A Aranha na Teia escrita por Elvish Song


Capítulo 12
Masks and faces


Notas iniciais do capítulo

Oláááááááá!!
Depois de 84 anos, voltei! Desculpem a ausência, mas 2020 foi um descarrilamento de trem bala atrás de outro. Finalmente consegui parar e postar! Espero realmente que me perdoem a demora, e que gostem do capítulo!
Aliás, teremos capítulo bônus de Natal, dia 25!
Sem mais delongas, só quero agradecer a quem continua lendo e comentando, e dizer que vocês são totalmente demais!
Boa leitura!



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Seus passos não fizeram ruído algum enquanto avançava para o subsolo, onde seu “hóspede” estava temporariamente acomodado, até a SHIELD vir buscá-lo. Até isso acontecer, contudo, Mehmet era problema dela, e a russa era extremamente prática ao lidar com problemas. Não levava nada nas mãos, pois não carecia de instrumentos para arrancar as informações desejadas: mesmo ante a necessidade de infligir dor física, sabia fazê-lo com as mãos nuas, sem deixar marcas reconhecíveis.

O prisioneiro ergueu a cabeça ao ouvir a porta se abrir, misto de ódio e desprezo estampados no rosto ao ver a mulher ruiva adentrar o aposento e fechar a porta atrás de si.

— Senhorita Romanoff. Começava a acreditar que havia me esquecido. – Ainda que algemado, o turco se encontrava confortavelmente instalado em uma cela apenas caracterizada como tal pela porta que só se abria mediante escaneamento de retina. O restante... Bem, a Natalia dos tempos de KGB invejaria o conforto do espaço. – Não vai dizer nada? Comentar o quanto esse espaço é confortável demais para alguém como eu, ou se vangloriar da vitória nessa batalha? – A essas alturas, os inimigos já deveriam saber o quão estúpido era tentar irritá-la... Não apenas por ser inútil, mas por indispô-la a ser minimamente suave, mesmo que a princípio. Isso era tão clichê...

Sem paciência alguma, Natasha o arrancou da cama pelo braço e o jogou na cadeira chumbada ao chão com facilidade que não deveria surpreender, mas ainda assim assustou o mercenário bem maior do que ela.

— São quatro e meia da manhã de terça, e a SHIELD virá apenas às dezessete horas de quarta. – Não se deteria explicando que isso significava mais de 36 horas ininterruptas nas mãos dela, e que não havia pausas programadas. – O que sabe sobre o paradeiro do Cetro? 

— Sou um traficante de armas e pessoas, não de joias reais e relíquias. Seu informante deve ter se engana... – As palavras morreram quando a mão pequena da mulher envolveu sua garganta como um torno, cessando todo o fluxo de ar.

— Pule a parte em que me trata como idiota, e eu pulo a parte em que explico sua situação de formas bem desagradáveis. – Ela o soltou e observou friamente enquanto engasgava e ofegava, retomando o fôlego. Pressionar a garganta causava a horrível sensação de estar sufocando, mesmo quando havia ar mais do que suficiente nos pulmões, e levou quase um minuto para que se recuperasse.

— Seus novos amigos, Vingadores, aprovam esses métodos? Pensávamos que estava atrás de redenção, agente Romanova.

— Eles não estão aqui. – Natasha puxou um fio de seda muito fino de dentro do cinto, e o passou em um movimento pelo pescoço do prisioneiro, amarrando-o ao espaldar da cadeira de modo a manter sua cabeça a meio caminho de se erguer. Quando Mehmet tentou baixar o queixo, o fio começou a se enterrar na pele. – Eu não forçaria o fio, no seu lugar. Mas os músculos só aguentam algum tempo, antes de ceder e cortar sua garganta. Não vai matá-lo, se estiver pensando em suicídio, mas a dor é peculiarmente aguda, e destruirá os tendões e nervos que controlam a maior parte dos movimentos da cabeça. – O fio não se enterraria na pele mais do que meio centímetro, antes de rebentar. Era seda comum, apenas uma réplica do cordão de estrangulamento que usava, revestida com pó de vidro. Não faria o estrago ameaçado: o interrogado apenas precisava acreditar que faria. A tortura não estava nos cortes, mas nas horas mantido sob tensão e pressão psicológicas. – E já que ainda é cedo para você falar algo, eu falarei primeiro.

