A Aranha na Teia escrita por Elvish Song


Capítulo 3
From Hell to Heaven - Part 1


Notas iniciais do capítulo

Olá!!! Gente, desculpem a demora, mas tivemos um monte de provas e trabalhos, então só deu para sair capítulo agora, mas aqui estamos! Obrigada por não desistirem de nós!!!!
Aviso: contém cenas de tortura psicológica, e pode ser gatilho. Vai ser um capítulo pesado, mas nós juramos que o próximo vai aliviar, ok?
Sem mais delongas, boa leitura!



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                Clint e Natasha chegaram pouco depois ao Instituto Xavier; à frente do portão, Tempestade, Ciclope e Jean Grey aguardavam com posturas sérias; assim que a espiã saiu do carro, trocou um aceno de cabeça com a outra ruiva, profissional:

                - Boa noite, Doutora Grey. Esses são meus parceiros, Hawkeye – Indicou Clint, que pegava nos braços a médica da HIDRA – e Capitão América. – Steve acabava de descer da moto e remover o capacete; a telepata os cumprimentou com a cabeça:

                - Senhores. – Sua atenção se voltou para Natasha, outra vez. – Preparamos o espaço, mas não vou usar telepatia para arrancar as informações: as informações virão com imagens e memórias, e corro o risco de matar a mulher por acidente. Posso influenciá-la, não entrar em sua mente.

                - Vim preparada para isso. Vou deixá-la colaborativa para você, isso se não tirar tudo o que quero ainda hoje. – Removendo a peruca loira e as lentes, a russa pegou sua valise e se juntou aos outros.

                - Por aqui. – Foi tudo o que Ororo falou, virando de costas e tomando um caminho por trás da mansão, para baixo através de escadas de pedra que conduziam ao porão. Dali, um longo caminho por alas hospitalares, laboratórios, até um corredor praticamente vazio, com três celas. Duas eram mobiliadas como quartos normais, porém desprovidas de quaisquer objetos soltos ou cortantes, e a terceira possuidora apenas de um estrado de madeira com um colchão, uma mesa e duas cadeiras, tudo de um branco imaculado. Romanoff assentiu em aprovação: a homogeneidade do branco era um tormento psicológico por si só, capaz de causar alucinações intensas a longo prazo, na busca da mente por qualquer estímulo que fosse. Paredes acolchoadas e à prova de som aumentavam o total isolamento, ampliando a eficácia.

                - Por que têm essas coisas, aqui? – Perguntou Steve, bastante incomodado.

                - Nem todo mutante é “bom”, Capitão. – Respondeu Scott Summers. – Precisamos de uma ala de contenção, seja para quem tem más intenções, seja para pessoas que nos são enviadas em pleno descontrole. Imagine ter um Hulk solto que não machuca apenas aos outros, mas a si mesmo. É com o que temos de lidar, por vezes, e para isso temos um ambiente controlado.

                - Acabamos de cometer um sequestro. – Comentou Clint, colocando Melinda Lambert na cadeira e ajudando Natasha a amarrar os membros da prisioneira. – Não estamos aqui para julgar ninguém.

                Terminando de prender sua vítima, Natasha ficou em pé e encarou os três mutantes; estava mais do que óbvio que Ciclope e Tempestade achavam aquilo muito controverso e, provavelmente, se sentiam tão incomodados quanto Steve com a ideia... Provavelmente até mais, pois logo a professora Grey se manifestou:

                - Scott, Ororo, eu cuido de tudo por aqui. Mantenham a ordem na escola, e não quero nenhum aluno descendo até aqui. – A dupla anuiu e saiu em silêncio, enquanto Romanoff pegava a seringa com adrenalina. Ficavam aliviados em sair de perto da espiã, pois não apenas não confiavam nela, como se opunham profundamente aos métodos que utilizava. Se haviam recorrido a suas habilidades, devia-se unicamente ao profissionalismo e eficácia da espiã, e nada mais. Natasha entendia muito bem o que achavam de si, e não estava minimamente preocupada, contanto que não atrapalhassem sua missão, e pagassem por seu trabalho ao fim de tudo. Sem ligar para a saída dos mutantes, declarou:

                - Vou usar uma técnica antiga, um tanto brutal, mas eficaz: a vítima tem alucinações de horror que podem ser influenciadas com sugestões mínimas. Dura aproximadamente uma hora, e depois o indivíduo entra num estado de fragilidade emocional e apatia. Geralmente são necessários três ciclos iniciais, e é como vou começar. Mas primeiro preciso ter uma conversa com ela ainda sã.

                - Posso provocar as sugestões para dirigir os ciclos de alucinações. Não preciso ler os pensamentos dela, para isso. – Natasha assentiu, e se voltou para os colegas:

                - Não vai ser bonito. Quem quiser se retirar, a hora é agora.

                Barton sequer se deu ao trabalho de responder, pegando o notebook e celular de Lambert e indo se sentar do outro lado da cela, onde não atrapalharia a “interação” de Natasha com a cativa. Steve cruzou os braços e fez um movimento mínimo com a cabeça, indicando que ficaria. Dando de ombros, a Black Widow injetou a adrenalina no pescoço da prisioneira, que logo acordou com respiração ofegante, claramente aterrorizada ao despertar imobilizada e vendada.

                - Não lute contra as restrições: é inútil e apenas irá machucar suas articulações.

                - Onde eu estou? – A voz da outra ainda estava levemente arrastada pelos resquícios de efeito do sedativo. – Quem são vocês? O que querem?

                - Eu faço as perguntas, doutora. – Natalia segurou o rosto da cativa com uma das mãos. – Informações sobre as cobaias sobreviventes?

                - Não vou cair nesse jogo. – Declarou a morena. – Você não é da HIDRA. Não mandariam o mesmo lacaio me sequestrar e interrogar, nem fariam perguntas sobre relatórios que envio semanalmente. – Nenhuma surpresa, até ali. A mulher era brilhante, e especialista em comportamento humano; mesmo vendada, ligara os pontos ao reconhecer a voz de Natasha.

