Deuses de carne e osso escrita por Luiz Henrique


Capítulo 1
UM - Kalik


Notas iniciais do capítulo

Obrigado por ter dado uma chance á história! :D
Espero que gostem!



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Em uma manhã qualquer, Nayeli acordou feliz. As têmporas latejavam, os pelos estavam arrepiados e o coração batia tão forte, que parecia capaz de atravessar o peito.

— Você entende o que isso quer dizer? — ela perguntou para o marido algum tempo depois, enquanto tentava alcançar uma fita vermelha na prateleira mais alta do armário.

Áquila, que tinha a pele oliva e cabelos grisalhos como os seus, girou o pulso e o tecido flutuou, graciosamente, até as mãos da mulher.  

— Sabe que essa não é minha especialidade. — ele disse, afundando as costas largas no colchão da cama que compartilhavam— Se fosse, eu não seria alfaiate...

— O Deus-Sol está voltando!

A sacerdotisa sorriu, enquanto seus dedos trançavam as madeixas com o cetim. O homem se levantou em silêncio e assim permaneceu durante um instante, como se estivesse pensando em uma resposta apropriada.

—Você sabe como são as pessoas dessa cidade, querida. Ninguém tem fé como você.

— Eu sei. — Nayeli se virou de costas, o que fez o vestido florido voltear no corpo robusto — Tentei contatar as autoridades para anunciar a novidade, mas todos se recusaram a me ouvir. Eu não queria envolvê-lo pois sei que também tem suas dúvidas...

Áquila não rebateu. Nayeli saberia se mentisse.

— Mas essa força celestial está mais próxima agora, buscando por mim e eu gostaria que você fosse comigo, para recebê-la! — disse, entrelaçando seus dedos nos dele — Quando foi a última vez que eu errei uma previsão?

— Certo... — suspirou — Vamos torcer para encontrarmos alguma coisa.

— Ótimo! Será um grande evento, eu prometo! — ela o beijou na testa e abotoou sua camisa de poliéster até a gola, para deixá-lo mais apresentável.

O clima estava agradavelmente frio do lado de fora da casa, mas não havia muitas pessoas transitando nas ruas. Algumas crianças brincavam de corda e um casal de adultos sentados próximos, as observava. Após cumprimentar os vizinhos e entrar no jipe com o companheiro, Nayeli os ouviu cochichando algo sobre suas vestes cerimoniais.

— Siga em frente! — disparou.

Áquila ligou o veículo e pisou no acelerador, deixando um rastro de poeira para trás.

A cidade não parecia estar se preparando para algo grandioso naquela tarde. Os operários caminhavam de um lado para o outro, com o mesmo olhar cansado, enquanto acendiam seus charutos e reclamavam com os colegas sobre os ossos do ofício, os vendedores ainda bombardeavam os pedestres com produtos inúteis e o ar permanecia com um cheiro forte de enxofre.

Como se estivesse se contendo desde que saíram, Nayeli soltou uma gargalhada seca.

— Houve momentos em que pensei que talvez...fosse tudo coisa da minha cabeça, como todos diziam. Quando eu era mais jovem, os adultos diziam coisas ruins sobre mim e minha mãe, destruíam nossos artefatos e pintavam palavras horríveis na paredes da nossa casa. Mas agora, tudo está se encaixando...

O alfaiate já havia ouvido aquela história inúmeras vezes. Talvez a esposa a repetisse devido aos problemas de memória que vieram com a idade, talvez precisasse desabafar constantemente, pois aquela lembrança nunca parou de doer.

— Agora vire à direita! — ela ordenou.

Ele entrou em uma avenida. Alguns conhecidos que também estavam fazendo o mesmo trajeto a pé, acenaram para o homem no volante tentando chamar sua atenção, mas Nayeli o censurou com o olhar, indicando que deveriam continuar.

— Então... — Áquila dedilhou o volante — Como vamos reconhecer o deus?

Ela deu de ombros.

— Você não sabe...?

