A Aranha na Teia escrita por Elvish Song


Capítulo 4
From hell to Heaven - part 2


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal!!!! Desculpem o sumiço, mas as férias conseguiram ser mais tensas do que final de semestre. Felizmente, aqui estamos de volta, e esse capítulo vai mostrar o lado menos sombrio da Nat, seus vínculos emocionais. Conhecendo um pouquinho melhor outros aspectos da nossa Tasha, enquanto ela se prepara para entrar na cova do monstro.
Tomara que gostem! Boa leitura!



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Os espiões entraram juntos no andar principal da Torre quando já passava da meia-noite, uma vez que haviam ficado no apartamento de Natasha até passar a tempestade – tempo suficiente para decidirem encerrar os assuntos tratados ali, em prol de conseguirem dormir à noite para ter a mente mais clara no dia seguinte. O arqueiro tinha o braço passado em torno dos ombros da assassina, que tinha o seu em torno da cintura dele – gestos de afeição que tinham apenas entre si - até o momento em que a porta do elevador se abriu. Ainda preocupado com Natasha, Clint perguntou:

— Nat, tem certeza de que você está bem?

— Barton, até parece que não me conhece. – Ela inclinou a cabeça com aquele olhar acompanhado de um leve sorriso torto. – Eu sempre fico bem. – A russa tirou o casaco e ia pendurá-lo no cabideiro da entrada, quando viu Steve descendo as escadas. Voltando-se para o espião, falou em tom baixo – Clint, nos vemos depois. Eu preciso... Conversar com Steve.

Apenas trocando um olhar, o arqueiro anuiu e lançou um breve olhar para Steve, alertando-o sem palavras para se lembrar bem do que haviam conversado. Logo em seguida, deu um tapa de leve nas costas da mulher e falou baixinho:

— Se precisar de qualquer coisa, é só me chamar. – ele quase completou com “especialmente se for para esconder o cadáver do Rogers”, mas segurou a piada para hora mais propícia.

— Eu sei. Vá para o ninho, Gavião. – Ela forçou um sorriso encorajador para o amigo, que retribuiu e subiu para o próprio apartamento.

Sozinha com Steve, a soviética evitou olhar para o companheiro e foi até o balcão do bar, servindo-se de uma dose de uísque. Amaldiçoava a si mesma por ter se deixado envolver tanto com o americano, pois só agora, sabendo que provavelmente estaria tudo terminado entre ambos, percebia o quanto a separação doeria. Estúpida, Natalia! Estúpida! Nisso resultava a paixão, já não havia aprendido desde cedo?

— Se veio para terminar nosso relacionamento, Steve, considere feito. Não quero estender essa conversa. – Declarou, bebendo o shot de uma vez e se servindo novamente. Como queria ser capaz de se embebedar...

— Para uma espiã do seu calibre, essa não foi uma boa leitura. – Respondeu o soldado, aproximando-se da mulher. – Então olhe para mim, Nat, e tente de novo.

A voz dele soava tão doce e gentil... Natasha sabia que o envolvimento emocional prejudicava o julgamento, mas não seria capaz de errar em algo tão óbvio. Com um suspiro profundo, voltou-se para o homem, que a fitava com carinho e, após um breve segundo de hesitação, levou a mão a seu rosto devagar, a fim de evitar que ela reagisse com um afastamento.

— Estava preocupado com você; procurei-a o dia todo, agente. – A mão esquerda rodeou a cintura de uma perplexa Natasha, puxando-a para si num abraço, antes de se afastar o suficiente para fitar seu rosto. Ela estava no controle, novamente, mas não saía de sua mente tudo o que vira, e sabia que tudo o Natasha estava fazendo era se cercar de uma armadura emocional, envergonhada de si mesma. – Como você está?

— Steve... Você está louco? – Ela não compreendia... Como podia ser?! – já se esqueceu do que eu sou?

                Ele respirou fundo e se sentou, servindo-se também de uísque; estava sério, mas de um modo sereno, e a espiã só podia deduzir que ele conversara com Barton a respeito, para ter lidado com o choque visto por ela em seu rosto, quando o expulsara da sala na noite anterior.

                - Não vou mentir, Nat: foi um pouco chocante.  – Ele suspirou, pousando a mão sobre a dela. – Mas você nunca mentiu sobre o que foi, e o que faz. E deu certo: a cientista abriu a boca sobre tudo e mais um pouco. Eu não conseguiria fazer isso, Barton e Grey talvez não fariam, mas você consegue, e usou para um objetivo legítimo: salvar aquelas crianças e achar o Cetro. Evitar muito mais mortes. – Steve franziu o cenho, cada vez mais preocupado com Natasha; aquela missão a estava consumindo em culpa, fazendo-a se sentir responsável por não haver percebido tudo o que ocorria anos atrás, e mais ainda por se deixar dominar pela raiva fria e cruel que a sensação despertava. Odiava a si mesma por manter aquela parte de si, a qual considerava hedionda, mas da qual não podia se livrar... Não gostava de agir como costumava fazer em sua época de agente da KGB, tentando se livrar de todo aquele passado... Mas como Natalia podia não perceber como essas coisas o faziam sentir sobre ela? A admiração, o cuidado, respeito... Amor?! Ela podia ser o mais luminoso dos anjos, ou o mais terrível dos demônios, e precisava ser capaz de ir de um extremo a outro para se manter viva. O que ele via, para além de tudo isso, era uma sobrevivente que tentava se eximir das antigas culpas fazendo a coisa certa, mesmo que seus métodos pudessem ser por vezes iníquos. Uma mulher que não fora quebrada, por mais que houvesse sido golpeada, e ele enxergava beleza em meio a tantas cicatrizes, assim como a luz em meio às trevas. – Era o único jeito. 

— Então agora você assume que os fins justificam os meios? – A voz da espiã soou mais leve e um tanto sarcástica, embora fosse apenas uma boa encenação. 

— Algumas vezes, justificam, sim. Nem sempre, e nem todos os meios, mas alguns. Como ontem. – Ok, Rogers, hora de tomar coragem. Se não dissesse isso agora, as coisas entre eles mudariam, e dificilmente para melhor. – Nat... Eu sei que isso não estava em nosso acordo mas... Eu me apaixonei por você. Mais do que isso; eu amo você.

As palavras sumiram por alguns momentos da boca de Natasha; sim, ela sabia que isso vinha se desenvolvendo, e agora sabia que também ela desenvolvera tal sentimento! Parte de sua mente, contudo, dizia que era loucura, que ambos acabariam machucados, especialmente Steve; mais além, nunca o imaginara confessando isso!