                - Não, eu não sou da HIDRA. Não mais. – A voz da espiã era desprovida de emoções, quase entediada. – Mas a pergunta permanece a mesma. Informações sobre as cobaias sobreviventes? – Deixar que Melinda soubesse não estar nas mãos da instituição para a qual trabalhava era proposital, a fim de estabelecer desde o princípio que não estavam em território conhecido e, com isso, desestabilizar o psicológico ao mudar as regras do jogo que conhecia. Porém, Melinda também compreendia qual o jogo que faziam consigo.

                - Meus estudos são teóricos. Não tenho qualquer contato com as cobaias, pessoalmente. – A psiquiatra se manteve surpreendentemente firme, inclusive na voz.

                - Mesmo? – Havia descrença e ironia na voz de Natasha. – Porque meus informantes diem o contrário. E quando meu colega terminar de decifrar seus códigos, saberemos o quão envolvida você está, de fato.

                - Meu equipamento é codificado pelos melhores da HIDRA! Boa sorte tentando. – Bem, uma pequena nota de desespero em meio à tentativa de deboche.

                - Minha equipe já foi da HIDRA. – Uma mentira parcial, mas útil, dita com o mais puro tom de satisfação. – Agora, encurte e facilite tudo isso para nós duas, e comece a falar. Você vai dizer tudo, cedo ou tarde. Seja benevolente para si mesma e poupe-se do sofrimento.

— Acho que não. – Ela ainda testava sua adversária, procurando conhecê-la melhor. – Quem contatou você? Por que está fazendo isso?

                - Pessoas que querem saber sobre os experimentos, e não se importam quanto a como vou arrancar a informação. E eu estou fazendo isso porque vou receber muito bem pelo trabalho. – A ruiva se abaixou até seu rosto estar a centímetros do da outra, sua respiração fazendo cócegas no rosto dela, modulando a voz para um tom de enervante intimidade. – Mas e você? Por que entrou nisso? Gosta de torturar criancinhas e jovens como ratos num laboratório?

                Melinda se manteve firme. Precisaria ser mais inteligente do que sua captora, para deduzir o que precisava a partir unicamente da voz dela. Mas podia fazer isso... Não era uma lutadora, mas a HIDRA treinara sua mente para perceber os menores detalhes...

                - Sacrifícios sempre foram feitos em nome da ciência. – Uma resposta fria e impessoal, desprovida de moral, que causaria alguma reação emocional na outra. – O conhecimento demanda que limites sejam transgredidos; a moral é apenas o entrave para o progresso das ciências. Se ninguém cruzasse essa linha, ainda teríamos medo de miasmas e humores, porque nenhum cadáver teria sido dissecado, e a medicina seria um conjunto de crendices. Afinal, dissecação de cadáveres já foi imoral. Eu só estou à frente de nosso tempo. Não odeio essas crianças: admiro-as. São únicas e perfeitas, o passo seguinte na evolução humana! Mas como poderão alcançar seu real potencial, se este não puder ser compreendido? Se não puder ser lapidado?

                Natasha sabia qual era o jogo, ali, e sabia como jogá-lo; tudo o que tinha de fazer era se despir de conceitos morais, de empatia ou emoções. Deixar a psiquiatra acreditar que a afetava e, assim, falar mais do que pretendia ao se imaginar no controle da situação. Nessa hora, poderia reverter tudo. Sim, entendia bem o preço disso, mas havia vidas demais em jogo para hesitar agora.

                - Mengele tinha a mesma opinião. E os cientistas japoneses, na Manchúria. E os Russos, na União Soviética. E muitos outros que usaram a ciência e o progresso para justificar o próprio sadismo. – Flashes de memórias incomodavam a mulher russa, não apenas as de si mesma, mas das outras meninas. O treinamento brutal e exaustivo, em que eram forçadas a se levantar e lutar (ou seria dançar? Não tinha certeza: as memórias eram confusas e provocavam pontadas atrás de seus olhos) até o limite, mesmo lesionadas ou recém-recuperadas.  E então a sala de experimentos, quando se tornou uma Black Widow... As palavras de Lambert... “O passo seguinte na evolução humana”, “aprimorá-las”, “únicas”... Ela ouvira tudo isso. Pouco importava se de uma professora de balé, ou de uma treinadora da SV, essas palavras eram uma memória real, gravada a ferro e fogo em sua alma. E despertar as memórias da SV nunca era uma boa ideia... Fogo gelado percorreu suas veias, ímpeto e resfriamento de emoções que, no momento, lhe convinha profundamente, ajudando a manter o aspecto impassível. – Você gosta do que faz.

                - Sim. Gosto. – Lambert detectara uma alteração mínima na voz da outra, indetectável para ouvidos menos treinados, mas clara o suficiente para si. Uma reação emocional, por menor que fosse. – Gosto do que isso significa, da perfeição que obteremos. Eu sou apenas um elo na cadeia de pessoas que acreditam nisso, mas um elo importante! E sei o que quer de mim: procedimentos utilizados, quem são os adolescentes sequestrados, como criamos as cobaias aprimoradas e, principalmente, onde estão. O irônico disso? – Sua voz era cheia de desafio. – Garantiram que eu não poderia dar nenhuma dessas respostas. – Agora havia franco deboche, que sequer arranhou o emocional de Natalia. Quando trabalhava, ela só sentia o que lhe convinha. – Os jovens sequestrados têm suas identidades e memórias apagadas, submetidos a um processo de condicionamento para obediência completa. São movidos constantemente de base para base, e nunca sabemos qual o próximo destino, até que tenham descido do avião. Sem nomes, nem identificações. O mesmo para os produtos de laboratório: mudamos seus nomes a cada semana, são transferidos uma vez por mês, e quase nunca mantêm contato com os mesmos membros das equipes, para evitar apegos e noção de identidade própria. Faz parte de minha pesquisa, inclusive: o caráter que se manifesta de modos diferentes em criações idênticas. É sobre o que quer saber? Sequenciamento genético, e comparação de comportamento entre crianças submetidas às mesmas situações, desde o nascimento?

