Deuses de carne e osso escrita por Luiz Henrique


Capítulo 13
Sete




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Um dirigível vermelho estava sobrevoando o mar, a caminho da terra natal de Abdou, o viajante que havia solicitado a ajuda dos deuses. Os dois rapazes estavam sentados em extremidades opostas, enquanto o militar, ficara responsável por conduzir o veículo.

— Eu nunca estive tão longe da terra antes! — Kanna comentou, apreciando a paisagem, através da janela — Uma máquina dessas deve ter custado uma fortuna.

Abdou sorriu, como quem quer parecer simpático, e alisou o traje cor de musgo.

— Provavelmente. No momento, o governo está direcionando todos os seus recursos para conter as investidas dos rebeldes. Eles estão tentando tomar o controle do país e são capazes de qualquer coisa para atingir seu objetivo.

Kanna arqueou a sobrancelha.

— Não estou aqui para ser usado como um recurso a favor da guerra. Como já havíamos dito, eu e Kalik queremos apenas garantir a segurança das pessoas comuns.

— De fato. —  o homem assentiu, contrariado — É exatamente isso o que quis dizer. Há meses, eles estão aterrorizando nossos civis e destruindo o patrimônio público. Não deveria ser essa a missão dos deuses? Atuar a favor da lei e da moral?

Não houve uma réplica dessa vez, especialmente porque Kanna havia desviado a sua atenção para o garoto sentado à sua frente. Ele parecia estar tendo problemas de sono, pois havia dormido durante quase todo o trajeto até ali, desperto, ainda era difícil dizer se ele estava pensando em alguma coisa.

Seu rosto estava apoiado em uma das mãos, enquanto os olhos negros contemplavam o céu sem nuvens. Quando ele percebeu que estava sendo observado, umedeceu os lábios naturalmente rosados e se voltou para o tabelião, o que fez com que os cabelos lisos sacudissem sobre a testa.

— Ahn, acho que eu não pedi desculpas por ter te atirado contra aquele caminhão, quando nos encontramos pela primeira vez. — Kanna mordiscou a parte interna da bochecha — Quero dizer, você também me atacou com aqueles espinhos, mas a sua mãe disse que estava sendo manipulado...

— Minha...mãe? — Kalik alisou o bigode, atordoado — Nayeli e eu não somos parentes. Na verdade, eu fui deixado em um orfanato, quando era menor.

— Sério? Eu também me afastei da minha família, desde que descobri o meu dom. — o tabelião sorriu, como se estivessem compartilhando triunfos — Talvez tenhamos mais coisas em comum do que imaginamos!

— Você acha?

Quando se deu conta de que poderia ter soado rude, o garoto se retratou:

 — Quero dizer, eu vim de Thulen, uma região com muita neve e poucas pessoas, bem diferente das ilhas de Sunan.

— Como sabe de onde eu vim?

— Eu prestei atenção quando estava dando aquela entrevista. Os repórteres te adoraram!

O pescador se empenhou para esboçar um semblante mais simpático, e Kanna retribuiu.

— Estamos chegando a Ganese. — anunciou Abdou — Vou aterrissar.

A aeronave estava há cinco minutos do solo, quando um grupo de indivíduos com fardas cinzentas, emergiu da penumbra das arvores, que apontavam a entrada da praia. Kalik teve um mal pressentimento, que foi imediatamente confirmado, quando um deles ergueu os braços e a parede do veículo onde estava debruçado, começou a descascar, assumindo um tom estranho de vermelho.

— São eles! — o piloto apertou o volante, tentando conter o nervosismo — Acabaram de corroer um de nossos tanques de hidrogênio.

— Eu vou impedi-los!

Kanna chutou a porta e concentrou todo o seu poder em um único disparo.

No mesmo minuto, uma rajada de luz, com a imponência e a selvageria de um incêndio, atingiu uma fileira de troncos, há poucos metros dos criminosos, lançando fragmentos de madeira e cinzas por todos os lados. 

Faíscas voaram pelos ares e começaram a se elevar, cada vez mais.