Percebendo a perplexidade no rosto dela, e compreendendo ao menos em parte tudo o que ela tentava organizar em si, o Capitão deixou transparecer em seu rosto todo o sentimento que nutria pela mulher, construído ao longo daqueles anos, e disse com um esboço de sorriso:

— Pode olhar para mim, por favor? Eu juro que não mordo... – Um sorrisinho de canto de lábios, uma leve alfinetada de humor que serviria de conexão entre suas emoções, quando a espiã a utilizava com frequência para mascarar seus sentimentos. – A menos que você queira. 

Natasha riu baixinho, nem tanto da insinuação de Steve, mas de como ele ficou vermelho ao fazê-la. Soltando os ombros e finalmente girando o banco para ficar de frente para o amante, sorriu verdadeiramente, com até mesmo ternura estampada no olhar: 

— Você é a única pessoa que eu conheço que fica corada com a própria malícia, Steve. – Até Rogers, Clint havia sido a única pessoa a tirá-la de seus devaneios mais obscuros; Steve conseguia fazê-lo não com piadas, mas com sua bondade e aquela luz que parecia envolvê-lo. – Se eu não soubesse bem que não há asas escondidas por baixo da roupa, perguntaria se a queda do céu doeu muito. 

— Não faça isso consigo mesma, Romanov. – Ele se divertiu e acariciou o rosto da ruiva. – Cantadas prontas não combinam com você. 

— Essa se encaixava bem demais para ignorar. – Bem, hora de parar com os volteios. Ele realmente dissera o que ela pensara ter ouvido, e ambos mereciam que a russa fosse honesta. – Steve... Eu também amo você. E não faço ideia de como lidar com isso. Tudo o que eu aprendi diz para me afastar antes que te machuque, mas não quero me afastar. Não quero TE afastar. – A russa estava em pé, agora, fitando o soldado diretamente nos olhos. – Mas quero menos ainda te machucar.

— Eu sei, Nat. – ele segurou sua mão e a trouxe para o próprio rosto. - E não posso prometer que, em algum momento, não machucaremos um ao outro, mesmo sem querer, porque pessoas erram, e todo relacionamento tem seus problemas. Mas você não vai me ferir do modo que pensa; eu não tenho medo, e conheço você. E eu nunca vou querer te machucar. Além das coisas que precisa fazer, por baixo das suas máscaras, sei quem você é, e a amo. – Ele segurou seu rosto em ambas as mãos, ainda espantado que ela lhe permitisse tanto contato. Nem de longe tanto quanto ficou ao ver os olhos dela marejarem antes que piscasse com força e pigarreasse para responder:

— Não tenho nada para te oferecer. Nada além de mim mesma, e do que sinto.

— Bem... Acho que estamos no mesmo barco. – Os dois sorriram levemente. – Eu não quero nada além de você mesma, Natasha. Eu só quero poder te amar sem medo disso e, agora, saber que você retribui. O restante... Não precisamos sequer deixar a equipe saber, não precisamos de nada. Apenas nós dois. Apenas uma chance. – Ele respirou fundo, esfregando a nuca com uma das mãos. – Eu sei que é pedir demais propor qualquer coisa, agora, com tudo o que você precisa lidar, mas... Apenas queria que soubesse, Nat: eu te amo, não importa que eventualmente possamos discordar, agir de modo diferente... Eu te amo, exatamente como você é, e por tudo o que é o mais essencial da sua alma. O que você me deixou ver, e que me fez apaixonar definitivamente.

Natasha não respondeu. Mais um longo momento de silêncio se seguiu, enquanto ela metabolizava as coisas que ouvia do amante. Era tudo o que queria ouvir, e ao mesmo tempo tudo o que temia ouvir. O bom senso mandaria afastá-lo, antes que suas trevas o fizessem, mas estava tão cansada do bom senso! Aquele sentimento que tentara matar e ignorar podia ser insano, mas era real e puro! Uma das poucas coisas puras que já sentira!

Finalmente, ela apenas enlaçou o pescoço de Rogers com os braços e uniu seus lábios aos dele, num beijo a princípio suave, que logo ganhou intensidade e profundidade quando o homem correspondeu, abraçando a cintura da parceira, em seguida segurando-a pelas coxas e erguendo-a para que ficassem à mesma altura. A espiã cruzou as pernas em redor da cintura do amante.

— E já não existe um “nós”, Steve? Só porque não havíamos confessado o que sentimos, não deixava de ser real.  – Ali, abraçada a Steve, sentindo-o segurar seu corpo junto ao dele, aceitando todos os sentimentos em relação a ambos, sabendo ser correspondida... Poucas vezes se sentira tão simplesmente humana. Era loucura abrir espaço para aquele momento, ainda mais na situação vivida, com tudo o que pesava sobre seus ombros... Mas se fosse esperar pelo momento perfeito para ser feliz, então tudo o que teria seria uma espera eterna. Não havia momento ideal, a não ser o presente. – Eu te amo. Você me ama. É tudo o que importa.

O beijo recomeçou, dessa vez intenso, apaixonado e entregue; nenhum dos dois saberia dizer quando, mas acabaram no apartamento de Natasha – o mais próximo dali – e então em sua cama. Steve a deitou com gentileza, sempre olhando em seus olhos ou beijando-a enquanto despiam um ao outro lentamente, como se cada peça de pano afastada levasse consigo parte de seus escudos emocionais. Ambos estremiam levemente, não de insegurança ou nervosismo – não fazia sentido nutrirem tais sentimentos um com o outro – mas por saberem que estavam levando o que tinham a um patamar do qual não haveria volta ao que havia sido, até hoje.

Finalmente nus, retomaram o beijo com profundidade, explorando-se mutuamente com as mãos e lábios como se fosse a primeira vez; gemidos abafados, suspiros e sussurros escapavam entre os gestos que falavam mais do que quaisquer palavras. Os dedos da espiã percorreram cada saliência rija do corpo de seu soldado, mapeando cada detalhe que tão bem conhecia, apertando seus músculos, puxando-o contra si, deitando-o sob si para lhe dedicar todas as atenções que desejava.

O americano fez questão de deixá-los iguais ao tomar o controle à mulher e, invertendo as posições, dar-lhe o mesmo tratamento lento e intenso, explorando suas colinas e vales, traçando com as mãos e a boca cada cicatriz e sarda, percorrendo os campos de marfim da pele da amada até que ela gemesse seu nome em súplicas e, sem poder prolongar mais tudo aquilo, ajoelhou-se na cama e puxou a espiã para seu colo, seus corpos se movendo em sincronia perfeita para buscar sua união; e dessa vez não foi como das outras. Não se tratava da união carnal, com sentimentos abafados por culpa e receio. Era apenas amor em sua forma mais pura, enquanto adoravam um ao outro em corpo e alma, encontrando naquela união um santuário para o qual se retiraram, sem pensamentos sobre qualquer outra coisa. O amanhã viria, e lidariam com todas as cargas que possuíam, mas agora existiam apenas eles, naquela união perfeita de corpos e sentimentos.