                Steven e Clint viram as mãos de Natasha ficarem brancas quando as cerrou em punho, seu olhar se modificando para algo perigoso enquanto memórias muito pessoais contribuíam para aflorar a fera que um dia fora, e que não se importava em conter, agora.

                “Ela está jogando com você.” Alertou Jean Grey. “Debochando, usando o que pensa poder te desestabilizar. Acha que você terá uma reação violenta, ou passar mal à medida que expuser os detalhes sórdidos, sem dizer realmente o que desejamos saber.”

                “Ela terá uma surpresa.” Devolveu Natalia em sua mente, praticamente expulsando a outra ruiva de seus pensamentos. Sim, estava afetada, porém intencionalmente, e o tremor calculado em sua voz – disfarçado como choque, quando era misto de raiva contra a mulher e contra o passado – incitaria a outra. Os outro Vingadores se entreolharam com preocupação em relação à colega de equipe, claramente modificada por tudo aquilo; pior ainda: mergulhava em tal estado por vontade própria, por sabia-se lá qual plano houvesse traçado!

                - Sim, mas não foram tão cuidadosos. – Havia uma forçada satisfação na voz da espiã, que deixou o choque, a repugnância e o desprezo aparecerem por sob essa primeira camada de “indiferença”. – Tive acesso ao arquivo das chamadas “Crianças de Nuremberg”. Habilidades catalogadas. Números. E uma delas possui nome: Lucy.

                - Ah, sim. As sobreviventes. Os que foram fortes e mostraram que seu aprimoramento era real, que não se tratavam de uma mutação mínima entre outros mutantes, como cabelos ruivos, polidactilia e olhos azuis. Esses não apenas sobreviveram, mas demonstraram as características do ser humano perfeito. – Melinda respirou fundo. – E a menina Lucy... Ela é a perfeição completa. A partir dela, começaremos o que a raça humana deve ser.

                - Perigosa? – Novamente o tom desprovido de emoções.

                - Não apenas. – Havia um leve sorriso que misturava satisfação e crueldade, para disfarçar o medo. – Adaptabilidade, sem perder a própria personalidade. Poder inimaginável. Uma líder com a mais perfeita das mentes, e o mais aprimorado dos corpos. Recebeu um nome porque era perfeita: assim como a primeira ancestral humana, ela será a primeira de uma nova raça, melhor em todos os aspectos. – Ali estava a provocação, escancarada. – Os outros, tão insípidos, frágeis... Eram apenas ratos para estudo. Morreram como um sacrifício inevitável, seus crânios quebrados, encéfalos abertos ainda em vida para o estudo de seu funcionamento. O cérebro é praticamente inútil após a morte, não era tortura, apenas algo inevitável... – Ela engasgou quando Natalia apertou sua garganta com uma das mãos, respondendo:

                - Que bom que entende isso. Então, estamos no mesmo patamar: o que farei aqui não se trata de tortura, apenas algo inevitável para o fim que desejo. – Rosnou, soltando a garganta da outra antes que esta desmaiasse.

— Tanta paixão! – Quanto mais assustada se sentia, mais Melinda se ocultava atrás do escárnio. Só lhe importava não dizer nada! Aquele era o trabalho de sua vida, visando um bem maior! Se ela morresse, outros poderiam continuar de onde parara. Só precisava ser capaz de não ceder, e levar consigo para o túmulo os segredos que guardava. - Está se identificando? Sua respiração parece mais pesada. Seu tom de voz indica que é jovem... Deixe-me adivinhar... Saiu dos nossos laboratórios, também?

                - Algo assim. E já que você descobriu, então não vamos mais prolongar essa situação. – Natalia removeu a venda da outra, seu rosto mantido em expressão pétrea. – Imagino que já tenha ouvido falar em Natasha Romanoff. – O rosto da cientista empalideceu, e o medo em seu olhar trouxe uma mórbida satisfação. Quantos jovens não haviam empalidecido de modo semelhante ao encarar a cientista? Agora, Natasha tinha o prazer de fazer os papéis se inverterem. Em pé ao lado da outra, segurou seu rosto com força e falou em tom gélido. – Obrigada por sua colaboração. Com tanto falatório, consegui registro vocal suficiente para o modulador que fará minha voz soar como a sua. Agora, se puder ficar quieta... – Natasha pegou dois discos metálicos com círculos brilhantes concêntricos azuis e, segurando os cabelos de Melinda, prendeu ambos diretamente sobre seus olhos, mantendo as pálpebras abertas. Durou apenas alguns segundos, após os quais os removeu. – E obrigada pela identificação ocular que acabou de me dar. Serão úteis, quando eu assumir seu lugar.

                A pouca esperança que Lambert nutria de sair dali viva morreu naquele segundo; com a voz trêmula pela primeira vez, protestou:

                - Não tem como se passar por mim. Irão reconhecê-la. – Natasha não se alterou, dando apenas um sorriso zombeteiro para a outra:

                - Eu me passo por quem e pelo que eu quiser, doutora. – Seu tom era tão suave, que pareceria uma cantiga de ninar! O contato visual foi rompido quando a espiã se endireitou para guardar seu equipamento pessoal e, após puxar a cadeira restante, sentou-se ao contrário nela, braços cruzados sobre o espaldar. – Agora, já que gosta tanto de falar, eu tenho perguntas mais específicas. – A ruiva deslizou um indicador pelo rosto da outra, que se inclinou para trás a fim de fugir ao contato, sem sucesso. – Eu não vou te machucar. Não fisicamente. Mas você vai me dizer tudo. Quanto mais cedo colaborar, mais terá sobrado de sua sanidade. Então, se já estamos entendidas... Vamos começar.

