Paralelo 22 escrita por Gato Cinza


Capítulo 8
8




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Não era a primeira e nem seria a última vez que ele acordaria ao lado de uma mulher depois de uma ótima noite de sexo, mas essa era a primeira vez que ele queria copiar os romances e despertar com ela deitada sobre seu peito ou de conchinhas ou de qualquer um daqueles modos que soam um método possessivo de garantir que a outra pessoa não fuja.

Malvina dormia de bruços e as pequenas tatuagens que ela tinha o distraíram, havia um “E Se...” em letras bem elaboradas na nuca, um unicórnio na base da coluna e a que o distraiu, um amontoado de minúsculos símbolos que formavam um desenho maior e que, infelizmente, estava incompleto.

A música suave que tinha o acordado voltou a tocar em algum lugar ali perto, ela se mexeu, esticando-se para pegar algo no chão. Era o celular que tocava.

— Me ligue segunda-feira – ela pediu em voz baixa e desligou.

Menos de trinta segundos depois a música voltou a tocar e pelo grunhido dela, alguém seria ofendido, mas não aconteceu. Malvina desligou o aparelho e resmungou sobre ser domingo. O certo seria ele fazer como de costume, pegar suas coisas e ir embora antes que ela despertasse de uma vez, só que Nicolas não resistiu ao fato de saber que ela ficaria irritada se fosse perturbada.

Infantil? Muito.

Mas e daí? Adorava saber que era capaz de fazê-la demonstrar emoções, ainda que na maioria das vezes fosse desconfiança. Inclinou para frente e beijou o ombro dela que girou a cabeça, os olhos fechados.

— O que acha de um saboroso café para começar o dia?

— Não bebo café – disse sonolenta.

— Estava pensado em você preparar o café para mim – deu outro beijo no ombro dela e recebeu de volta um resmungo sobre jogá-lo pela janela.

Nicolas riu enquanto ela cobria a cabeça com o travesseiro.

— Tem café solúvel no armário com adesivo de bolas – ouviu quando se levantou – Na embalagem deve ter as instruções de preparo.

“Outras mulheres não hesitariam em levantar e me preparar um café da manhã divino ou ir comprar um”, pensou. Pegou suas roupas que estava largado no chão, o telefone tocou enquanto ele se vestia. Tocou novamente quando abriu a porta e saía, não antes de ouvir Malvina ameaçando quem quer que fosse que estava ligando para ela àquela hora da madrugada. Ainda sorria quando entrou no seu apartamento, na cobertura daquele mesmo prédio.

Foi atrás de Ulisses no fim da tarde, àquela hora ele já devia estar em seu estado normal de sobriedade. Ulisses já tinha passado por clinica de reabilitação três vezes nos últimos dez anos. A primeira foi quando ele bebeu demais e tentou se suicidar, estavam na faculdade e Nicolas era seu colega de quarto, ficou apavorado quando o encontrou quase morto por overdose no alojamento.

 Quatro anos depois ele exagerou, ficou bem mal e quebrou toda sua casa por que a namorada tinha terminado com ele.  E a última vez foi á dois anos e meio, quando simplesmente ligou para ele para dizer que estava indo para uma clinica por que não queria mais a vida que estava levando. Dessa vez Nicolas realmente acreditou que ia ser diferente, afinal ele tinha ido por contra própria para a reabilitação e depois que saiu de lá parecia estar bem, estava mais focado e nem bebia mais como antes.

Ulisses já tinha culpado os pais que não lhe deram limites, os amigos que nem sempre eram boas companhias, as mídias diversas, a ex-namorada e até Deus por suas recaídas. Nicolas era paciente em ouvir suas desculpas e tentava ser compreensivo, mas na maioria das vezes queria jogar tudo para o alto e deixar que Ulisses lidasse sozinho com seus problemas. Então lembrava que ele era seu amigo e que na maior parte do tempo, a parte em que não estava sendo um viciado problemático, ele era um bom amigo.