“Nunca os deixe falar mais do que necessita. Isso consome seu tempo e distrai seu foco. Fale você. Conte as mentiras, e veja a reação em seus rostos. Conduza-os como gado.”

— O Cetro é uma arma, e você já sabe disso. Estão usando a energia do cetro para fabricar armas mais potentes: tentador demais para comerciantes do ramo. Vocês não iriam apenas se desfazer dele, sem um forte motivo. Então voltamos a pergunta: para onde foi o Cetro?

— Você acha que é tudo tão simples? Que estamos apenas traficando armas, como atravessadores comuns? – A voz distorcida pelo estiramento da garganta era raivosa e rascante. – HAIL HIDRA. Não me trate como idiota, Romanoff! Você sabe que trabalho para a HIDRA, e sabe que não se sai da ordem. – Ele a fitou pelo canto do olho. – Eles mandam, nós obedecemos, e não pedimos contas do que fazem, ou nossos miolos vão decorar o chão.

“Nem todos serão tolos, ou acreditarão nas mentiras mais simples. A teia de uma ranha é forte por possuir múltiplos fios, e mentiras são a sua teia. Teça-as com cuidado. Se alguém reconhecer seu jogo, mude-o.”

A espiã relembrava cada palavra, não auditivamente, mas como um instinto gravado em cada célula de seu organismo, tão incutidas em si como seu próprio DNA. 

    - Você tem algo que eu quero, Mehmet. E eu tenho algo que você quer. A HIDRA vai procurá-lo. Vai matá-lo lenta e dolorosamente. Eu sou tudo o que existe entre você e seus antigos chefes; ajude-me, e garanto sua proteção. 

    O turco meneou a cabeça como podia, ante as amarras em seu pescoço, o que fez Romanoff relaxar os ombros e atenuar a voz:

    - Bem... Talvez precise de algum tempo para pensar. Vou lhe dar algumas horas: espero que tenha algo melhor para mim, quando voltar, ou tudo ficará bastante desconfortável.

    Sem aguardar por alguma resposta, a mulher se virou e saiu. Olhando no relógio, acionou o cronômetro para tocar na marca de três horas, e tomou o elevador para seu andar: era apenas questão de tempo até o prisioneiro quebrar seu silêncio, especialmente ante o próximo passo. No intervalo, tinha muito material no qual buscar mais informações.

                                        *

    - Bom dia, Mama! - Lucy entrou na sala com seu lindo sorriso matinal, já vestida e pronta para começar o dia. Ao ver a mãe debruçada sobre as anotações e telas holográficas, contudo, inclinou a cabeça. - Ocupada demais?

    Romanoff desviou o olhar da tela e encarou sua filha com um leve sorriso.

    - Bom dia, dorogaya. - A espiã virou o banco de modo a poder beijar a fronte da menina. - Na verdade, sim. Tio Clint e eu estamos lidando com as informações que conseguimos na Turquia. Seu pai vai te levar para a escola, hoje, está bem?

    A pequena anuiu, mas seu olhar era pensativo; percebendo isso, a espiã inclinou de leve a cabeça, indagando sem palavras o que a filha teria a dizer. Relaxando os ombros em rendição, a criança se manifestou:

    - O interrogatório. Eu posso entrar na mente de Mehmet e conseguir tudo o que quiserem. Eu sei... - Ela falou antes que a mãe a interpelasse. - Eu sei que quer me poupar, mas nós duas sabemos que a HIDRA continua atrás de mim. Tudo o que eu fizer para ajudar, vai fazer o perigo acabar mais rápido, não vai?

    A mulher suspirou e acariciou levemente o rosto da garotinha, tocando sua fronte com a própria.

    - Pessoas como ele têm mentes muito sórdidas, moy angel. Coisas muito ruins, que você não precisa ver. Você pode nos ajudar, sim, mas apenas se e quando não houver outros recursos, e Mehmet está mais do que disposto a falar. 

    - Promete que, se não conseguir, vai me deixar ajudar?

    - Vou. Se e quando for preciso. Até lá, você me ajuda cuidando do seu pai e do tio Tony. Consegue mantê-los vivos, para mim?

    - Mama, são alguns dias, não algumas semanas. - Lucy revirou os olhos, mas anuiu e abraçou a mãe. - Só não faça nada que te machuque, por favor.