                A russa se levantou e foi até a valise. Hora do show principal.

*

Natasha encarou com desprezo a pilha de nervos trêmulos em que Melinda Lambert se convertera; seis horas de trabalho na mulher, e conseguira arrancar um número relativamente satisfatório de informações: havia provocado três ciclos de alucinações de horror, conduzindo-as para provocar os piores medos da cientista. Primeiro, pegara uma garrafa d’água e, inclinando a cabeça da mulher para trás, usara filetes de água para afoga-la repetidamente, induzindo com a voz a ilusão de um afogamento. A médica quase se afogara uma vez, na adolescência, e esta era sua grande fobia: afogamento. Suas alucinações envolveram ver-se presa em uma caixa de vidro que se enchia de água, enquanto sua algoz a fitava através do vidro, fazendo a água subir, diminuindo seu nível quando Lambert estava a ponto de desfalecer, e tornando a encher o caixão quando recuperava o fôlego. O pânico a tomava por completo, levando-a a urrar de pavor, gritos que gelaram a alma dos três outros presentes. Durou uma hora, até os efeitos da alucinação diminuírem, tempo em cujo final a mais nova estava à beira do choque, havendo sofrido ânsias e paralisações de puro terror!

                Durante o primeiro intervalo – que visava tanto evitar a morte da interrogada, quanto preparar sua mente e deixá-la pronta para as próximas etapas – a espiã repetiu várias e várias vezes suas perguntas, especialmente a localização das crianças, e sobre a poderosa joia que vinha sendo utilizada nos experimentos. A mulher não sabia sobre a joia, isso era verdade em suas afirmações. Sabia apenas do soro utilizado nas cobaias, mas sua origem e composição lhe eram desconhecidas. Mas sobre as crianças... Natalia tinha de admitir que sua presa era forte, para se recusar daquela forma, durante tanto tempo; mas ninguém consegue resistir para sempre, e trabalhar fobias é o modo perfeito de quebrar a vontade de alguém, especialmente sob efeito de drogas. Quando o pico de terror se aliviou e sobreveio a apatia, Melinda tremia e chorava, implorando para a outra parar. A espiã propusera a troca: informações pelo fim da tortura. Melinda se recusou, e mesmo condicionada pela droga a colaborar, apenas chorava convulsivamente, dizendo não poder falar.

                Enquanto esperava ser concluído o intervalo de duas horas entre aplicações – não queria uma overdose, afinal – Romanoff se juntou a Clint na tentativa de acessar o notebook da médica. Ele quebrara alguns dos códigos, e acessara parte do conteúdo, mas não todo. Ainda assim, e-mails e conversas eram extremamente importantes, ainda mais quando a ruiva logo incorporaria o papel da doutora Lambert.

                - Muito bom, Gavião. Espere... – Algo chamou a atenção de Natalia, que codificou em russo e romeno a linguagem cifrada em que Barton trabalhava. Somado aos esforços dele, uma nova sessão se abriu na tela, e quando a mulher abriu a primeira pasta, Barton e Rogers viraram o rosto, sentindo-se mal. As “sereias” gêmeas, presas em cadeiras que prendiam até mesmo suas cabeças, os crânios abertos e perfurados enquanto as estruturas ósseas modificadas eram salientadas por uma substância luminosa. Contraste de algum tipo... Imagem seguinte, e a menininha ruiva, Lucy, estava estendida em uma mesa, despida, todo o corpo marcado por caneta, dividindo-o em regiões enquanto a sessão de fotos mostrava o progresso das reações a partir do soro injetado em seu braço... A pele se tornando mais e mais branca, quase translúcida, enquanto luz própria começava a emanar da criança de olhos aterrorizados. De repente, o progresso parara de ser registrado, e a imagem mostrava apenas a mesa derretida, as correias carbonizadas, parte de um corpo adulto caído cobre a mesa, os olhos explodidos... Em seu estado normal, Natasha não demonstraria reação, mas ela descera fundo demais em suas trevas, em suas piores lembranças, em seu condicionamento. Fria como estivera até então, voltou os olhos para sua vítima e, sem dizer palavra, injetou de uma vez toda a segunda dose.

                - Hora de nos divertirmos um pouco mais, doutora. – Sibilou enquanto sentava sobre as pernas da outra, os olhos fixos nos dela. – Você gosta do sengue. É hora de sonhar com ele. – E com essas palavras, cortou a própria palma superficialmente, derramando seu sangue sobre o nariz e boca da outra, esfregando-o em seu rosto. – É apenas sangue, Melinda. Muito, muito sangue. Todo o sangue que suja as suas mãos... Está pronta para encarar quem clama por ele? – Ela sabia o quanto, por mais fria e inumana que a pessoa pudesse ser, os pesadelos vermelhos eram capazes de despertar a culpa e queimar a alma, afogando a mente em culpas que não existiriam de outra forma. – O sangue está pingando, inundando seu caixão. Sangue em suas mãos, em sua vida, em sua sepultura. – Sussurrou com voz maligna, induzindo a direção dos pesadelos. Passou a mão ferida no rosto da inimiga, tingindo sua visão de vermelho, e então se levantou. – Hora de sonhar com marés vermelhas.

                E Melinda sonhou. Afogada pelo sangue de Natasha, sua mente afundou sob uma torneira que vertia sangue, e novamente estava trancada em uma caixa de vidro, mas afogando-se em sangue. Lutou e tentou se soltar, e a tampa se abriu, mas quando tentou içar seu corpo, os braços eram pesados e não respondiam. O rosto gélido de Natasha Roanoff a fitava do alto, mas não era a mulher quem a empurrava para baixo... Olhou para o lado, e crânios abertos afloraram à superfície. Crânios que brilhavam em azul elétrico, exposto sobre rostos infantis distorcidos em fúria e diversão cruel, com mãos infantis puxando-a para baixo.