Em um lampejo de consciência, Kalik urrou:

— Não!

E então extremidade inferior do veículo explodiu em chamas.

Tão rápido quanto seu raciocínio permitiu, o pescador agarrou os dois acompanhantes e saltou para fora, em queda livre.

Ele conseguiu desviar de uma dúzia de destroços, flutuando com o vento. Assim que, enfim, aterrissaram em segurança, ouviu o estrondo de algo pesado caindo no mar, seguido de uma explosão abafada e o som de água fervendo.

— Você se esqueceu de que também pode voar? — Kalik se concentrou em Kanna, que ainda mantinha um dos braços jogados ao redor de seus ombros.

O tabelião se afastou, quase tropeçando nos próprios pés.

— Desculpe! Foi tudo muito rápido! Sabe, isso é estranho, mas eu acho que meus poderes estão ficando mais fortes, à medida que nos aproximamos.

Kalik levantou a sobrancelha.

— O quê...? Você não deveria ter confiado tanto na sua capacidade.

Kanna franziu o cenho.

Abdou se posicionou entre os dois, apontando para uma tropa de guerreiros, que marchava, furiosamente, em sua direção. O pescador moveu os braços e uma árvore desmoronou diante dos inimigos, bloqueando seu trajeto.

Após um segundo agonizante de espera, um deles saltou sobre o empecilho. Kalik o reconheceu como sendo o líder, responsável por derrubar o seu dirigível. O homem, miúdo e careca, tentou subjugar o pescador com os punhos, mas ele se esquivou com um salto, e invocou cipós que envolveram o corpo do rival.

— Parece que os poderes dele não podem afetar matéria orgânica. — Kanna observou, orgulhoso de si mesmo.

— Assim como Émile. — Kalik ruminou.

Antes que Kanna pudesse redargui-lo, uma onda de choque o atingiu.

O tabelião sequer teve tempo para se recompor da queda, gesticulou com as mãos em um gesto de defesa automático, e um fluxo de energia se expandiu de suas palmas, nocauteando as duas adversárias esguias, que estavam em sua linha de visão.

Abdou havia derrubado um oponente franzino com facilidade, contudo, outro guerreiro, que era alto e robusto como um touro, conseguiu lançá-lo no chão e imobilizá-lo, torcendo um de seus braços sobre as costas.

— Levem-me até o presidente, ou seu amigo sofrerá as consequências! — ameaçou.

Kanna e Kalik se entreolharam, paralisados. 

Antes que pudessem tomar uma atitude, Abdou escapou dos braços do inimigo, tal como se estivesse besuntado em óleo, e o forçou a inconsciência, com um golpe no maxilar.

— Agora vocês entendem? Todas essas pessoas possuem habilidades puramente destrutivas! — afirmou o militar, cheio de ressentimento — É por isso que as autoridades criaram medidas para limitar o uso de seus poderes. Conseguem imaginar quantos habitantes poderiam ser influenciados por esse desejo de devastação?

Os ouvidos de Kalik se atentaram ao ruído metálico de uma lâmina sendo desembainhada e logo em seguida, o ressoar de uma risada ácida e distante.

Quando ele virou o rosto, percebeu que o homem que havia imobilizado, desaparecera.

Abdou cerrou os punhos.

— Precisamos chegar ao gabinete oficial! Eles estão se organizando e ficando cada vez mais agressivos. Nosso líder corre perigo!

O Sol e a Lua agarraram os braços do militar e se impulsionaram para o céu.

O trio atravessou o cerco de vegetação e cruzou o ar, sobre uma extensa rodovia.

 — Eu não sou confiante demais. — Kanna resmungou, como se estivesse há algum tempo, guardando aquelas palavras para si — Treinei muito os meus poderes para conseguir o domínio que tenho hoje.

— Gostaria de ter tido essa possibilidade. — o pescador esboçou um sorriso cínico — Gastei muito tempo pensando em como as coisas seriam diferentes, se eu fosse mais parecido com as outras pessoas...