Quando enfim adormeceram, felizes e saciados, foi sorrindo nos braços um do outro, entrelaçados como duas metades de um todo que se completava, as feições relaxadas em serenidade que não lhes era usual. Pelo menos naquele momento, estavam ambos em paz.

 

*

 

Natasha terminou de responder o e-mail de Hecker, e cada vez mais tinha certeza de que a sujeira escondida pela HIDRA era ainda maior do que qualquer um poderia imaginar. Enquanto trabalhava, não sentia muita coisa, anestesiada pelo profissionalismo, mas não podia negar que, quando encerrava o “expediente” – geralmente quando sua mente começava a ficar exausta demais para que captasse todos os detalhes – seu estômago estava revirado e um gosto amargo tomava conta de sua boca. No fundo, seus sentimentos se resumiam a uma simples palavra: urgência. Por mais paciente que houvesse aprendido a ser, como uma aranha esperando que a vítima caia em sua teia, sentia como se as vidas dos jovens sequestrados e das crianças de Nuremberg houvessem sido postas em uma ampulheta. Uma contra cujas areias tentava correr, mas apressar-se demais estouraria o vido e faria tudo se derramar.

Debruçada no balcão de sua cozinha, única parte de sua casa bagunçada por pilhas de papéis e arquivos junto ao notebook, – o apartamento de Natasha era pequeno por opção própria, mantido cirurgicamente limpo e organizado, com móveis práticos, porém de bom gosto – a ruiva ouviu passos se aproximando e percebeu que Steve viera acompanhado de Banner e Thor, então tratou de fechar as telas; nenhum deles precisava ver as imagens trocadas entre ela e a equipe de Izmar, ou ver detalhes sórdidos que nada contribuiriam para a missão.

— Cavalheiros! – Disse em tom quase gentil. Pelo menos tanto quanto poderia, no momento. – A que devo a visita?

— Achamos o rastro do Cetro, Nat. – Banner não fez rodeios, indo direto ao assunto. – Ou Thor achou. Amostras contaminadas por radiação específica, incompatíveis com qualquer material catalogado pela ciência terráquea. Entramos em contato com Erik Selvig e a Dra. Jane Foster, e ambos insistiram em ajudar.

— Onde?! – A ruiva praticamente pulou por cima da bancada, juntando-se aos outros com olhos indagadores e muito vivos. Se haviam colocado Jane e Selvig nisso, então as chances aumentariam exponencialmente! Não pensara nisso, antes, porque geralmente evitava levar civis a se envolverem no tipo de trabalho que faziam, mas se pudessem fazer algo a partir do laboratório, e haviam se disponibilizado livremente... Bem, era uma frente a menos para cobrir! Poderia se dedicar totalmente à missão em relação às cobaias, tranquila por saber que o Cetro seria rastreado por um quarteto de especialistas. Sim, como asgardiano, Thor também podia ser considerado um especialista naquele tipo de energia.

— Thor conseguiu amostras radioativas perto de Rochester, junto ao Lago Ontário. – Explicou Steve, os olhos cheios de determinação e mesmo algum entusiasmo. – Grandes Lagos não estavam relacionados aos mutantes sequestrados?

— Lago Michigan é o foco principal, mas não manteriam a área de caça e os laboratórios juntos. – Próximos o bastante para facilitar o transporte, longe o bastante para que o raio de buscas não abarcasse a região... E num local onde não haveria tantas suspeitas, uma vez descartada a presença de bases num raio determinado do epicentro de atividades. Quando um local era descartado desse modo, o mais comum é que o “covil” se situasse em regiões muito distantes. Raposas astutas! Ela cruzou os braços e mordeu o interior dos lábios enquanto fitava o chão, olhos se movendo levemente para a direita e a esquerda enquanto raciocinava consigo mesma. – É ISSO! – E ante o olhar confuso do trio, abriu diante de si uma nova tela holográfica, puxando os endereços e IPs rastreados de diversos remetentes por todo o mundo, com os quais se correspondia sob o disfarce de Dra. Lambert. – Veem isso? A maioria dos IPs está transmitindo sobre o hemisfério Norte-Ocidental. Há três semanas – Ela modificou a tela, que mostrou um mapa em vermelho com pontos luminosos centralizados na Ásia e Leste Europeu. – Estavam dispersos no leste. Estão fazendo algo grande, e por isso sequestraram tantos jovens, na região: preparando-se para o que quer que vá acontecer.

— Nenhum progresso enquanto Melinda Lambert? – Perguntou Thor, angustiado com o que poderia ser o tal “evento”.

— Menos do que gostaria. Tudo é cifrado, e não falam abertamente sobre isso. A doutora Lambert não tinha esse tipo de informação, mas fora convidada a integrar os “novos estudos preliminares”.  Já revirei todos os livros, arquivos, e-mails e contas, e Jean Grey me passou tudo o que conseguiu tirar de nossa hóspede, mas ela realmente não sabe. Não à toa foi tão difícil rastrear esses insanos: eles são cuidadosos.

— O evento LaRoche está relacionado a isso, imagino...? – Arriscou Thor, arrancando uma anuência da colega.

— Por tudo o que descobri, uma bela fachada para atividades não tão belas assim. Iniciarão uma nova etapa de testes, e isso pode ser tudo, menos bom; temos de nos apressar, e entrar nesse baile; agora, é questão de vida ou morte. – Ela tentou não pensar nas gravações que vira das crianças nos experimentos e treinamentos... – Avisem-me quando o Dr. Selvig e a Dra. Foster chegarem, por favor. – Thor executou uma breve reverência, e ele e Bruce iam deixando o lugar quando a mulher o chamou. – Thor, Bruce? Obrigada.

— É minha honra, Natasha. – Saudou o deus, enquanto o cientista sorriu e assentiu.

— Colocaremos você a par do que formos descobrindo. Tente se soltar um pouco disso... Está te deixando realmente mal, Nat. Se não se cuidar, vai vacilar na missão. – O cientista levantou a mão. – Não. Não foi uma pergunta, e nem estou duvidando da sua capacidade, mas você está mergulhada em algo muito denso. Se não sair para respirar, vai ficar debilitada demais.

A ruiva respirou fundo e acabou assentindo. Os amigos deixaram seu apartamento, e Steve se aproximou; sozinho com a amante, tocou levemente suas costas para saber se ela estava ou não receptiva a um abraço e, ao não ser afastado, puxou-a para perto de si, o queixo descansando na curva do ombro de Romanoff, que ainda estava curvada sobre a bancada, tensa.

— Sabe que Banner está certo, Nat. Precisa tirar a mente disso, ao menos um pouco. – O Soldado acariciou os braços da mulher, que suspirou e assentiu, mesmo que parecendo arredia.