    - Não vou, malen'kaya. - A russa se afastou um pouco e checou as horas. Quarenta minutos, ainda. - Tome o café da manhã. Preciso continuar com meu trabalho.

    Assentindo, a menina pegou os cereais, o leite e as frutas que geralmente tomava no café da manhã e cuidou de preparar a própria refeição, enquanto Natasha continuava estudando as informações conseguidas a partir da Turquia. O trabalho de Mehmet poderia muito bem se disfarçar como tráfico comum de pessoas, mas algumas cargas tinham arquivos "deletados", cujos rastros conseguia recuperar com a ajuda das programações de JARVIS e remontar, mesmo que fragmentados. Imersa no trabalho, distraiu-se apenas quando uma tigela foi colocada junto a si, com cereais, leite e pedaços de maçã. Aquilo a fez erguer os olhos para Lucy, que sorriu e piscou:

    - Você tem mania de pular o café. 

    Menando a cabeça com um sorriso, a mãe murmurou um "obrigada" em russo para a criança, que sentou ao seu lado para ver o que se passava.

    - Tráfico de pessoas... Cobaias para a HIDRA? - Havia nojo no rosto da menina, enquanto desviava os olhos da tela para procurar pistas no rosto da mãe.

    - Nem todos, mas é um bom meio de conseguir dinheiro e acobertar coisas piores. Como se tráfico humano não fosse ruim o suficiente... - Não queria entrar naquelas sendas. Lucy já sabia coisas até demais sobre a maldade do mundo, sendo tão jovem!

    - Por que traficam pessoas, se não como cobaias?

    - Cobaias para outros experimentos, que não sejam da HIDRA, escravidão, roubo de órgãos..  - Romanoff suspirou e se voltou novamente para a filha, fechando a tela. - Não é bonito. É sujo, repugnante, e só serviria para roubar a inocência que você, por alguma sorte, manteve. Termine seu café da manhã, e desça para brincar um pouco antes da escola. 

    - Quando vai me deixar saber das coisas? - Lucy era teimosa e persistente... Céus, a criança estava passando tempo demais com Rogers!!!

    - Quando tiver idade para isso, pirralha. Já conversamos a respeito, então termine de comer e suma. Insistir não vai mudar minha decisão. - Apesar do tom sério, Romanoff sorriu de canto e apertou o nariz da filha com o indicador. - Deve ter genes do seu pai também, em você.

    - Tio Banner disse que a convivência torna as pessoas parecidas. 

    - Então pareça com o Bruce e não meta o nariz no que não é da sua conta. - A espiã deu um tapinha leve nas costas da pequena, que suspirou em resignação e foi terminar a própria refeição, antes de lavar a louça e deixar o apartamento. Sozinha, Natasha reabriu as telas e enviou o arquivo finalizado para Clint. Hora de ele cumprir a parte dois.

                                            *

    - O que é isso? - O prisioneiro na cadeira tentou debochar ao ver o arqueiro entrar em sua cela. Pelas câmeras de segurança, Romanoff acompanhava tudo e, pelo comunicador, contatava o amigo. - Jogo de policial bom/policial mau?

    - Você gostaria que fosse. - Clint colocou sobre a mesa chumbada uma pequena caixa de som. - A HIDRA não ficou feliz com a sua "deserção". Imagino que já saiba disso, é claro, assim como as coisas que farão com você. Além disso, minha parceira gentilmente preparou para seus ex-chefes uma lista dos desvios de dinheiro que você realizou. Se eles receberão ou não, depende apenas de como nos entenderemos.

    Hawkeye se sentou na outra cadeira com postura relaxada e colocou um pé sobre a mesa, como se a presença de Mehmet fosse o mesmo que nada, e aquele momento se tratasse de algo rotineiro o bastante para sequer exigir muito de sua atenção. Mas quando os olhos acinzentados se ficaram no cativo, este pôde sentir-se a uma mísera distância de ser queimado vivo, unicamente pelo fogo gélido daquele olhar. Um que traía a aparência de bom homem e o ar tranquilo, revelando um interior obscuro e perigoso, compatível com o da espiã.

    Clint conseguiu perceber a cor fugindo totalmente ao rosto do prisioneiro ante a certeza de uma morte lenta e dolorosa, e ouviu o comentário de Natasha pelo comunicador:

    - Aperte-o mais, Clint. Ele está quase quebrando. 