— Como isso é possível? — Abdou estalou a língua — Você possui uma conexão jamais vista com a natureza, e Kanna então, pode recuperar qualquer enfermidade! Tenho certeza de que o mundo seria um lugar muito melhor se todos fossem como vocês!

O tabelião se inflamou com o elogiou, mas Kalik preferiu não dar atenção.

— Não estamos voando tão alto. Talvez devêssemos ser mais discretos.

— Eu posso camuflar a nossa presença, com uma miragem! — Kanna fechou os olhos, se concentrando, e suas silhuetas bruxulearam — Andei aperfeiçoando esse truque, sei bem o que estou fazendo!

Kalik exalou, entre os dentes.

— Tem certeza disso? Sua atitude demonstra insegurança.

— Como?

— Está tentando se reafirmar! Não consegue lidar com uma única crítica.

— E qual é a sua justificativa para o seu comportamento? Na maior parte do tempo, você está sendo grosseiro com as outras pessoas, ou afastando aqueles que querem ajudá-lo!

— Eu não estou tentando diminuir ninguém! Não atravessei o oceano com minha irmã mais velha ao meu lado, eu viajei sozinho, durante dias, e estou lidando com completos desconhecidos!

— Nós somos uma equipe agora! É por isso que eu estou tentando ser agradável! Do que tem tanto medo?

Kalik apertou as pálpebras.

— Acha difícil lidar comigo? Não se preocupe! Nayeli, Rizvan e todos os outros, estão muito mais interessados em como você se sente!

Abdou engoliu em seco.

Kanna bufou.

— Quer saber? Vamos acabar logo com isso!

Durante o restante de sua travessia, eles perpassaram as nuvens, sem dizer muito.

Em raros momentos, Abdou apontava para o caos que se instalara na cidade, devido aos conflitos entre os rebeldes e os militares. Os civis envolvidos arregalavam os olhos em surpresa, quando se percebiam, subitamente protegidos, por raios de luz ofuscantes e muros de raízes, que pareciam ter surgido do nada.

— Ali está, o gabinete oficial!

A residência do presidente era uma construção ampla, com paredes brancas e polidas, muitas janelas, bandeiras hasteadas no telhado e um par de colunas diante da porta. Em outras circunstâncias, o espaço poderia transmitir um sentimento de profunda paz, se o portão de metal não tivesse sido abruptamente derrubado e corpos de guardas abatidos, estivessem estirados na grama.

Assim que tocaram o solo, Kanna cobriu as vítimas com sua energia curativa.

— Podem ir! Eu já alcanço vocês! — disse o tabelião, se concentrando.

Kalik assentiu, antes de correr para a entrada, com Abdou em seu encalço.

Enquanto percorriam os corredores, o rapaz conseguiu captar vozes desconhecidas, se confrontando, em um cômodo distante.

— Vocês estão apenas confirmando o que todos já sabíamos! — disse o presidente, com as costas na parede — Pessoas com os seus poderes, são perigosas! Jamais estariam aptas para representar os valores da nossa nação!

Apesar da postura imponente, o terno negro que o homem vestia, estava empapado de suor.

— Perigosos? Não seja tolo, deveria ser grato pela maioria de nós estar apenas tentando viver a própria vida. — a guerreira índigo soprou uma mexa dos cabelos curtos, indiferente — O senhor e muitos outros se consideram superiores pela natureza de suas habilidades, mas isso é ridículo! Nós somos o futuro!

O governante tateou os bolsos e encontrou uma caneta. De um segundo para o outro, o objeto se expandiu em suas mãos, se transformando em um bastão improvisado.

Sua inimiga, contudo, não pareceu impressionada. Ao invés de recuar, ela lançou um olhar de canto para uma figura masculina e atarracada, parcialmente escondida nas sombras.

O homem gesticulou com as mãos e a caneta se deteriorou no mesmo instante.

— Vamos acabar logo com isso! — pediu, entediado.

A líder tocou a testa e os móveis, ao seu redor, começaram a tremer.

O presidente foi bruscamente empurrado para trás, por uma onda de poder e toda vez que tentava se reerguer, era atingido de novo, e de novo.