— E como vou fazer isso, Steve? Esquecer as coisas que vi, as filmagens? Como vou “relaxar” enquanto sei o que está havendo com essas crianças? Com Lucy? – Ela contara a Steve sobre a menina ser geneticamente sua filha, e o soldado depreendera por si só como isso acentuava a culpa da companheira; se não houvesse falhado, no passado, a criança não estaria agora ali, sofrendo tudo aquilo. Ele sabia haver mais por detrás desses sentimentos, mas Natasha apenas contaria se e quando se sentisse pronta para isso. Sem saber exatamente o que responder, uma vez que a ideia o perturbava o suficiente sem sequer ter visto as coisas que Romanoff vinha assistindo e “participando”, o americano se dirigiu à IA que comandava o edifício:

— J.A.R.V.I.S., pode tocar minhas músicas, no andar da Agente Romanoff?

Em resposta, My Way começou a tocar. Natasha olhou para o amante de modo levemente incrédulo, quase indagando se ele realmente havia feito isso, mas não se opôs quando ele a virou de frente para si e enlaçou sua cintura com o braço. Com um leve sorriso cansado, a espiã colocou sua mão direita na esquerda dele, a mão livre em seu ombro, e o acompanhou; Steve era duro como uma estaca, e ela riu baixinho:

— Sua primeira dança desde 1941?

— Pode dizer que é, na verdade, minha primeira dança com uma garota. – Ele sorriu de volta. – Tentarei não pisar nos seus pés.

— Pouca chance de isso acontecer. – Ela ainda estava tensa, mas procurou focar na presença de Steve, na música e no momento que viviam, enquanto tentava ensiná-lo a dançar; e ele não era tão ruim assim! Logo acertou o ritmo, e a russa lhe lançou um olhar satisfeito. – Nada mal, para um idoso de noventa e sete anos.

— Olhe quem está me chamando de velho. – Riu o soldado, girando-a. Natasha se inclinou para trás em seu braço e, ao voltar, selou seus lábios brevemente com um sorriso.

— Ainda sou mais nova que você, Capitão. – a música mudou, JARVIS parecendo ter selecionado quase propositalmente “Can’t Smile Without You”. – Golpe baixo, JARVIS.

— Ele tem um ótimo timing. – Brincou o soldado, abraçado à amante, que deu um sorriso tenso, antes de se afastar brevemente:

— Steve, o que estamos fazendo? Isso não vai mudar nada, você sabe. – Sua mente ainda estava no trabalho, e dificilmente mudaria o foco.

— Você pensar obsessivamente nisso também não vai. Estamos fazendo tudo o que podemos, mas se destruir em culpa não vai ajudar, Nat. – Pararam de dançar, enquanto a espiã esfregava a nuca com as mãos em gesto claro de exasperação. – Em dois dias, estaremos naquele evento, e então tudo será mais rápido. Você está preparada, já cobriu todas as brechas e possíveis deslizes, mínimos que fossem. Agora, precisa soltar.

Romanoff respirou fundo e assentiu: estava mentalmente cansada, após todos aqueles dias, e queria conseguir parar de pensar e ter pesadelos com aquilo; Steve a puxou para si, esfregando suas costas e braços com as mãos antes de sugerir:

— Vamos tomar um banho. – E antes que ela protestasse. – Vai me deixar tentar ajudar, ou não?

— Você aprendeu a ser irritante com o Clint.

— Quase isso. – O Capitão sorriu e acariciou os cabelos da espiã, beijando sua fronte antes de levantá-la no colo, rindo com seus protestos, os quais acabaram também morrendo em alguns risos quando ele a sentou na borda da banheira.

Um pouco depois, estavam os dois na água: Rogers sentado atrás de Natasha, tendo-a recostada a seu peito enquanto massageava seu corpo, falando baixinho em irlandês. Romanoff não era fluente, mas entendia algo do que ele dizia – elogios e palavras tranquilizantes, em sua maioria – e, embora a princípio houvesse ficado desconfortável com aquele tipo de cuidado e atenção, acabara por ceder ante uma única pergunta: “por que não?”. Percebera não ter resposta satisfatória além dos condicionamentos marciais martelados por décadas em sua mente, e sair de seu estado “automático” e profissional era exatamente o que estava tentando fazer, o que a levara a ceder, enfim.

— É tão ruim, assim? – Perguntou o soldado, suas mãos apertando suavemente os músculos tensos da companheira, descrevendo toda a linha dos ombros até a base da nuca, seguindo esse caminho com os lábios, depois. Em resposta ela inclinou a cabeça para trás e suspirou de satisfação, antes de sussurrar com leve tom de divertimento:

— Se contar isso para alguém, Capitão, vou ser obrigada a ocultar seu cadáver.

— Vou entender isso como um “obrigada”. – Devolveu Rogers, apoiando o queixo na curva do pescoço de Natasha, que sorriu e se permitiu relaxar um pouco mais naquele abraço.

— E foi um. – A russa virou o corpo o suficiente para poder fitar o namorado e, embora ainda tivesse aquela sombra de preocupação no olhar, também havia ali gratidão e algum afeto se exibindo timidamente. – Lembre-me de te agradecer apropriadamente, quando tudo isso terminar, está bem? – Ela se virou de modo a sentar sobre as pernas do homem, seus lábios a centímetros dos dele, a mão esquerda no peito musculoso, os olhos de esmeralda fixos nos lagos azuis de Steve. – Farei valer a pena.

Ele sorriu e segurou o rosto da amada, puxando-a para um beijo demorado:

— Você é minha recompensa, Natasha. – Seus beijos desceram pelo pescoço dela, fazendo-a se remexer em seu colo à procura de mais contato, uma das mãos indo se perder espontaneamente em seu cabelo. Rogers sorriu contra a pele da amante e deixou um beijo suave em sua clavícula. – Mas esperarei ansioso pelo fim de tudo isso. Estou curioso para saber o que você pode ter imaginado.

A espiã devolveu o sorriso com um toque sedutor quase perigoso antes de sussurrar ao ouvido do companheiro:

— Exercite sua imaginação o quanto quiser, Capitão, mas ainda vai acabar surpreso.

— O dia em que não ficar, Tasha, começarei a me preocupar. – Foi ele quem iniciou o beijo, agora, profundo e dominante, disputando com ela pelo controle. – Deixe eu te fazer esquecer o mundo, por hoje, Nat.

A resposta dela foi unir seus lábios novamente, um consentimento mudo e mais do que claro. Esquecer parecia a melhor alternativa possível, e se podiam dar isso um ao outro, bem... Por que não?