                “É sangue. Você o ama, então tenha! É o nosso sangue, o que derramou de nossos corpos, de nossas almas.” – As vozes infantis sussurravam em sua cabeça, e ela lutava para respirar, eventualmente subindo à tona, apenas para mais e mais corpos dilacerados com sorrisos mortos e vingativos se agarrarem a ela, puxando-a para baixo, afogando-a no líquido espesso, acre e rubro. Tentava abrir os olhos, se debater, fugir, mas o mundo era vermelho. Sua boca provava o gosto do sangue, suas narinas ardiam com o aroma ferruginoso, e coágulos se formavam sobre seus olhos, cegando-a. O mundo era vermelho, e ela mal podia manter a consciência! Em meio a seu desespero, a voz sussurrada de Natalia Romanova:

                - Isso pode acabar, doutora. Diga onde estão, e eu a deixarei sair. – Longo tempo de silêncio, mais daquele horror, daquela luta pela sobrevivência contra os semivivos... – As crianças, doutora! Onde estão! – E sua cabeça foi novamente empurrada para dentro do sangue, dedos minúsculos dilacerando sua carne, dentes de leite se cravando em suas pernas... Mãos duras e metálicas rasgaram seu abdômen, e as mandíbulas mortas se cravaram em suas vísceras, arrancando-as do corpo da mulher como ela deixara ser feito com alguns dos pequenos... Seus gritos gorgolejantes por ajuda não eram nada além de um cântico de morte.

                Enquanto Romanoff trabalhava na interrogada, o Capitão chegou a seu limite: um interrogatório era uma coisa, mas aquilo...! Não era pela mulher interrogada, mas pela mulher a quem amava! Essa não era Natasha! E seria cada vez menos, quanto mais fundo mergulhasse nisso! Vê-la usar o próprio sangue para causar as alucinações na outra revirou seu estômago, e quando se aproximou para tentar pará-la, e viu os olhos da espiã... Ela sabia a escuridão que Natasha carregara dentro de si por todos aqueles anos, mas ver era algo totalmente diferente. Se o horrorizou? Não. Não lhe causou medo por si, nem medo da mulher, mas um profundo medo por ela. Em que inferno a espiã fora mergulhada, para ter os olhos frio de um demônio, naquele momento?

— Nat, por favor.... Já chega. Isso não é você. – Sussurrou ele, ignorando o aperto de Clint em seu braço. A russa o fitou com a mesma frieza que demonstrara durante tudo aquilo e, com uma voz cortante como navalha, respondeu:

                - Isso não sou eu. É apenas trabalho, Capitão. Se é demais para sua moral, sugiro que se retire, pois só termina quando ela me der o que quero. Matou duas daquelas crianças, já, e não vou esperar que as outras estejam mortas. Pode se poupar e esperar do lado de fora, ou lidar com a situação. Mas não tente me interromper. Pode se poupar e esperar do lado de fora, ou lidar com a situação. Mas não tente me interromper. Há vidas inocentes em jogo, nisso, você entende? – Ele apenas silenciou, sem esperar aquela reação, e ante o silêncio tomado por anuência, a russa prosseguiu – Ótimo. Então controle-se, e deixe-me fazer meu trabalho.

                Steve recuou, parte preocupado, parte profundamente incomodado pelo aspecto que a Viúva Negra mostrava; aquilo que ela fora no passado. Sempre imaginara quais haviam sido os reais efeitos surtidos pela Sala Vermelha, e agora gostaria de não ter tido uma mostra tão clara da resposta. Essa era a Natasha antes de Clint, o verdadeiro produto da KGB. Ele a viu se abaixar ao lado da interrogada, olhando em seus olhos, e dar-lhe tapas no rosto a cada vez que não recebia as respostas desejadas... E quando a viu pegar a terceira dose em menos de uma hora de intervalo, adiantou-se e segurou a Viúva Negra pelo pulso; ou pensou tê-lo feito pois, antes de compreender como, ela imobilizara seu braço às costas, num aperto que não o feria, mas do qual não podia escapar! Foi assim que o conduziu para fora, obrigando-o a se ajoelhar no corredor, fora do campo de visão dos outros, antes de falar:

                - Nunca mais interfira no meu trabalho, Rogers. Se isso o incomoda tanto, pode ir. Eu avisei de que não iria gostar, e escolheu ficar, então lide com isso ou volte para a Torre. – As mãos duras soltaram os braços do soldado, já formigando pela restrição inesperada e implacável, e a espiã voltou para dentro, deixando o militar surpreso e mesmo indignado com sua ação! Entretanto, não tentou voltar, pois não havia em si qualquer intenção de ver mais daquilo. Assim, sentou-se no banco longo junto à parede e apenas aguardou, debruçado sobre os joelhos. Não tardou para a porta se abrir e Clint vir se sentar ao seu lado.

                - Ela o expulsou, também?

                - Não, mas a Nat não precisa de babá; ela sabe até onde pode ir. E a doutora Grey está ali. – Dando de ombros, o arqueiro encostou a cabeça à parede. – Na verdade, ela não gosta de ser vista agindo, e já terminei com o notebook, então não havia motivos para ficar. – O Gavião encarou o colega com censura. – Por que a interrompeu?

                - Não pela mulher interrogada, eu garanto. E deixe-me mudar a pergunta: por que você não a parou?

                - Você é um tapado, às vezes, Capitão. – Havia um tom sarcástico na voz do outro, mas logo foi substituída por um tom um pouco mais sombrio. – Acha que é fácil para a Nat, fazer isso? Voltar a agir como a pessoa que tenta todos os dias deixar de ser, mas que é parte dela? Isso a massacra por dentro e, quando acabar... – Ele meneou a cabeça, prevendo o sofrimento da amiga. – Entenda, é pessoal dela, mas Romanoff não fica exatamente feliz quando precisa agir assim. Interrompê-la só piora tudo, porque mostra o julgamento e medo das pessoas que a conhecem.