Antes que ele perdesse a consciência, Kalik conteve os movimentos da torturadora, envolvendo-a, quase completamente, em um casulo de musgo. Ela desabou, se contorcendo como um inseto amedrontado.

Abdou correu até o dirigente, sacudindo-o pelos ombros para que continuasse desperto.

— Não desista, senhor Malick! Eu trouxe ajuda! O retorno dos deuses é real!

Há apenas alguns metros, Kalik encarou o homem que estava prestes a enfrentar.

— Pronto para uma revanche?

O pescador ergueu os punhos, mas não teve tempo suficiente para agir. O piso em que estava apoiado, apodreceu e ele afundou no solo, que havia começado a erodir. Com algum esforço, conseguiu retardar o processo, usando a força dos braços.

Contudo, o olhar confiante que o rebelde estava lançando em sua direção, o fez se lembrar de Émile, e de todas as vezes, que havia tentado sufocá-lo em concreto.

Ele sentiu a fauna local reagindo ao seu terror, contra sua vontade. Macacos alegres ficaram apáticos, javalis, confusos, e panteras tão agressivas, que seu rugido pôde ser ouvido há quilômetros de distância.

Foi quando Kanna surgiu.

O tabelião nocauteou o adversário com uma explosão luminosa e agarrou Kalik pelos braços, livrando-o de sua prisão.

— Eu...me descontrolei de novo. — ele balbuciou, se encolhendo sobre si mesmo — Você estava certo, eu não sei lidar com as outras pessoas, não estou pronto para essa responsabilidade.

— Como? Não foi isso que eu quis dizer! — Kanna mordiscou o lábio inferior — Você só precisa melhorar o seu temperamento...

— Eu sei! Me desculpe!

— Mas...eu também preciso melhorar o meu. Tudo o que você apontou, é verdade. Não estamos sendo tratados da mesma forma. Quero dizer, eu também perco o controle dos meus poderes quando estou nervoso!

— Aconteceu muita coisa nessas últimas semanas. Fui abandonado, perseguido e manipulado durante dias! — ele parou, como se para tomar fôlego...ou coragem — Sinto muito. Eu...acho que não estou bem.

Kanna segurou sua mão.

E mesmo quando ficaram de pé, ele não desfez o gesto.

O Sol e a Lua não trocaram palavras, mas chegaram a um acordo mútuo.

Ambos desejavam que aquela guerra parasse, e foi o que aconteceu.

Seu poder se alastrou por todo o país, e os rebeldes e militares, envolvidos em batalhas que colocavam em risco, a vida das pessoas comuns, ficaram, repentinamente, imóveis, subjugados pela própria gravidade.

— Eu devia ter dado mais atenção ao que você disse, mais cedo... — Kalik confessou, embaraçado — Ficamos mais fortes, juntos!

— Nós ainda temos muitas missões pela frente! Nayeli e Yandina disseram que receberam outros pedidos e algumas empresas ofereceram patrocínio para financiar as nossas viagens, se tudo corresse bem...  

— Oh... — Kalik abstraiu o que considerava menos relevante — Então é por isso que os deuses...é por isso que nós viemos a terra? Para ajudar àqueles que mais precisam?

Abdou tocou as costas de Malik, o ajudando a se levantar.

— Muito obrigado, rapazes! Vocês salvaram a minha vida! — disse o presidente, esboçando um sorriso difícil — Se houver algo que eu possa fazer para retribuir...

Kanna o olhou de cima, permitindo que seus pensamentos dessem lugar as palavras.

— Você é a autoridade máxima nesse país! — ele disse — Se acredita mesmo em nossa divindade, proponha um acordo de cessar-fogo! Dê um fim a esse massacre!

Abdou se curvou, respeitosamente.

O presidente fez o mesmo.

— Que seja feita a sua vontade!

O pescador observou o amigo, com atenção, como se avaliasse o peso de suas ações.

Após um instante de contemplação, Kalik deu um passo à frente e se posicionou ao seu lado.


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