Mais tarde, deitados na cama de frente um para o outro, conversaram sobre vários assuntos aleatórios – todos passando bem distante do pesado caso em que trabalhavam – e Steve até mesmo brincou sobre um dia se aposentarem e mudarem para algum lugar onde pudessem levar uma vida normal. Ambos riram da possibilidade, mas Natasha o surpreendeu com seu comentário:

— Se houvesse um modo... – Logo em seguida a russa deu de ombros com aparente indiferença e deitou sobre o braço, a mão livre traçando desenhos imaginários no corpo do soldado, antes de descrever um sorriso de canto. – Querendo fazer de mim uma mulher honesta, Rogers?

— Nem sonharia em tentar fazer de você o que fosse, além de uma mulher feliz. Gosto das suas metamorfoses, Romanoff. – Devolveu no mesmo tom, mas trazendo um leve calor ao peito de Natasha, pela verdade presente em seu rosto ao dizer; quando se aproximou e abriu os braços num convite, ela não se recusou a encontrar posição em seu abraço. Estendendo o braço esquerdo acima da cabeça, acomodou-se contra o corpo rijo e quente do parceiro, sua mente focada no aqui e agora, encontrando alguma paz naquele instante. E mesmo que parte de si quisesse arrancá-la dali, leva-la de volta à vigília, erguer suas barreiras e manter posição até tudo se encerrar, Natasha silenciou esse lado. Por uma noite, daria a si mesma e a Steve aquele repouso, e não se sentiria culpada por isso.

Mesmo que jamais fosse admitir isso em voz alta, a sensação dos braços de Steve ao seu redor bania o sentimento de estar sozinha – seu companheiro da maioria das noites – e afastava os pesadelos. E de algum modo, sabia que sua presença fazia o mesmo por ele. Adormeceram daquele jeito e, pela primeira vez desde que começara a se passar por Melinda Lambert, a espiã teve um sono sem sonhos.

 

*

 

Natasha se sentou na cadeira ao lado da cama de Peggy, após arrumar no vaso sobre o criado-mudo as flores que lhe trouxera, e segurou a mão da outra mulher com uma gentileza que poucos recebiam de si. A cama de madeira maciça e lençóis cor de creme comportava sobre si uma mulher de bastante idade, cabelos compridos e brancos impecavelmente arrumados, rosto bastante enrugado pelos mais de noventa anos, porém dotada de olhos vivazes como poucos, cheios de inteligência e de vontade, mesmo que agora tivessem um brilho cansado somado à determinação onipresente. O quarto de paredes amarelo-pálido, com cortinas rosa-champagne puxadas para expor as quatro janelas de folha dupla totalmente abertas, e mobília simples e funcional não poderia denunciar que ali estava uma das melhores espiãs de sua época. E talvez exatamente por aparentar tanta fragilidade e delicadeza em seu bom gosto elegante é que Carter houvesse sido tão excepcional: as pessoas a subestimavam, e percebiam tarde demais o erro. A ruiva aprendera a não fazer isso logo em seu primeiro encontro com a inicialmente rival, e posteriormente amiga.

— Oi, devuschka. Como você está? Sharon me disse que não andou muito bem. – A Widow e o Capitão eram as únicas pessoas que a chamavam de garota, o que fazia a ex-agente sorrir, evocando o melhor de sua juventude.

— Hmpf... – Peggy grunhiu e revirou os olhos para a preocupação da russa. – Para meu problema não existe conserto, Natasha. Estou velha, e isso não tem remendo. – Ela parou por alguns segundos, fitando a amiga de tantas décadas, cuja aparência não parecia sequer um dia diferente do que era no dia em que se haviam conhecido. – Pelo menos, não agora. Mas não comece a comemorar: ainda não vai se livrar de mim.

A russa deu um sorriso e apertou levemente a mão de sua amiga; a longevidade podia ser uma maldição, e às vezes a mulher se arrependia profundamente dos poucos laços que criara, sabendo-se fadada a viver muito mais do que seus entes queridos... Mas o arrependimento pouco durava, antes das boas lembranças resultantes desses poucos vínculos afastarem o fantasma da perda.

— Bom ouvir isso. Não estou preparada para uma vida em que você não seja uma pedra no meu sapato, Margareth.

— Você, Natalia, está preparada para absolutamente tudo. – devolveu a idosa, finalmente puxando a outra para um abraço. Sabia que Nat não fazia o tipo que abraçava, mas não estava nem aí. Quando finalmente se afastaram, tornou a se recostar nos travesseiros contra a cabeceira e perguntou:

— Em quais problemas está metida, agora? Posso sentir daqui o cheiro das engrenagens girando em sua cabeça.

— Só... Uma missão que está se tornando mais pessoal do que deveria. Não se incomode, está quase no fim.

— Deixe adivinhar... Crianças envolvidas?

— Aprimoramento humano. – Concordou a espiã, dando de ombros como se não importasse. – Ossos do ofício.

— Vou fingir que acredito, só para me poupar de uma longa discussão. – Os olhos escuros de Peggy se haviam toldado de preocupação: Natasha poderia se fingir de inatingível para quase todos, mas Margareth a conhecia quase tão bem quanto Barton o fazia. Tentando distrair a outra do assunto, desconversou. – Agora me conte... como estão você e o Rogers? Vão parar de se enrolar, ou vou ter de bater suas cabeças uma na outra, até que entre algum bom senso nelas? – Havia uma nota de humor ácido em suas palavras, o que fez Natasha rir silenciosamente antes de responder:

— Nós... Decidimos tentar. Não sei exatamente o que temos, mas é alguma coisa. Estamos nos dando uma chance.

Peggy se empertigou na cama, olhando pela janela de cenho franzido:

— Onde está o alerta de tornado em New York? – Mesmo tentando, não conseguiu evitar o tom divertido em sua voz, genuinamente feliz por ambos. – Achei que não ia viver para ver isso acontecer! – Vendo o apertar de lábios da russa, tratou de tranquiliza-la – Os dois terão vidas longas demais para serem passadas sozinhas. Apenas vocês não enxergavam o que vinha acontecendo, Natalia. É bom saber que resolveram ser honestos consigo mesmos, e deixar para trás os conceitos furados que os impediam.

Natasha bufou: Peggy sempre tivera uma ausência absoluta de travas na língua... Mas sabia que a mais velha focava em enchê-la de perguntas e observações para não expor a si mesma, e os próprios sentimentos. Eram mais parecidas do que os outros podiam imaginar, e era a vez de Romanoff perguntar:

— Como você está, com tudo isso, devuschka?

— Está falando da HIDRA a SHIELD... – Por alguns momentos os ombros de Margareth caíram, e ela parecia carregar o peso do mundo. A Shield fora sua vida, seu mundo... – Já sentiu que construiu uma fortaleza sobre pilares de areia?

— Já. – A Vingadora aproximou mais a cadeira da cama. – Não foi sua culpa. E coisas muito boas resultaram do que você criou, Peg. A Shield vai se recuperar, purgada agora da influência da HIDRA.

