Tô Nem Aí escrita por Youth


Capítulo 1
001. Um Vampiro vai ao Médico




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O médico de olhos cinzentos e barba grisalha pediu para que Alexei inspirasse e expirasse de maneira profunda e lenta, enquanto analisava seus batimentos e a deslocação do ar nas vias pelo estetoscópio. Observou sua postura, sua língua, seus olhos e até seus reflexos.

Estavam frente a frente, corridos todos os exames, o rapaz de pele pálida e olhos lilases, batendo os pés ansioso pela resposta do doutor, que fazia algumas anotações na ficha de Alex.

− Então... é muito grave? – Alexei questionou, impaciente com a demora. Os lábios vermelhos eram mordiscados impulsivamente, enquanto arranhava a própria perna e sentia um labor no estômago. O médico encarou o rapaz, um olhar sério e condensado. Alexei despencou e começou a chorar – Ai meu deus... é muito grave... Eu vou morrer?? Eu estou morrendo? É velhice? – o médico suspirou e coçou os olhos.

− Alexei... – ele tentou dizer, mas foi interrompido por um múrmuro choroso. – Como eu ia dizendo... Você...

− Estou morrendo! – Alexei interrompeu. O médico bufou mais forte. – Desculpe.

− Não, você não está morrendo – ele afirmou irritado – Você é imortal! – disse como se fosse algo extremamente óbvio (E era). Alexei mexeu a cabeça em concordância, mas ainda desconfiado da moléstia que o arrastava para o consultório. – Sua saúde está perfeita... Só notei uma grande falta de ferro no sangue... – Alexei já se preparava para se desesperar quando o médico interveio − ... o que é normal, pois você é um vampiro. O que aconteceu de verdade, Alexei? Você parece estar vendendo saúde e ainda sim acha que está doente...

Alexei se ajeitou na própria cadeira, coçou os olhos e arrumou a gola role do moletom carmesim. Levou as mãos à cabeça e coçou os cabelos, meio tímido e envergonhado.

− É que... Sabe... – ele procurava as melhores palavras – Eu estou tão velho e... Eu não sei... Poderia morrer a qualquer momento... – respondeu timidamente. O médico encarou Alexei com um olhar julgador explícito. O vampiro coraria de vergonha se seu sangue ficasse quente.

− Esse medo repentino da morte tem a ver com o término com o Dominic? – o médico questionou desconfiado. Os olhos de Alexei quase saltaram de vergonha.

− É claro que não! – ele respondeu sem ter certeza das próprias respostas. Afinal, teria ou não? Dominic e Alexei eram um casal perfeito há mais de cinco décadas e um término tão súbito tinha suas influências sentimentais nas inseguranças, nos medos e paranoias, ainda mais quando o motivo fora tão traumático. Domi era o alicerce de Alex. Era o que impedia que surtasse de vez e deixasse a ansiedade consumir seu ser e voltasse a ser uma fera desalmada que colecionava cadáveres de vítimas humanas no porão. Era o motivo da eternidade de Alexei. Mas ainda assim era um babaca. – Eu acho... – corrigiu a própria afirmação hesitante. O médico suspirou.

− Alexei... Eu não sou a melhor pessoa para te ajudar no momento – ele sentenciou sem muita embromação. Alex encarou o médico esperando algum adento, mas nada ele disse.

− Só isso? – questionou meio irritado e incrédulo.

− Eu não entendo de sentimentos – o médico disse sem nenhum rodeio, enquanto se levantava e guardava a ficha de Alexei numa estante – Muito menos sentimentos de vampiros. – Alexei revirou os olhos, irritado, se levantou e encarou o médico.

− Mas eu não estou bem – ele disse – Não pode, sabe, me receitar alguma coisa? – suplicou desesperado.

− Claro – respondeu – Terapia – e saiu pela porta do consultório, deixando Alexei sozinho com os próprios pensamentos, ansiedades, paranoias e um celular que não parava de tocar sequer um segundo.

− Oi Teresa – ele disse atendendo a ligação da amiga e colega de trabalho.

− Você saiu muito cedo, nem assou os pãezinhos da primeira leva... O que houve? – ela questionou, a voz denunciava que a garota mastigava enquanto conversava. Alexei pegou a mochila do sofá do médico e atravessou a porta a caminho da rua.

− Vim ao médico – afirmou, enquanto colocava óculos para se proteger do sol e atravessava a rua para chegar ao ponto de ônibus.

− Meu deus, tá tudo bem? – ela questionou assustada.

− Ele disse que eu vou morrer – ele brincou.

− Mas você é imortal!

− Ele disse isso também – respondeu – Mas eu só sinto que só uma dessas coisas é verdade, sabe? Ai, não sei... Me sinto tão...

− Frágil?