                Steve apoiou as costas na parede, esfregando o rosto com as mãos; a sensação de impotência se lhe tornara quase desconhecida, após tanto tempo sendo o “Capitão América”, e não poder fazer nada para modificar a situação era exasperador!

                - Como lida com isso, Clint?

                - Não sou eu quem tem de lidar, cara. Nem você. Isso é com a Nat e ela mesma. Você a aceita com todos os seus lados, ou não aceita nenhum. – Clint não era o tipo que falava de suas emoções mas, por Natasha, poderia se obrigar a uma exceção. – Ela está sempre lá, por mim, quando preciso. Pode dizer que eu a salvei, mas ela é... Vamos dizer apenas que ela também ajudou minha bússola a encontrar o norte. Então, eu retribuo fazendo o mesmo: estando aqui por ela. Foda-se o que fez, os métodos que usou, não importa, eu não tenho o direito de julgar. Não peço explicações, não faço coisa alguma além de deixá-la saber que estou ali por ela, e nada no mundo vai mudar isso. Só estou ali. Natalia não é uma donzela em perigo para ser salva; só o que dá para fazer é facilitar seu propósito de ser alguém melhor, e isso inclui não pisar na bola quando ela precisar encarar as próprias sombras.

                Os dois homens ficaram um pouco em silêncio, sem saber o que acontecia devido ao isolamento acústico. Enfim Barton continuou:

                - Quer saber? Você não viu nada. A Viúva Negra foi criada para fazer qualquer coisa. Qualquer, mesmo, e não se esquece setenta anos de condicionamento facilmente. Mas quanto mais fundo ela mergulha, pior se sente ao voltar.

                Ficaram novamente em silêncio por um longo tempo, agora, enquanto Steve ponderava acerca do que o colega lhe falara, tentando ignorar o silêncio angustiante que se estendia pelos minutos... Saber que Natasha estava se destruindo, o que quer que estivesse fazendo ali, não o tranquilizava.

                - Se isso faz tão mal a ela... Por que não encontrar outra forma?

                - Nem sempre outra forma é eficaz. Como agora. Se perdermos tempo, mudam as crianças de lugar novamente, e perdemos também o miserável do Hecker, que é nossa pista para o Cetro. Muita gente vai morrer, se aquela bruaca não abrir a boca, e a Natasha carregaria cada uma dessas mortes como uma culpa pessoal, tanto quanto se houvesse puxado o gatilho para balear cada um. – Os braços cruzados do arqueiro tinham um leve tremor de ansiedade. – Melhor lidar com os demônios que se conhece, do que adquirir novos. – Mais uma longa pausa, que o fez perguntar enfim. – E o que você vai fazer, Capitão?

                - Pedir desculpas a ela, é claro. – Desconversar parecia o melhor jeito de não falar sobre coisas pessoais demais, mas Barton não compraria esse truque. Estavam falando de sua Nat, tão preciosa para ele e parte de sua família quanto seus filhos ou esposa!

                - Não me enrole, Capitão. Estou falando de como vocês vão ficar. Sabe... Não é a última vez que verá a Romanoff assim, Rogers. É o que a criaram para fazer e, mesmo tentando fazer as coisas do jeito certo, por vezes a “coisa certa” exige um caminho torto. A pergunta é: vai recuar por isso, ou seguir adiante? – O olhar do espião parecia dizer a Rogers para fazer muito bem sua escolha, porque não iria assisti-lo fazer Natasha sofrer, independente da opção que fizesse. Se desejasse romper, que o fizesse de vez, mas se decidisse continuar, então era melhor ser capaz de lidar com a situação.

                - Eu não vou recuar, Barton. – A voz do americano era determinada. – Amo Natasha com todo o coração, e a admiro muito mais do que você imagina.

                - Mas tem medo das trevas dela. Receia que um dia o “Lado Sombrio” vença. – Um esgar zombeteiro tomava o canto dos lábios do Gavião. – Cara... Não é um coisinha assim que vai derrubar a Natasha. Não chega nem perto. Acredite, ela se mataria, antes de chegar ao ponto de voltar ao que era, antes, e eu interferiria bem antes de as coisas chegarem a isso. – Um leve estreitar dos olhos, quase um aviso, como um predador alertando a outro para medir bem os próximos passos. – Ela e eu nos protegemos mutuamente há muito mais tempo do que você. Não ache que se importa com a Nat mais do que eu. – Uma respiração longa e lenta, seguida de outra longa pausa. – Mas agora, conto com você para ser a outra pessoa que guarda as costas dela, não importa o que aconteça. Não. Vacile.

                Steve apenas assentiu, confirmando que daria tudo de si. Sim, a mulher a quem amava tinha um lado terrivelmente sombrio, mas jamais lhe negara o fato; sempre fora leal e, mesmo tão fechada, contara a Steve coisas que partilhara apenas com Barton, antes. Confiara nele. Como poderia retribuir com menos do que confiança, quando ela o deixara ver algumas das feridas que carregava, a despeito do quanto lhe custava revelar coisas que, para si, eram tidas como fraqueza? Naquelas confissões mutuas, enquanto fugiam da SHIELD/HIDRA, ele vira a verdadeira Natasha; não a máscara sarcástica e invulnerável que usava diariamente, ou a face cruel que envergara ainda há pouco, mas alguém era ambas e muito mais. Não saberia dizer em palavras – Natalia possuía um talento próprio de estar além da capacidade de descrição do soldado – mas compreendia onde estava o cerne de quem ela era, e definitivamente não residia nos aspectos impiedosos da mulher.