— Aconteceu sob os meus olhos. Por décadas. Começo a me questionar o quão boa realmente fui... – Sua fala foi interrompida pela mão de Natasha em seu ombro;

— Você foi a melhor. Ainda é. Mas até os melhores cometem erros: foi você quem me ensinou isso, lembra? – Margareth se lembrava, sim. Em uma das tantas vezes em que se haviam defrontado, dissera a Romanoff que esta era a melhor espiã que já conhecera... Mas que até os melhores podiam errar. Dissera isso logo antes de empurrar a Black Widow da borda de um penhasco na Irlanda, quando disputavam a posse do mesmo objeto. Ah, sim, sua amizade na época da Guerra Fria fora tudo, menos convencional ou tediosa. A lembrança trouxe um sorriso nostálgico ao rosto da anciã.

— Com todos os tiros e socos que trocamos, às vezes eu sentia que você era a única que realmente me entendia, naquela época, sabe?

— Você era a coisa mais próxima de uma amiga que eu possuía. Gostava de você. Gostava de me irritar com você, de lutarmos e competirmos. Era um bom treinamento, divertido... E de um modo insano, confiava mais em você do que nos meus chefes.

— Então poderia continuar confiando, agora, e desembuchar a respeito do seu trabalho atual. Steve estava morto de preocupação com você, ainda ontem. – Droga, a mulher era insistente! A Viúva Negra apertou as mãos em punhos, não gostando nada da sensação que lhe vinha, mas acabou explicando resumidamente a situação, especialmente sobre Lucy, omitindo os detalhes dos experimentos com os quais vinha travando contato. Algumas coisas simplesmente não precisavam ser contadas, nem ela teria estômago para isso, se não fosse absolutamente essencial. Peggy poderia dormir sem esses detalhes.

— É isso. Vou resolver o problema em alguns dias. Como disse, nada com que se preocupar.

— E o que vai fazer com a menina? – Peggy não precisava que Natasha falasse como se sentia com tudo aquilo; entendia perfeitamente bem todas as implicações.

— Minha obrigação. Garantirei que fique a salvo, e é como estará no Instituto Xavier. Eles estão preparados para esse tipo de criança, e assim que ela for para lá, tudo estará resolvido.

Peggy não se manifestou sobre a alternativa. Era pessoal demais e, embora ela achasse que eventualmente pudesse ser bom para a amiga, Natalia não era um tipo maternal e os Vingadores não eram o grupo mais indicado perto do qual criar uma menina. Assim, a mais velha apenas deu de ombros e suspirou levemente; a ruiva entendeu o gesto, mas esse assunto não era algo que estivesse aberto a discussões.

— E o que vai fazer, agora? Infiltrar-se? – O tom de voz de Carter modificara totalmente enquanto, através das conversas com uma das poucas pessoas a quem realmente considerava sua amiga, revivia os antigos tempos da espionagem. Natasha não conseguiu deixar de esboçar um leve sorriso e relatar o que podia, valorizando demais os apontamentos que Peggy fazia sobre seu plano – compartilhar estratégias traçadas e revisá-las juntas era algo que haviam feito ao longo de muitos anos - e se sentindo quase nostálgica dos tempos em que agiram juntas em campo, fosse como rivais, amigas ou aliadas forçadas. Peggy fora a única pessoa em quem confiara, até que Clint entrasse em sua vida, e continuava sendo uma das raríssimas exceções para a quais os escudos emocionais da Black Widow se permitiam baixar um pouco... Algo que começara a ocorrer mesmo antes que desertasse da URSS. Muito antes.

 

Flashback on

     Peggy respirou bem fundo e incorporou seu disfarce; suas únicas esperanças eram atuar suficientemente bem para convencer os soviéticos ali de ela ser apenas uma secretária sem importância, e que não a revistassem. Ia se virar e abrir a porta, quando uma pistola foi pressionada contra sua cabeça, e uma voz feminina falou quase ao seu ouvido:

    - Você pode abrir essa porta, e ser presa, ou escutar o que vou lhe dizer e talvez escapar com vida e dignidade. Vire-se devagar.

     Sabendo a quem pertencia a voz, Margaret se virou lentamente, sem deixar transparecer medo em seus olhos ao encarar a mulher ruiva que vira mais cedo. Ter uma pistola apontada para sua testa não era o bastante para fazer Carter tremer, e a soviética pareceu intrigada, embora seus olhos não demonstrassem emoção alguma.

     - Pois bem? Estou ouvindo. - Poderia lutar, mas o barulho certamente atrairia reforços.

     Natalia baixou a arma, mas a manteve em mãos enquanto falava:

     - Você não é minha missão. Chegou tarde, perdeu essa disputa e não é ameaça, hoje. Mas se meus colegas puserem as mãos em você, isso não vai fazer diferença, para eles.

     - E por que não me entrega, então? Aumentaria seus pontos com eles.

     - Como disse, você não é minha missão. No dia em que for, eu mesma enfiarei uma bala em sua nuca, mas até lá… Ganhou meu respeito, agente Carter. Alguém como você merece uma morte digna, não as coisas que lhe farão. Além disso… É útil ter uma "conhecida" do lado ocidental do mundo.

     - Se espera que eu lhe dê informações, é melhor me matar agora, já que não quer me entregar a seus colegas sádicos. - Peggy procurava uma brecha, uma falha que fosse, e sabia que talvez tivesse uma chance contra a assassina, mas também sabia o que lhe fariam, se fosse capturada. Suas opções não pareciam nada boas.

     - Não quero suas informações. Isso eu consigo com facilidade, e ficaria desapontada se você cedesse. Mas um dia os lugares podem estar trocados, e eu espero que você se lembre desta "gentileza". Agora: vai sair daqui e seguir direto até o homem de casaco marrom, de couro, no final do saguão. Não olhe para os lados nem fale com ninguém até chegar a ele, não importa quem lhe dirija a palavra. Vá direto a ele, e diga mir protsvetayet.

     - A paz floresce… O que significa?

     - Que você é parte do meu pessoal infiltrado. Ele te deixará ir. Você será seguida por dois ou três dias, então não vá para sua casa, nem entre em contato com seus amigos. Suma. Isso os irá convencer de quem suporão que é. - Natasha guardou a pistola e segurou o trinco. - Agora é com você.

     Confiar naquela mulher era loucura, e Peggy sabia. Não fazia sentido que a Viúva Negra a ajudasse, e a britânica temia as consequências de aceitar aquela ajuda, mesmo se fosse verdade. Porém, aceitar a ajuda lhe dava um problema para o futuro, e o que tinha agora era um problema imediato. Com Romanova poderia lidar, depois. Por ora precisava sair daquilo não apenas viva, mas capaz de exercer seu ofício, e apenas por isso fez exatamente o que a outra espiã falou. E por meses aquele encontro a atormentou, fazendo-a imaginar o verdadeiro motivo para a assassina sem quaisquer escrúpulos tê-la ajudado como fizera, enquanto a dívida não vinha ser cobrada.