− É... Algo assim – e suspirou. A amiga xingou alguma coisa em espanhol e suspirou.

− Derrubaram chocolate no chão de novo – informou – Minha tia uma vez ficou meio assim depois que o cachorro dela, Pojito, morreu – contou. Alexei sinalizou para que o ônibus parasse, entrou e se sentou no fundo, enquanto ouvia músicas no fone de ouvido.

− É sério? E o que aconteceu com ela?

− Morreu também, de tristeza – ela disse com toda frieza de um bloco de gelo. Alexei suspirou – Mas ela não era vampira, então acho que você não corre esse risco.

− Não sei... Talvez eu morra de uma maneira diferente e não perceba – respondeu entristecido – Tô com saudades dele... – Teresa bufou irritada.

− Meu deus, migo, Alexei... – ela falou incrédula e irritada – Você não pode se entregar tão fácil assim, cara...

− Sim eu sei, mas... – suspirou – Foram cinquenta anos juntos, Teresa, não se esquece assim de uma semana para outra... E, sabe, se eu não encontrar mais ninguém? Se eu viver sozinho para a eternidade? Sabe, nesse caso eu preferia estar doente e morrer.

− Eu sei que vocês estão juntos desde, sei lá, a era jurássica, mas você mesmo disse que não era feliz com ele... – ela sentenciou – Ok! Foram cinquenta fucking anos! Muitos anos, admito, vocês viveram mais que a democracia no Brasil, mas não adianta ter quantidade se não tiver qualidade... Minha tia Ruanita sempre diz: Não adianta você ter vinte paejas se você só precisa de três e as dezessete estão estragadas! – Alexei ficou confuso com o ditado.

− O que? – foi tudo que ele soube dizer, com um nó nos pensamentos.

− Nada. Ela não era a melhor pessoa nos ditados... mas, enfim, me ouça: Não adianta viver cinquenta anos, se você não foi feliz verdadeiramente nem sequer em um – e aquilo doeu mais do que o dia que cortou o dedo com um lápis de ponta afiada. Ela estava certa. Não havia sido a primeira vez que Dominic o traiu e quiçá seria a última, sem dizer das demais mágoas, decepções e feridas que ele teve nessas décadas e esqueceu em nome de um relacionamento fajuto e fadado a eternidade do fim. Houve um silêncio nos dois lados da linha. Alexei suspirou profundamente. – Alex... você ainda tem a eternidade. Isso é muito mais do que eu poderia desejar e muito mais do que você precisa para ser feliz. Você não vai morrer. Garoto, você vai viver tanto que vai poder dançar sapateado em cima do túmulo do meu neto e poder dizer: "Teresa, meu deus garota, você estava certa, eu estou aqui sapateando em cima do túmulo do seu neto cuzão".

Alexei riu – o que era tudo que Teresa precisava ouvir para se aliviar.

− Eu não vou dançar sapateado no túmulo do seu neto – ele afirmou – No máximo vogue. – agora quem riu foi Teresa.

− Meu deus se você colocar Madonna pra tocar perto da minha sepultura eu juro que volto do além para destruir sua vida! – afirmou. Ouviram sons de utensílios de metal caindo no chão e fazendo um grande estrago – Meu deus preciso ir. E é bom você chegar logo antes que sua confeitaria vá a falência. É impressionante como é só você não estar bem que nada dá certo nessa cozinha.

− Dominic dizia que minha alma tava nessa confeitaria – respondeu.

− Pelo menos em uma coisa o cabeça de prego tinha razão – e desligou o celular, enquanto ouvia-se gritos ao fundo.

Alexei contemplou a própria vida enquanto o ônibus dirigia-se pelas ruas da cidade e parava nos pontos de ônibus. Pensou em tudo que viveu, todas as eras e pessoas que pode conhecer graças a sua imortalidade, todos que perdeu, seja pela morte, pelo tempo ou pela distância. Nos fones as músicas mais tocadas no início dos anos 2000, seu século favorito: Rouge, ABBA, Madonna, Britney, Destiny Childs e Luka.

"De mãos atadas, de pés descalços, com você meu mundo andava de pernas pro ar"

Lembrou-se, repentinamente, de Dominic, seu relacionamento mais duradouro. Se conheceram na até então União Soviética, dois vampiros cara-a-cara por pura obra do destino e da casualidade. Se encararam por longos segundos naquela cidade fria, sem nada dizer, um analisando o outro como se pudessem ler suas auras e assim poder dizer se era alguém bom ou ruim. Dominic achou os olhos de Alexei absurdamente lindos, como uma flor da noite que vira uma única vez num campo japonês durante a segunda guerra. Alex se encantou de imediato pelo sorriso misterioso e sagaz de Domi, era algo que lhe trazia sentimentos e lembranças de épocas que mal podia se lembrar de tão atrás na história que ficaram. Foram segundos estranhos de silêncios, cortados pela risada única e apaixonante de Domi:

− Achei que não veria outro em muito tempo – foi o que ele disse, como se a esperança penetrasse seu ser e consumisse os desejos odiosos que a muito guardava em virtude da solidão que assolava seus dias. E sorriu. O sorriso sagaz, apaixonante, sensual e carregado de mensagens subliminares e proféticas, quase religiosas. Sim. Alex tinha certeza de seus pensamentos: se houvesse uma religião sobre Dominic, seu sorriso seria a mensagem máxima de sua fé. – Dominic Vanguard.