    Como um raio, o Gavião alcançou a cadeira de Mehmet mantendo no rosto a expressão mais fria que possuía; suas mãos desataram a seda que se enterrava no pescoço do homem, mas, mal havia este aliviado a tensão na nuca dolorida, viu-se mais dolorosamente curvado, com o fio cortante não em torno de sua garganta, mas por entre os lábios.

    - Talvez uma ou duas horas disso abra a sua boca. De um modo, ou de outro. - Barton pegou a pequena caixa de som que trouxera e a segurou no campo de visão do traficante. - Vou te deixar na companhia de gravações que com certeza reconhecerá. Você executou várias famílias, não foi? Matou os mais velhos e separou os jovens para enviar às instalações orientais. - O clique de um botão, e as gravações sequenciais de extermínios e da separação de familiares em meio a gritos e súplicas tomou o ambiente. - Agora, farão o mesmo com a sua, a menos que nós cheguemos primeiro. - Sem lançar um segundo olhar ao prisioneiro, o arqueiro deixou a sala.

    Do lado de fora, Natasha o recebeu com uma garrafa de água e sua presença reconfortante. Aquilo afetava Clint, não pelo prisioneiro, mas pelas coisas que haviam ouvido e assistido serem feitas a famílias inocentes... Ele enxergava seus próprios entes queridos naquelas pessoas, e Romanoff era a única que enxergava por detrás da máscara fria.

    - Ele vai abrir a boca. - Voltar o assunto para o trabalho era o melhor jeito de lidar, até que tudo houvesse acabado. - Vê? Lividez, tremores, a cabeça forçando os fios... Esse cara está em pânico. 

    - Ótimo. Quanto antes falar, menos teremos de olhar para ele. - A mão calejada apertou o ombro de Natasha em cumprimento. - Acertou em cheio. Mas por que me pediu para fazer isso? Geralmente você não delega.

    - Ele ficou desconfortável, mas acreditava que o restante do time me impediria de lhe fazer mal. Com você ajudando, Mehmet entendeu não ser um blefe. Queria ameaçá-lo com o Hulk, se tivéssemos como controlar os danos.

    - E como não tinha o Hulk...

    - Você é a minha opção favorita. Sabe colocar medo sem precisar de muito. - Ela dirigiu um leve sorriso ao amigo, antes de voltar os olhos à pequena tela do Starkphone. - Temos trinta minutos de folga.

    - Não acho que ele dure quinze. - Rebateu o arqueiro, bebendo um largo gole de água. - Quem volta lá?

    - Eu, é claro. - O tom dela era o de que falava algo óbvio. - Ele talvez precise de mais... Persuasão.

    - Vai convencê-lo a fazer o "Pacto com o Diabo"? - Clint viu o canto dos lábios de Natasha se torcerem num meio sorriso malicioso com o apelido que o amigo dera à sua capacidade de "negociar" com as pessoas e fazê-las aceitar o que propunha.

    - Ele nem vai precisar de muito trabalho, da minha parte. A HIDRA já foi mais seletiva.

    - Bom, é difícil achar alguém com as suas habilidades em cada esquina. - Os amigos se sentaram na sala de monitores, assistindo ao prisioneiro. Agora havia lágrimas em seus olhos, e Natasha não podia deixar de sentir satisfação: as vítimas daquele homem haviam chorado muitas vezes, sem receberem misericórdia. Que Mehmet provasse um pouco da própria crueldade, então.

    Foi apenas quando viu o sangue começar a escorrer dos cantos dos lábios do homem, cujos músculos exaustos não conseguiam mais manter a posição, que Natasha se levantou e voltou para a cela. Sem nada dizer, desatou o cordão e o removeu dos ferimentos: não havia sido profundo, então a SHIELD não pediria explicações. Ao contrário de Clint, a espiã se sentou na outra cadeira com posição ereta, ainda que os braços pousados nos apoios e ombros relaxados transmitissem plena autoconfiança. Era uma predadora em seu território, confiante e pronta para reduzi-lo a pó. Isso era o que sua linguagem corporal transmitia, dispensando toda e qualquer comunicação verbal intimidadora. Mehmet, por sua vez, ofegava de dor e tentava baixar a cabeça com os músculos estirados doloridos ao ponto de sufocamento. Longe do homem debochado e cínico da madrugada, agora era uma massa de membros trêmulos, suor, sangue e lágrimas. Não comovia Romanoff: para a mulher, aquilo era apenas carne de abate.