 

Seis meses depois

 

O som de alguém abrindo sua janela fez Margaret apanhar rapidamente sua Colt e seguir para a sala de arma em punho; nunca imaginara que encontraria a Viúva Negra caída no chão de seu apartamento, a perna amarrada por um torniquete ensanguentado, muito pálida e descomposta, seu equipamento desfalcado e os trajes rasgados por tiros de raspão e facas.

— O que está fazendo aqui, Romanova? - Perguntou com voz rígida. - Se quer segredos, errou o lugar: não guardo nada em casa.

— Se quiser disparar essa Colt e acabar com isso, estaria me fazendo um favor. - A outra tinha tanto ou menos medo da morte do que Peggy, e só quando ela se dobrou sobre si mesma, tentando não desmaiar, foi que a britânica teve certeza de não se tratar de uma farsa. Contra toda a sensatez, abaixou-se ao lado da russa e examinou seus ferimentos: a maioria superficial, exceto pela bala na coxa direita, cujo sangramento só era contido pelo torniquete improvisado com um cinto.

— Caso pretenda me matar, eu agradeceria se fosse rápido. - Havia um tom orgulhoso e arrogante na voz de Romanova, e por alguns segundos Carter considerou realmente balear a espiã e terminar com aquilo. Mas não conseguiu. Não quando, há poucos meses, fora ela quem estivera vulnerável, e só conservara a vida por causa da mulher em seu chão. Finalmente, passou o braço da outra por seus ombros e a ajudou a se levantar, levando-a para o banheiro:

— Você precisa de um hospital. Até um idiota vê que perdeu muito sangue.

— Preciso de uma pinça, faca e um isqueiro. - Respondeu a russa. - Se for a um hospital, agora, vou acabar meus dias em Guantánamo Bay. Prefiro a bala na cabeça.

Era verdade, e Peggy sabia. Assim, apenas pegou o material solicitado e mais algumas coisas, e voltou para o banheiro, ajoelhando ao lado da outra agente. Sabia o bastante de primeiros socorros, tendo servido no exército, mas não imaginava como a russa poderia ficar mais do que algumas horas sem um hospital, mesmo com um atendimento preliminar.

— O torniquete está frouxo. - Constatou a inglesa, desfazendo o nó no cinto em torno da coxa de Natasha. - Isso vai doer. - A ruiva apenas assentiu e inclinou a cabeça contra a parede, afogando um grito quando Peggy apertou com força, amarrando novamente a tira. - Você não vai gostar, mas preciso desinfetar isso.

— Vou ter de lavar o sangue coagulado, primeiro, para ver o estrago. - Com uma força de vontade que impressionou a rival, Romanoff se levantou com a perna boa e colocou o membro ferido dentro da banheira, rasgou o tecido da calça para expor melhor o ferimento, ligou a torneira e lavou profusamente com água e sabão até conseguir ver a pele intacta e a injúria do projétil. - Yabat'. - Olhou para a garrafa na mão de Peggy e perguntou - Álcool puro ou bebida?

— Uísque. Foi o mais concentrado que achei. - Ela viu Natasha estender a mão, e lhe entregou a garrafa, mas não esperava que a espiã primeiro desse dois generosos goles na bebida, antes de verter outro tanto sobre a perfuração, ofegando ao fazê-lo, e posteriormente devolvendo o recipiente. - Sério?

— Dois goles para dar coragem. - Havia um leve sorriso arrogante no rosto da russa, que xingou ao pegar a faca e tentar remover a bala, sem muito sucesso.

— Deixe que eu faça isso, antes que você acabe com a própria sorte e seccione a artéria femoral. - Não era um pedido, e a agente americana tomou a faca da outra, usando a lâmina e a pinça esterilizadas em álcool para remover o projétil de chumbo. Não era de surpreender todo aquele sangue: a munição se estilhaçara antes de penetrar a carne, de modo que havia um fragmento principal, mas inúmeros menores que alargavam a perfuração. Foi um trabalho um tanto demorado, mas afinal Carter removera doze pedaços de diferentes tamanhos da perna da oponente. Um milagre que a artéria houvesse escapado ilesa. - Como chegou aqui em cima, com isso?

— Pelos telhados. - Disse a ruiva, como se fosse óbvio, e ante o olhar impaciente da outra, foi mais específica. - Somos do mesmo ramo. Você sabe que, quando precisa sobreviver, não existe dor.

— E veio direto para a casa de uma rival.

— Ou você me mataria, ou me ajudaria. Como eu disse, não me importo de morrer; não digo o mesmo de cair nas mãos da CIA.

— Se você quisesse morrer, teria atirado em si mesma. É orgulhosa demais para pedir a outra pessoa. - Respondeu Margaret, limpando novamente o ferimento com álcool e um pano. - Sabia que eu ajudaria.

— Eu esperava que sim. Arrisquei. O que tinha a perder? - Um gemido trêmulo escapou da boca da Viúva Negra. - Está adorando isso, não?

— Ter você sangrando na minha banheira? Poderia imaginar uma noite de sexta melhor. - Ela pegou o isqueiro e a faca. - Tem certeza disso?

Natasha apenas anuiu e pegou os dois objetos, aquecendo a faca na chama até que começasse a se avermelhar, quando então introduziu a lâmina na ferida, mordendo as bochechas até o sangue para abafar o grito quando o cheiro de carne queimada se espalhou pelo ambiente. Soltou o objeto com mão trêmula, e ia soltar o torniquete quando Peggy deu um tapa em sua mão:

— Vou dar pontos, fique quieta. - De fato, ela trouxera agulha e uma linha grossa de nylon, provavelmente algo que serviria para costurar as grossas fardas do exército, e certamente uma das poucas coisas que não se romperiam ao segurar os músculos da agente no lugar. Carter se dedicou ao processo meticulosamente e em silêncio, e após fechar totalmente a ferida da coxa, suturou também os três cortes mais profundos nas costas e braços da outra. - Pelo menos não vai sangrar. Mas precisa de antibióticos.

— Conseguirei quando voltar para Moscow. - Natalia ia se levantando, quando subitamente sua visão escureceu, e foi de joelhos ao chão.

— Não está em condições de ir nem até a esquina, agora. Precisa descansar.

— Sua casa não é um hotel, e não somos amigas. Você me ajudou, e sou grata, mas ainda pertencemos a lados opostos. - Ela conseguiu se erguer às custas de teimosia, e claramente não estava apta a fugir. Mas que opção tinha?