                Não disseram mais nada por mais um longo tempo; quando estavam para se completar duas horas, a porta se abriu e Natasha saiu, vestida com sua jaqueta, o equipamento todo impecavelmente guardado, acompanhada de Jean Grey. Puderam ver Melinda Lambert adormecida – talvez inconsciente – no leito, envolta em um cobertor também branco, antes de a porta se fechar.

                - E então? – Perguntou Clint, levantando-se de imediato, reconhecendo no olhar da amiga a frieza ainda presente... A represa que ela construía em torno das emoções, com uma leve pontada de dissabor na curvatura dos lábios.

                - Ela falou o bastante. Já lancei nos arquivos compartilhados, e os detalhes, podemos tirar aos poucos. – Algo acontecera ali, pois até mesmo Jean Grey olhava de modo preocupado para a Black Widow enquanto saíam para o pátio da mansão, falando incrivelmente pouco. Steve se sentia incomodado com o anômalo silêncio, mas não ousou quebrá-lo. Cruzaram o gramado sem uma palavra que fosse, e só ao chegar no portão e guardarem o que haviam trazido foi que Jean Grey se manifestou:

                - Manterei pessoas de olho nela, e alertarei sobre qualquer mudança. Contamos com você, senhorita Romanoff.

                - As informações pertinentes já estão no seu arquivo privado. Trabalharei nas decodificações e, quando souber mais, entrarei em contato. Até o fim do mês teremos encontrado os jovens, eu lhe asseguro.

                - Eu sei. Por isso entrei em contato, e agradeço. – Com um aceno de cabeça para Natasha, Steve e Clint, despediu-se – Boa noite.

                Já fora do terreno da mansão, Natasha continuava séria, incomodada e silenciosa; falou algo brevemente com Clint, em russo, e então se voltou para Steve:

                - Importa-se de ir com Barton, Steve? Preciso pensar e fazer mais algumas coisas, e a moto é mais discreta. – Ela não encarou o amante nos olhos, e mal ouviu o “claro” que ele respondeu, antes de subir na moto, colocar o capacete e sair rapidamente do campo de vista dos homens.

Steve poderia se sentir confuso, se não soubesse que ela tinha muito com que lidar em sua mente. E sendo Natasha, ela preferia resolver sozinha. Era frustrante não poder ajudá-la, mas dificilmente haveria alguém capaz disso; como Barton dissera, era algo que a espiã precisava resolver consigo mesma; quando estivesse pronta, ela aceitaria a aproximação de alguém, e não antes disso.

Voltaram juntos para o Complexo e organizaram o material obtido – gravações, escaneamento de íris e retina, digitais, além dos aparelhos eletrônicos devidamente decodificados e com seus códigos internos bloqueados para evitar o rastreamento. Com o Complexo vazio – Banner devia estar no laboratório, para variar – cada um seguiu para o próprio apartamento, ambos atentos a qualquer sinal do retorno da Viúva Negra. Adormeceram, enfim, sem que a amiga houvesse retornado.

*

Natasha fitou as nuvens de tempestade a partir do pequeno apartamento que possuía, nos subúrbios de New York; era um lugar simples, de três cômodos, mas lhe servia bem. Ainda há pouco subira os nove andares de escadas, rindo internamente de um modo ácido quando a senhora do 802 lhe disse para tomar cuidado, pois “era perigoso uma garota ficar por aí sozinha, àquela hora”. Como se houvesse nas redondezas algo mais perigoso do que ela... Ainda assim, o conselho gentil da senhora que sequer a conhecia senão de vista ajudava a aumentar sua empatia pelas pessoas, confirmando que havia boas almas no mundo.

As últimas horas da russa haviam sido dedicadas a cobrir todas as falhas que o sequestro pudesse ter deixado: já sob o disfarce de Melinda Lambert – não impecável, mas já bom o suficiente para enganar a gerência do hotel sem levantar suspeitas – fez o check-out no Plaza e deu entrada em outro hotel, não muito longe do primeiro, porém afastado da Main Square – qualquer um julgaria ser relacionado à movimentação da rua -, apenas para manter um registro de atividades, para que a médica não parecesse haver desaparecido. No quarto alugado, entrou novamente nos sistemas, lendo mais a respeito do papel que cumpriria e repassando algumas centenas de e-mails trocados entre sua prisioneira e os outros membros das equipes, superiores e “fornecedores” – era impressionante como o tráfico humano acontecia diariamente, embaixo do nariz das autoridades, e muita vezes com a conivência ou participação dessas.

Após tratar desses detalhes, cuidou de procurar um de seus refúgios: pequenos apartamentos ou quartos em subúrbios que comprara ao longo dos anos, os quais mantinha como covis seguros e depósitos de armas, caso precisasse se esconder ou reequipar... Ou se precisasse ficar longe do mundo, como agora, enquanto bebia um café amargo e tentava se esquecer de quem era.

As lembranças do interrogatório em si não eram tão ruins. Era necessário, e podia lidar com isso. O que a destruía eram as emoções que afloraram em si... Frieza, crueldade... Em alguns momentos ela gostara daquilo, como costumava gostar na época da KGB, e essa percepção a fizera esvaziar o estômago na velha pia já umas duas vezes. E com as palavras usadas pela prisioneira, os sentimentos dos quais fugira por um bom tempo e o despertar das memórias antigas sobre o monstro que já fora, sobrevieram os pesadelos acordada. As memórias das quais não podia escapar, os sonhos de sangue. Chegou a se banhar para fugir à sensação de imundície, mas não se sentia melhor, não importava se esfregasse a própria pele até esfolá-la, como se todo o sangue que derramara em sua vida se grudasse a sua carne e sua alma, impossível de limpar!