— Não tive um sonho profético. Foi mais como uma...sensação.

— E o que você está sentindo agora?

— Pare o carro. Nós chegamos.

Áquila estacionou no fim de uma colina afastada do centro da cidade, e que por esse mesmo motivo, tinha as propriedades mais baratas. Em um canto que poderia passar despercebido, erguia-se uma construção simples sobre uma fileira de escadas com dois blocos idênticos em cada lado e padrões de ziguezague diversos entalhados na pedra abaixo do telhado, acima de uma porta retangular.

— Nayeli, faz tempo que ninguém visita o seu templo.

— Talvez ele possa ouvir minhas preces...

A sacerdotisa passou pela entrada e ficou de frente para a pequena estatua parada sobre um altar de madeira, com as pernas cruzadas e um ornamento simbólico na cabeça. Ela ergueu as mãos e começou a pedir que a divindade lançasse suas bençãos sobre ela e perdoasse os descrentes.

— Então...agora nós só vamos esperar que ele te encontre? —Áquila recebeu um aceno positivo com a cabeça em resposta e continuou sentado em uma das muitas cadeiras vazias espalhadas pelo cômodo.

Quando o relógio cuco na parede avisou que já havia se passado uma hora desde que chegaram ali, o homem se levantou e começou a caminhar de um lado para o outro, fingindo analisar os detalhes da mobília e do teto, para amenizar a ansiedade.

— Eu vou dar uma volta no quarteirão. Você não quer vir?

Como imaginado, Nayeli o ignorou e prosseguiu com suas orações.

Áquila saiu e ficou fora por cerca de duas horas, quando retornou, a companheira não parecia ter movido sequer um músculo. Ele ofereceu para ela algumas rosquinhas recheadas que havia comprado em um mercado local, mas Nayeli recusou.

— Eu admiro o quanto você é determinada... — comentou, com sinceridade, guardando o doce no pacote, para caso ela mudasse de ideia — Mas você sabe, todo mundo erra as vezes. Nem todos os ternos que eu produzo ficam perfeitos.

— Áquila, não me desconcentre.

Logo, a noite começou a cair e não muito tempo depois, um trovão sacudiu os céus.

— Não gosto de dirigir quando a estrada está molhada. — O alfaiate tocou o ombro da parceira — Vamos embora. Podemos voltar mais tarde...

Nayeli o encarou nos olhos, sentindo o cansaço que emanava de seus ombros.

— Está bem.

Durante a viagem de volta, ela ficou observando a paisagem com um olhar vazio. Áquila tentou desviar sua atenção para alguns de seus problemas triviais do cotidiano, mas ela não demonstrou interesse. A sacerdotisa soltou um longo bocejo e em questão de minutos, embalada pelo som da chuva e do motor do carro, caiu no sono.

Eles estavam abrindo caminho ao lado de uma praia, quando Nayeli despertou e após um instante, gritou para que Áquila pisasse no freio.

— O que...?

Ela apontou para algo estacionado na areia há vários metros de distância.

— Aquilo é...?

— Uma lancha!

Embora não houvesse nada extraordinário no achado, o homem os guiou para mais perto, ao ponto em que podiam diferenciar as conchas enterradas no solo e as folhas dos coqueiros encobertos pela escuridão.

— Tem mais uma aqui. — Ele levantou uma sobrancelha.

Quando pararam de falar, ouviram uma voz distante, que deveria pertencer a um homem no auge dos trinta anos. Ainda que não fosse possível distinguir com clareza as palavras que eram ditas, Nayeli notou que estava irritado, confrontando outra pessoa.

Áquila sussurrou em seu ouvido:

— Você acha que é ele? O Deus-Sol?

A mulher umedeceu os lábios e começou a adentrar a pequena floresta. Áquila sentiu fios de suor molhando seu pescoço, à medida que o som ia se tornando mais audível. Em dado momento, o casal encontrou um tronco largo e se posicionou em suas costas, onde poderiam contemplar a cena de uma distância segura, sem serem vistos.