A mão de Margaret apertou o ombro de Romanoff:

— Você não é minha missão, ainda. Quando for, enfiarei uma bala em sua nuca, mas não vou deixar meus colegas lhe fazerem as coisas que com certeza fariam a uma mulher. - Quase as mesmas palavras de Romanoff, no passado. - tome um banho, coloque roupas que a disfarcem na multidão, durma, e amanhã vá aonde quer que deva. - Por um segundo achou que a rival recusaria, mas então a viu suspirar e encará-la nos olhos, o olhar verde mostrando apenas um profundo cansaço, e algo como gratidão quando sussurrou:

— Obrigada.

Peggy apenas assentiu e indicou a banheira. Saiu por dois segundos e voltou com um conjunto de roupas suas e uma toalha, que colocou sobre a pia.

— Quando sair, espero por você na cozinha. E eu vou saber se tentar ir a qualquer outro cômodo, primeiro. - Saiu e cuidou de fechar a porta de modo que o trinco fizesse barulho ao ser girado, assim saberia o instante em que Romanova ia deixar o banheiro. Preparou chá, dissolvendo nele comprimidos para dormir. A russa saberia, é claro, mas não beber demonstraria má-fé e intenções escusas. Em resumo, Peggy estava em seu território, agora, e o jogo seria por suas regras.

Terminou de preparar o jantar, colocou a mesa para duas pessoas - ter companhia era desconfortavelmente estranho por si só. O fato de ser a rival com a qual trocara mais do que alguns golpes e tiros não chegava nem aos pés de ter alguém em sua casa, além de Jarvis e Howard, e coisas bizarras eram mais do que rotineiras. Talvez os amigos tivessem razão, e estivesse se tornando misantropa. No segundo seguinte, a porta do banheiro foi aberta, e Romanova apareceu à porta.

— Obrigada pela ajuda. - Ela enrolara o traje pelo avesso, formando um pequeno rolo amarrado pelo cinto, envolvendo o que restara de seu equipamento. As roupas de Peggy haviam ficado levemente compridas para a mulher ruiva, mas serviriam para se disfarçar na multidão; as mangas compridas escondiam os cortes nos braços, e a saia ir alguns dedos abaixo do joelho seria conveniente para esconder qualquer sinal do tiro.

— Eu lhe devia uma. Agora sente-se: precisa comer, depois de perder tanto sangue. - Ela colocou o chá diante de Natasha, que se sentou ao mesmo tempo que a "anfitriã". Enquanto esta se servia, a Viúva Negra pegou a própria xícara e sentiu o cheiro discretamente, fingindo apenas assoprar. Peggy percebeu. - Não perca seu tempo disfarçando. É um sedativo: vai ajudar com a dor, e me deixar mais tranquila sobre olhos curiosos em minha casa.

— Pensei que não guardasse nada em casa. - Natasha bebeu um gole, com um esboço de sorriso desafiador. Geralmente um sonífero não faria efeito em si, mas não estava em sua melhor forma física, e certamente dormiria a noite inteira. - Nossas interações nunca se tornam desinteressantes, agente Carter.

— Eu sei o que eu disse. Mas agora, você não sabe qual é a verdade. - Peggy levou uma garfada à boca, devolvendo o sorriso presunçoso, e ficaram em silêncio por alguns segundos. Finalmente a britânica prosseguiu. - Naquele dia, em Berlim… Por que me ajudou?

— Eu não menti, quando falei naquele dia. Você é minha rival, mas eu a respeito por sua inteligência, capacidade, compromisso. - Natasha fez uma pausa, comendo, como se pensasse no que dizer. - Homens não lidam bem com mulheres que fazem coisas supostamente masculinas. Não gostam de mulheres no comando, e se sentem frustrados ao serem superados. O que quer que lhe fizessem, não seria interrogatório, nem execução, mas tortura e assassinato da forma mais degradante, apenas para dar vazão às suas frustrações e raiva. Pessoas como você merecem mais consideração do que isso. - Ela soltou o garfo e bebeu mais um pouco do chá. - E você? Por que me ajudar, em vez de me matar ou prender?

— Razões similares. Nós somos rivais, não inimigas: não a odeio, nem tenho qualquer sentimento pessoal a seu respeito, além de alguma admiração. Os rapazes da CIA não são muito diferentes dos da KGB. Além disso, como falei, eu lhe devia, e não gosto de ter pendências.

— Podia ter me matado. Se não há credor, não há dívida.

— Você não era minha missão. - Finalizou Peggy, querendo encerrar o assunto. - E eu pago minhas dívidas. Agora termine de comer, antes que o sedativo faça efeito: se dormir na mesa, é onde vai ficar. – Por mais absurda que fosse a situação, a verdade é que ambas as mulheres pareciam se divertir em algum nível, instigadas pela presença de quem tanto antagonizavam quanto respeitavam. Já haviam frustrado uma à outra vezes o suficiente, sempre empenhadas em uma complicada partida de xadrez jamais vencida em definitivo, quase desejosas do próximo encontro, do próximo desafio... Não era fácil achar rival à altura, e essa admiração mútua talvez fosse, de um modo próprio da Guerra Fria, o mais próximo de amizade que já haviam experimentado em seu ramo.

     O restante do jantar foi silencioso e, depois de ir para o quarto de hóspedes, Natalia dormiu profundamente, não apenas pelo sonífero, mas por saber que Margareth era, por mais insana que fosse tal definição, confiável. Estava mais segura naquele quarto do que em seu alojamento na KGB, e a noite de sono possibilitou a seu organismo aprimorado se refazer o suficiente para, assim que o sol ameaçou surgir, sair pela janela da outra espiã, deixando um bilhete com apenas uma palavra sobre a cama arrumada:

“Spasibo”

Flashback off

 

Já era quase noite quando Natasha saiu da casa de Margareth, aliviada por ter repassado seu plano com alguém tão experiente quanto ela e que não se encontrava emocionalmente comprometida; melhor ainda era saber que, mesmo lidando com coisas que agitavam questões profundamente pessoais para si, sua técnica de distanciamento continuava eficaz o bastante para evitar erros. Um alívio mais do que bem-vindo, assim como encorajamento, uma vez que em duas noites vestiria a máscara de Melinda Lambert não por detrás da tela de um computador, mas diretamente no covil das bestas, e não havia como dizer por quanto tempo permaneceria ali. O jogo estava, enfim, começando para valer.


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Notas finais do capítulo

É isso, gente!!! Um capítulo mais suave, mostrando os elos emocionais que a Nat tem, com pessoas que realmente a amam. Esperamos que tenham gostado, e digam o que acharam desse flashback com memórias da Black Widow em interações passadas com Peggy Carter: se gostaram, teremos mais, ok?
Obrigada de coração a todo mundo que nos acompanha!!!! Beijos enormes, e até o próximo!