Enrolada em um cobertor, bebia o líquido amargo em silêncio enquanto ouvia a chuva; parecia-lhe que o cantar das telhas de metal se tornavam gritos... Não os gritos da prisioneira. Não apenas. Os gritos de suas vítimas... Mulheres, crianças... Das crianças no hospital em São Paulo. Que direito tinha de julgar a cientista? Não era melhor do que ela. Não era melhor do que qualquer um da HIDRA. Há vinte e três anos vinha tentando limpar o vermelho em seu livro, mas como limpar sangue com sangue?  Quantos assassinatos cometera, mudando apenas a bandeira em nome da qual fazia? Não houvera uma época em que gostava de matar? Não ajudava saber que sua raiva não era apenas por causa das crianças, mas uma projeção do ódio nutrido por aqueles que a haviam transformado no que era. E nessas horas, quando encarava as profundezas dilaceradas e putrefatas da própria alma, Natalia odiava a si mesma, e todos que a haviam transformado nisso. As últimas informações que obtivera apenas aumentavam a sensação.

Compreendendo que ficar ali não faria senão leva-la a remoer coisas que deveria deixar para trás, abandonou a coberta sobre o sofá e saiu para o corredor de paredes sem pintura e reboco descascado, abriu a porta que dava para as escadas de metal antigas e subiu para o terraço. O temporal desabava sem piedade, cada gota de chuva ardendo como um golpe de chicote; a espiã apenas tirou o casaco e se entregou à fúria da natureza, desejando que aquela dor, frio e a água que escorria pudessem lavar de si tanta podridão.

Deixou a chuva castigar seu corpo através do tecido fino, rosto voltado para cima sem tentar minimamente se proteger dos golpes implacáveis, encontrando na dor que a tempestade lhe infligia a purificação e punição. Gostava da frase que ouvira, uma vez: “Deus está na chuva”. Não sabia nada sobre Deus, não acreditava na imagem pregada pelas fés. Mas se houvesse algo próximo daquilo, era a chuva. A água que lavava quaisquer rastros, eliminando os vestígios da ação humana. Que limpava sua alma, quando já não suportava mais, que acolhia e levava embora seu pranto.... Sua pele alva se avermelhava com a força dos impactos, e as lágrimas que seus olhos não conseguiam conter se misturavam invisíveis á torrente que escorria por seu rosto a partir dos cabelos, encharcando as roupas...

Dor, frio... Mas não de um modo ruim. A chuva parecia penetrar seu ser e levar consigo os pecados e memórias, lavar o sangue, o vermelho... Drenava-a ao encobrir seu pranto convulsivo até o choro secar e restar... Nada. Um vazio que doía, porém infinitamente menos do que a imundície anterior.

Ajoelhada à mercê do temporal, ignorou a sensação de que alguém a observava por já saber de quem se tratava, até que os braços de Clint se envolveram ao seu redor. E se fosse qualquer outro, ela teria repudiado a compaixão, a tentativa de conforto. Mas não havia nada disso, da parte dele. Havia apenas a mensagem sem palavras de que, não importava o que houvesse feito, ou como se sentisse, o arqueiro estava ali. E como poderia retribuir tudo o que isso significava? Ela não se sentia merecedora daquela amizade tão pura e amor incondicional.

— Amor é via de mão dupla, Nat. – Ele a puxou para si num abraço fraterno e intenso. – Não pense, só deixe ser. Não julgamos as pessoas por seus erros. – Sussurrou, ainda abraçado a ela. – Não importa o que aconteça, nem o que você tenha de fazer. Estou aqui, como você sempre está, para mim.

Natalia não falou nada; não precisava falar. Eles se entendiam apenas estando próximos, e quando Barton a fez ficar em pé consigo, encararam-se mutuamente com olhares que falavam mais do que mil palavras. Gratidão, cumplicidade, e a promessa de estarem sempre ali, um pelo outro. Não importavam as trevas, pois ambos as possuíam. Não importava o que tivessem de fazer para cumprir seu dever, pois ambos entendiam como fazer a coisa certa podia pedir terríveis desvios morais.

Sozinhos na chuva, ambos deixavam o temporal varrer suas culpas e limpar suas almas. Passaram um braço pela nuca um do outro, frontes unidas, e permaneceram ali, juntos, como havia sido pelos últimos vinte e três anos.

Mais tarde, após se secarem e colocarem roupas quentes – Nat compartilhava a maioria de seus abrigos com Clint, o qual também tinha equipamento e suprimentos ali, para eventuais necessidades – tomaram um chocolate quente com conhaque, enquanto conversavam. Mais leve e racional após dar vazão às emoções, Natalia contou ao amigo tudo quanto soubera da prisioneira durante o último ciclo de alucinações, em que a fizera experimentar a sensação de estar atada a uma maca, submetida à vivissecção, exatamente como fazia com suas cobaias.

— É de revirar o estômago o que estão fazendo, mas estamos a um passo de acabar com tudo isso. Por sua causa.

— Tem mais uma coisa, que ainda não contei. – Ela fitava o chão com expressão tensa.

— O quê? – O semblante de Clint se fechou em preocupação com o olhar da amiga.

— Em 2010, falhei em contaminar meu DNA. Conseguiram o suficiente para criar cobaias... – Ela respirou fundo. – Apenas uma sobreviveu: cobaia 109, ou Lucy, com 52% dos seus genes tirados do meu genoma. – Natasha fitou os olhos de Clint, cujo coração se apertou ante aquelas palavras, por saber o quão pessoal isso fazia toda a situação se tornar! Merda, isso a comprometia quase demais para conseguir agir! – Ela é, por assim dizer, minha filha.


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Notas finais do capítulo

É isso, galera. Não nos matem, prometemos que as coisas vão se aliviar para a Nat, e a parte dois será "Heaven". Desculpem toda essa tensão e obscuridade, mas era necessário para expor certos aspectos na Natasha, do Steve ou do Clint, ok?
digam o que acharam, por favor!
Beijos enormes, e até breve!