Deuses de carne e osso escrita por Luiz Henrique


Capítulo 2
UM - Kanna




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Era dia de comemoração na capital das Ilhas de Sunan. Um grupo de homens e mulheres de pele escura e cabelos crespos, vestindo tangas e saias de palha, estava reunido na praia, dançando em completa sincronia com o rufar dos tambores e o assovio das gaitas sendo tocadas.

— Um momento, por favor! — a prefeita Veve pediu, erguendo as mãos cheias de cicatrizes — Vocês devem estar se perguntando por que convoquei essa celebração. Confirmando as suspeitas de nosso conselheiro espiritual, Simbo, meu filho mais jovem demonstrou carregar em seu corpo, o poder do Sol!

O garoto deu um passo à frente, o que provocou olhares incertos da multidão. Assim como a mãe, ele tinha madeixas douradas que criavam um contraste interessante com a compleição melaninada, mas as semelhanças entre os dois terminavam aí. Enquanto a mulher era forte e contida, ele era magro e exibia um sorriso confiante nos lábios.

Quando o rapaz fechou os olhos, uma aura de luz o envolveu e se expandiu até a progenitora e todos os outros guerreiros ali presentes, fazendo desaparecer todas as marcas que haviam adquirido em batalha.

— No período em que aguardamos que Kanna desenvolva suas outras habilidades... — prosseguiu a líder, impetuosa — Ele permanecerá conosco e usará seus poderes de cura para fortalecer nossos exércitos!

Nesse momento, o entusiasmo de Kanna esmoreceu. Entretanto, todos pareciam ocupados demais digerindo a novidade para se dar ao trabalho de perceber, apenas o conselheiro espiritual local, se aproximou para perguntar:

— Está tudo bem? — ele sorriu, exibindo uma fileira de dentes, dos quais, apenas um, era composto, inteiramente, de ouro, assim como os colares em seu pescoço.

Kanna assentiu, mas o olhar que dirigia a mãe, que agora estava entretida conversando com o restante dos nativos, era cheio de preocupação.

— Só estou um pouco cansado, por causa do trabalho no cartório.   — ele deu um tapinha na cabeça raspada do amigo, antes de começar a caminhar na direção oposta — É melhor aproveitar o tempo livre para adiantar a papelada. Nos vemos depois, Simbo, quando você não estiver paquerando a minha irmã.

O guia coçou o queixo, sem graça, e esperou até que o rapaz desaparecesse de seu campo de visão para seguir por outro caminho. Ele parou quando encontrou uma mulher, distraída, colhendo carambolas em uma árvore e guardando as frutas em uma cesta.

— Não vi você comemorando com os outros. Sei que não gosta de festas, Yandina, mas foi um evento e tanto!

— Desculpe. — ela se virou para encará-lo, limpou a poeira do vestido e ajeitou alguns fios longos e negros, sob o chapéu de palha — Ainda estou me acostumando com as novidades. Você estava certo sobre essa coisa de forças superiores. Quem diria que o Kanna seria mesmo o escolhido?

Simbo notou que, embora não houvesse ódio em sua voz, havia algum ressentimento.

— Há algo que eu preciso te dizer. — o guia cravou suas pupilas nas da agricultora, o que, imediatamente, a fez se sentir mais calma e ligeiramente sonolenta — Eu vi vocês dois, nos meus sonhos, partindo para bem longe daqui...

— Simbo... — ela sorriu, relutante — Sabe que eu, mais do que ninguém, admiro a sua engenhosidade. Você abandonou uma carreira promissora como terapeuta, para seguir atuando como um homem de fé, onde tem colhido frutos, mesmo com poucos fiéis. Mas você nunca teve controle sobre suas visões noturnas. Não seria sensato...

Simbo a abraçou.

Embora fossem recorrentes os comentários sobre sua personalidade excêntrica e ostentadora, Yandina não conseguia deixar de vê-lo como alguém em quem poderia confiar. Era um homem de boa índole, ela sempre acreditou nisso, mas o gesto a fez perceber a gravidade de suas palavras.

Após um segundo de hesitação, Yandina retribuiu.

—Você será parte de algo grandioso. — afirmou o homem, afundando o rosto em seus ombros.

Depois que se afastaram, a agricultora avançou até um grande prédio branco, rodeado por grama.  Quando chegou mais perto, notou, com alguma surpresa, que os portões de metal estavam fechados.

Imaginou que Kanna notaria sua presença, mesmo parado de costas, com um copo de bebidas nas mãos, mas ele permaneceu impassível.