O encontrou com a aparência de um doente em recuperação quando entrou no flat onde morava. Conversaram por um tempo até que a conversa pacifica virou uma briga sobre um não viver a vida do outro. Ulisses se irritou e expulsou o amigo de sua casa, informando que estava se demitindo da agência de contabilidade. E Nicolas que tinha começado aquele domingo com motivos bobos para sorrir, encerrou com excesso de raiva.

Seu mau humor se estendeu para a manhã chuvosa de segunda-feira e descontou nos funcionários da agência. Exceto em uma, não por que tinha alguma preferia e sim por que não a encontrou em sua mesa que tinha um grande feioso e arroxeado buquê de flores. Leu o cartão sem assinatura: Obrigado. Quem estava agradecendo com aquelas flores horríveis e sobre o que?

— Pérola – gritou enquanto voltava para a recepção – Onde está a Malvina?

— Ainda não chegou.

— Encontre-a. Quero-a aqui em dez minutos ou está demitida.

— E-eu?

— Você não sua tonta, ela – rosnou.

Pérola bem que tentou, mas achar aquela esquisita era impossível. Não atendia nenhum dos telefones deixados para contato, não tinha redes sociais e o pior, morava quase do outro lado da cidade, num bairro fodido onde nem os marginais de outros bairros colocavam os pés. As histórias que contavam sobre aquele lugar maldito era suficiente para causar pesadelos até nos mais céticos.

Ninguém era estúpido de cruzar o caminho de Nicolas quando ele estava irritado, por isso todos faziam seu trabalho evitando ao máximo ter que ir falar com ele. Não que isso evitasse que ele gritasse com todo mundo por quase nenhum motivo e no momento esse motivo era Malvina que estava atrasada. Fernanda, secretária de Sônia, era quem estava cuidando das funções da “desaparecida” que chegou pouco antes das dez da manhã e foi direta para a sala do chefe que estava á sua espera.

— Fecha a porta – mandou quando ela entrou, sem lhe dirigir um olhar.

Quando ouviu a porta se fechar, ergueu o olhar para ela. Estava com cabelo úmido, vestia-se de modo formal, calça preta e algo que lembrava uma camisa lilás sem botões e com gola alta. E parecia abatida com os olhos avermelhados, quis perguntar se estava tudo bem com ela, mas reconsiderou:

— Se pensa que ter dormido comigo lhe dá algum mísero poder dentro deste escritório, está enganada – disse calmo, apesar de querer muito gritar com ela – Você não é a primeira e nem será a última empregada minha que levo para a cama. Atrasos não são permitidos, qualquer um que trabalhe para mim deve ter no mínimo algum senso de profissionalismo, entende isso?

— Entendo – respondeu naquele tom irritantemente vazio.

— Agora explique a razão de ter se atrasado e seja bem convincente se não quiser perder o emprego.

Malvina suspirou e no mesmo tom forçadamente calmo dele, contou:

— Eu fui visitar minha avó, ela mora há duas horas e meia daqui, ao norte. Estava chovendo e passei a noite com ela e de manhã voltei para cá, mas houve um deslizamento na estrada e precisei fazer um contorno que levou mais tempo que o previsto.

Nicolas analisou a mulher na sua frente, não dava para saber se era verdade. Quem nunca usou a desculpa da vovozinha doente para se safar?

— E o que você tem? Parece doente.

— Não dormi, meus olhos doem, tomei comprimidos para dor de cabeça que fazem meu estômago revirar e não posso comer nada por que enquanto os efeitos do remédio não passar tudo vai me causar ânsia. Não estou doente, estou exausta.

— E por que não dormiu?

Malvina suspirou, piscando os olhos com lentidão.

— Senhor Navarro, eu não devo satisfação de minha vida pessoal e nem de nada que me ocorre fora do ambiente de trabalho. Se quer me demitir fale logo por que Fernanda tem que voltar para seus afazeres e já tomei muito do tempo dela.