− Alexei. Alexei Boaventura – não apertaram as mãos: se abraçaram como velhos amigos. Um mito clássico sobre os vampiros é sobre a frieza de seus sentimentos, o que não passa disso, um ideal fictício, pois não há meias demonstrações de afeto, ódio, amor por eles. Vampiros são seres intensos, que não costumam guardar sentimentos, que ardem em raiva e em paixão no mínimo reflexo de sua necessidade. O sangue que eles bebem não lhes torna apáticos: lhes torna mais vivos e sentimentais que qualquer humano cheio de vida.

− É o maior prazer possível, Alex – ele respondeu, enquanto se desvencilhava do abraço. Aquele momento marcou tudo: foi quando Alexei sentiu tudo que ele guardava de ódio pela humanidade se esvair e dar lugar a paixão imediata e misteriosa que sentiu por aquele misterioso homem de sorriso sagaz e apaixonante. Era assim com os vampiros: um sentimento maior sempre dava lugar a outro, tão grande e intenso quanto. Se encararam novamente e a partir daí a vida de nenhum dos dois foi a mesma.

Alexei abandonou a alcunha de açougueiro de Mônaco – o terrível e cruel assassino − e se mudou para uma agitada cidade metropolitana para construir uma nova vida ao lado de Dominic. O ódio que fomentava pela humanidade se foi pouco a pouco e ele parou de matar por prazer frio e calculista. Seu coração foi preenchido pela presença de Dominic e pelo novo hobby: a confeitaria. Fazer bolos, doces e pães trouxe felicidade e paz interior que beber todo o sangue de um corpo nunca trouxera. Todavia, nunca conseguiu superar por completo o passado psicopata que perseguia todos os seus dias.

Dominic sempre esteve sozinho antes de conhecer Alex e, quando o conheceu, achou que finalmente se sentiria feliz por completo, o que não ocorreu, pois, o vazio em seu peito voltava a corroer seus dias e corromper sua felicidade. Não podia ter só um, tinha que ter todos – e assim o fez. Foram inúmeras traições em cinco décadas de relacionamentos, até que a gota d'água caiu e Alexei decidiu que não aceitaria mais ser traído e perdoar as traições quando Domi dissesse estar arrependido. Havia se cansado do ciclo vicioso da promessa à traição e decidiu que seria melhor o término.

E ali estava Alexei: ouvindo Tô nem aí e pensando no porquê havia se deixado ser vítima de um relacionamento abusivo e – literalmente – parasita com alguém que não lhe dava o devido valor. Tantas oportunidades de felicidade apagadas de sua existência a fim de manter a boa e duradoura relação com Dominic, que não fazia o mínimo esforço para o mesmo. Tantas vezes que fingiu estar feliz, fingiu estar tudo bem, sendo que tudo estava de pernas pro ar. Por que havia aceitado ser a vítima de um vampiro sentimental como ele? Por medo? Tesão? Paixão? Solidão?

− Eu mereço coisa melhor – disse para ninguém além de si mesmo, enquanto continha com as pontas dos dedos as lágrimas que saiam dos olhos. Pegou o celular, apagou Dominic dos contatos, suspirou, fungou e olhou confiante para a fachada da sua confeitaria, quando o ônibus finalmente chegava ao seu destino – Vou virar essa página – e saiu, confiante.

Teresa veio correndo ao seu encontro, uma moça de olhos verdes e pele bronzeada, com cabelos ondulados e negros. Seu olhar denotava medo e desespero.

− Que foi? – Alexei perguntou, percebendo que algo havia ocorrido. Teresa suspirou e puxou Alex para um canto.

− Ele ta aí – e Alex tinha certeza de quem se tratava. Sentiu um aperto no peito e um burburinho no estômago, mas havia prometido para si mesmo ser mais confiante e poder virar a página. Estava pronto pra tudo – e tá com outro vampiro – mas não para isso. Sentiu tudo a sua volta girar como num carrossel macabro, seu mundo desabou e o burburinho no estômago se tornou o som de uma motocicleta frenética. Alexei conseguiu a proeza de ficar mais pálido do que já era.

− Mas... já?

 


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