— Veja só quem decidiu aparecer. — o rapaz alfinetou.

— Como você está se sentindo com essa história toda? — ela chegou mais perto. Lado a lado, os dois tinham praticamente a mesma altura, ainda que Yandina tivesse nascido quatro anos antes — Deve ser incrível ter poderes divinos!

— Eu nunca acreditei muito nessas coisas... — Kanna passou a língua pelos dentes — mas acho que posso começar a me acostumar.

— Então, você se sente realizado? — perguntou a irmã, cruzando os braços sobre o peito.

— Eu... — ele desviou o olhar, para além das colinas, onde as nuvens adquiriam uma coloração alaranjada com o cair do dia — Simbo pediu pra você falar comigo, não é?

Yandina recuou.

— O quê? É claro que não!

O tabelião revirou os olhos.

— Já faz algum tempo que esse pensamento surgiu na minha cabeça. Preciso encontrar a Lua! — ele confessou, como se fosse algo trivial — Mas a mãe tem outros planos, ela quer que eu fique aqui na ilha e eu...não quero decepcioná-la.

O vento soprou mais forte, espiralando ao redor de seus ouvidos.

— Isso é sério? — Yandina prendeu a respiração — Veve passou anos fazendo da nossa vida um inferno desde que o papai morreu. E você está em dúvida se deve buscar seu destino divino ou deixá-la magoada?

— Ela estava de luto, sofrendo! — Kanna cerrou os dentes.

Eu estava sofrendo! — os lábios dela tremeram — As coisas foram muito mais difíceis pra mim! Você e Veve passavam o dia lendo juntos, mas ela me ensinou a brigar, contra a minha vontade!

O rapaz arqueou as sobrancelhas

— É isso o que você pensa? Pois eu acho que você só está com inveja!

— Oh, claro! E você está com medo. Não tem coragem de enfrentá-la!

Ele apertou, com mais força, o copo que estava segurando.

— Só me deixe em paz. Tudo bem?

A mulher girou os calcanhares e obedeceu.

Em casa, a situação não progrediu. Quando Kanna chegou, exalando cheiro de álcool e tropeçando nos próprios pés, Yandina não se deu ao trabalho de guiá-lo até o quarto, onde dormiu por horas, até a mãe aparecer. Na hora do jantar, a primogênita não se sentou com os familiares. Permaneceu no quarto, sozinha, em completo silêncio.

— Parece que você aproveitou bem o dia. — Veve disse ao filho.

— Desculpe. — ele respondeu, com a voz arrastada — Acho que exagerei na dose.

 A guerreira sorriu.

— Tudo bem. Você ainda é jovem, merece se divertir.

Yandina se concentrou para ouvir o que era dito no outro lado das paredes.

— Mãe...

— Sim?

— Eu acho que...eu tenho uma missão fora daqui. — mirou os próprios pés — Eu preciso encontrar a Lua.

Veve largou os talheres sobre o prato, o que gerou um ruído metálico que ecoou por toda a cozinha.

— Sabe que estivemos passando por dificuldades, desde que seu pai morreu. Agora que estamos conseguindo nos recompor, você pretende ir embora?

— Papai trabalhava no campo o dia todo e acabou se acidentando com seu trator. — ele justificou, quase tão baixo quanto um sussurro — Não tínhamos como prever...

— Saiba que eu não concordo com a sua decisão!

Ela ficou de pé e se recolheu, para seus aposentos.

Kanna afundou o rosto nas mãos, e quase no mesmo segundo, sentiu um toque caloroso em seu ombro. A irmã não disse quaisquer palavras de conforto, mas ficou ao lado dele até que terminasse sua refeição.

De madrugada, Yandina se levantou da cama primeiro, juntou todas as suas economias e algumas peças de roupa em uma mochila, e pediu para que o caçula fizesse o mesmo.

— Você tem certeza de que quer fazer isso?

Ele assentiu.

Havia uma lancha, com suprimentos, esperando-os na margem da praia. Simbo havia preparado tudo, Kanna lembraria de agradecê-lo quando se encontrassem novamente.

— Acha que, um dia, a mamãe vai conseguir nos perdoar?

— Quem sabe? — ela se sentou de frente para o volante — Por onde começamos?

— Nós deveríamos... — o garoto ficou surpreso por ter a resposta — Continuar em linha reta!

O veículo ganhou velocidade e desapareceu, como um borrão, na imensidão azul.


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