Ele estreitou os olhos, podia e devia demiti-la pela insolência, mas um lado malvado de si que ele fingia não existir, resolveu puni-la não lhe dando o descanso que ela obviamente precisava.

— Volte para seu trabalho imediatamente – ela assentiu e deu-lhe as costas – Malvina, vou mandar averiguar se o que disse é verdade.

“Imbecil”, ele pensou tê-la ouvido dizer. Não. Nicolas não mandou investigar a vida dela que como a mesma o lembrou com desprezo, não era da sua conta. E pelo resto do dia teve o prazer de perturba-la com suas ordens, ela fez tudo com seu jeito robótico de agir mantendo a postura indecifrável sem resmungar ou demonstrar em gestos o cansaço que os olhos denunciavam.

— Nick – Sônia entrou na sua sala sem bater, como sempre – O que tem de errado com a novata? Ela parece uma sonâmbula.

— São só ressaca e cansaço de uma noite na farra.

— Tem certeza? Ela não parece ser tão irresponsável assim.

— Sônia, por todo respeito que eu tenho por você te peço que não se meta nisso. Ela veio trabalhar com ressaca e isso é problema dela.

A contadora não disse mais nada, só lançou para ele um daqueles olhares de mãe repreendendo o filho por uma má-criação. Nicolas não tinha certeza de coisa nenhuma, mas cada segundo que via a secretária com aquele cansaço todo lhe vinha á mente ela dançando com Roberto de modo tão intimo que parecia errado e isso o irritava profundamente. Talvez ela pudesse estar falando a verdade, mas era uma daquelas situações nas quais ele conseguia ver apenas o óbvio e o óbvio é que ninguém passava a noite em claro em uma visita a avó.

Será que ela e Roberto tinham saído junto e feito o que não fizeram na vez anterior? E sua imaginação desviava para os dois no quarto dela, o corpo macio, os dedos de toque delicado e precisos dela deslizando por sua pele com um leve arranhar á provocar arrepios, os lábios finos acariciando a carne com beijos úmidos e ardentes... E saber que outro podia tê-la tocado, imaginá-la gemer pelo prazer provocado por outro...

Mas o que ele estava fazendo? Por que ficar pensando no que não era da sua conta? Que a secretária temporária fizesse o que bem entendesse com sua vida. Mais raivoso do que nunca, focou a atenção no trabalho. E teve algum sucesso até entrar no elevador no fim do expediente e a ver com a cabeça apoiada no braço de Roberto que era bons 15 cm mais alto, estava sem os óculos e os olhos estavam fechados.

—... e acaba sem nem ter começado – ela dizia ao advogado.

— Credo, Malvina, isso é um jeito muito mórbido de ver a vida.

— Foi você quem perguntou, eu só respondi.

— E eu me arrependo de ter perguntado. Achei que tivesse tratamento, remédios.

Houve uma pausa, um suspirar suave e cansado da parte dela.

— Tem, e vovó teve a opção de passar pelo tratamento que prolongaria sua vida alguns anos, mas ela escolheu a morte. Respeitamos sua vontade.

— Sinto muito por ela.

— As pessoas morrem Roberto.

As portas do elevador se abriram e mais duas pessoas entraram, encerrando o assunto da secretária com o advogado. A opinião fria dela á respeito do fato de que alguém estava morrendo, não ocultou a tristeza na voz. Pela terceira vez na vida, Nicolas sentiu culpa por algo que escolheu fazer, ele escolheu importunar Malvina quando o que ela precisava era de um ombro amigo. Disse que tinha passado a noite com a avó e ele não acreditou, a avó estava morrendo e ela buscou consolo em Roberto que foi descente em ouvi-la.

— Inferno! – reclamou batendo no volante do carro, enquanto seguia para casa.


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