O homem que ouviram falando estava acompanhado por uma figura feminina, com tranças caindo nos ombros, e sorria de maneira provocativa para o rapaz mais jovem a sua frente, à medida que as palavras escapavam por sua boca.  

Ainda que nenhum deles parecesse pertencer a região, o enunciador se destacava entre os demais, pois não compartilhava do mesmo tom de pele cor de creme e cabelos escuros, e vestia-se de maneira menos informal, com paletó e chapéu, em oposição a seus casacos de lã surrados

— O que vocês fizeram comigo? Não consigo usar meus poderes! — esbravejou o garoto, com os punhos cerrados. Embora tivesse o físico de um lutador, seu nariz estava quebrado e o sangue escorria pelo bigode.

— Aima me fez um grande favor, neutralizando as suas habilidades... — o homem ergueu o chapéu fedora, com seus dedos sujos de vermelho, apenas o bastante para revelar uma juba de cachos castanhos desfeitos — De que outra forma, um simples arqueólogo, como eu, poderia enfrentar a fúria de uma divindade?

Embora não houvesse qualquer sinal de emoção em sua fala, Nayeli engasgou-se, pelo susto.

— Eu não estava esperando por um embate. — disse Áquila — Talvez devêssemos chamar reforços.

Kalik tentou recuar, mas o arqueólogo apontou a palma em sua direção e o chão abaixo de seus pés tornou-se líquido, deixando-o submerso até a cintura. Ele gesticulou, como se tentando extrair algo grandioso de seu interior, mas nada aconteceu.

— Émile... — sua expressão era suplicante — Por favor...

Aima tomou a palavra, desviando a atenção, do crime que estavam prestes a cometer. Sua entonação, frágil e abatida, parecia estranhamente corriqueira.

— O seu potencial é inacreditável. É apenas questão de tempo para que suas habilidades retornem, com força total. Não temos outra escolha.

Sob o olhar frio de seu algoz, o rapaz afundou até o pescoço.

Com todas as forças que ainda tinha, Kalik gritou e implorou por ajuda.

Nesse momento, Nayeli decidiu atender.

Agarrou um galho quebrado e nocauteou o inimigo mais próximo, a atacante desconhecida.

— Não! — Émile mirou a sacerdotisa — Afaste-se dela!

Antes que pudesse contra-atacar, Áquila interveio.

O alfaiate estendeu os braços e seu casaco voou contra o inimigo, envolvendo-o, como uma camisa de força.

Émile se debateu e o tecido mudou de forma, desabando como água, subitamente, atingida pela gravidade.

— Vocês não têm ideia do que estão fazendo! — ele praguejou, tentando ganhar distância da dupla que se aproximava para encurralá-lo.

Nayeli atirou a madeira que empunhava, contra o homem, mas ele se esquivou, antes que pudesse atingir o rosto.

Áquila reuniu suas forças e o traje do inimigo o arremessou contra uma árvore. O peso de seu corpo inconsciente despencando na grama provocou um baque estrondoso.

Livre, Kalik caminhou até os seus salvadores.

— Eu não acredito! Estou vivo!

— Não se preocupe! — disse a mulher, deixando evidentes a felicidade e o alívio em suas feições — Nós sabemos quem é você! Vamos protegê-lo até que possa cumprir a sua missão, seja ela qual for!

— Você...é mesmo divino? — Áquila interrogou, sem saber como usar as palavras.

— Sim. E você, é a guardiã do templo do Sol? — Nayeli fez que sim, sorridente — Tem que me ajudar a encontrá-lo!

Ela piscou.

— Como...?

Kalik prosseguiu, com uma determinação quase palpável.

— É esse o meu destino. O Sol precisa saber que a Lua está buscando por ele!

A sacerdotisa parou de respirar por quase um minuto inteiro, enquanto o grande astro banhava-os com sua luz prateada.


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Notas finais do capítulo

E então o que achou? Diga nos comentários, por favor! ^^



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