é quase uma cobaia da feitiçaria do Makai. Todo o seu organismo, a sua aparência e a sua energia foram modificados com o intuito de torná-la idêntica a um humano. Você nunca iria perceber.

— Do que vocês estão falando?! — confuso, o detetive espiritual perguntou. 

— O bracelete é uma relíquia extremamente poderosa, mas ele só funciona com os kamaitachi. Ninguém, além deles mesmos, poderia usá-la. Na realidade, somente alguém da realeza do Clã kamaitachi é capaz de despertar os verdadeiros poderes da jóia. Eu estava suprimindo a energia de Yue desde o dia em que a resgatamos, tanto que até hoje nenhum desses youkais a tinha encontrado aqui em casa. Como eu tinha dito, eles jamais poderiam detectar a sua presença. 

— Ainda não entendi. O que está querendo dizer?

— Como eles a encontraram aqui, Yusuke? Algo aconteceu pra que um deles conseguisse perceber a sua presença. Eu notei que o bracelete ressoava perto de Yue, mas eu ainda não tinha entendido o porquê. Todo esse tempo eu achei que era pela presença dos kamaitachi na cidade, mas na realidade ele estava ressoando por culpa dela. Reagindo à presença dela. Tenho certeza que Yue o encontrou no meu escritório e isso despertou a sua verdadeira identidade. A energia espiritual dela foi substituída por energia demoníaca.

— Pera aí...está querendo dizer que ela também é um youkai?!

— Não — Hiei se adiantou — Ele está dizendo que ela é uma kamaitachi.