    Após longos momentos encarando o prisioneiro praticamente sem piscar, ela estendeu o braço e desligou a caixa de som, que ainda reproduzia em repetição os gritos e lamentos.

    - Sua família está passando por isso, agora mesmo. Seus filhos serão forçados a trabalhar no seu lugar, e suas filhas servirão como incubadoras, nos laboratórios, ou mesmo cobaias. Se eu enviar a lista de seus desfalques, caçarão seus irmãos, sobrinhos, pais, que serão torturados e mortos, como as pessoas das quais você se livrou. Sabe qual é a única forma de me impedir de enviar o arquivo.

    - Você é um demônio... - A voz masculina soava fraca e rouca pela garganta dolorida e ressecada, e seus lábios mal se moviam, em tentativa de não abrir mais os cortes.

    - Eu nunca disse o contrário. - Natasha se levantou e segurou o rosto do cativo, forçando-o a olhar para si. - Mas sabe qual é a ironia disso? - A ruiva se curvou e sussurrou ao ouvido de Mehmet. - Só é condenado ao Inferno quem fez por merecer. O diabo não tortura inocentes. - Ela se empertigou novamente, sabendo que havia quebrado o adversário. - Agora... Dê o que quero, ou pague o preço.

*

     A dupla de espiões demorou algum tempo arquivando as novas informações e lançando-as no sistema compartilhado, enquanto usavam os novos dados para filtrar o enorme arquivo e conseguir direções mais precisas para sua próxima atuação.

    Isso feito, seguiram para os respectivos apartamentos a fim de tomar banho, trocar de roupas e retirar as "máscaras" vestidas durante o trabalho. Não eram as mesmas pessoas no trabalho e em família, tampouco desejavam trazer para perto de Lucy o pior de si mesmos.

    Já mais relaxada e desvinculada das ações que tivera ao longo daquele dia, a russa subiu para o andar comum ou, como vinham chamando, o Avengers Floor. Mas não esperava a cena que encontrou: sentada à mesa e de pijama, Lucy fazia seu dever de casa com Tony ao seu lado, explicando-lhe métodos mais avançados para resolver os problemas. Pepper se sentava de frente para ambos, olhando a cena de modo terno e carinhoso, enquanto Steve preparava o jantar. Ter uma criança em casa parecia ter contribuído muito para tornar os Avengers cada dia mais unidos, fora das missões. Tornava-os ainda mais uma família, embora Natasha suspeitasse que dificilmente teria ocorrido o mesmo se fosse qualquer outra criança que não Lucy. A pequena possuía uma doçura, altruísmo e gentileza que, mais ainda do que a pronunciada maturidade mental, tornava-a alguém que atraía todos para si, e uns para os outros. Até mesmo mediar e apaziguar conflitos a diabinha fazia!

    - Privet, mama!! - A vozinha pueril e alegre a tirou de seu devaneio, fazendo Romanoff sorrir. - Terminou o trabalho?

    - Por enquanto. E você, como está o dever?

— Quero demitir meu assistente e colocar a Lucy no lugar. – Foi Pepper quem respondeu, bagunçando os cabelos da afilhada enquanto Natasha ficava à esquerda da menina, observando-a com um sorriso. Equações de primeiro e segundo grau, resolvidas com a mesma facilidade de uma soma simples... Lucy absorvia o conhecimento como uma pequena esponja, não apenas das aulas, mas pelo contato mental com pessoas ao seu redor. E tendo contato constante com Stark e Banner... Não era surpreendente, mas a espiã tampouco conseguia se acostumar.

— A matéria é fácil, mama. Tio Tony faz ficar ainda mais, e já estou acabando! Amanhã vou começar a ter mecânica, em física! E também química de ácidos e bases! Você me ajuda?

Romanoff sorriu e beijou a bochecha da pequena, ainda estranhando, mas adorando a sensação calorosa que se espalhava por seu peito quando interagia com a criança:

— É claro, moya kukla. E como está com história? Piotr disse que você andou discutindo com o professor.

— O professor Graham conta a história como se a América fosse a única heroína de tudo, e você e o papai já me contaram muita coisa bem diferente. Os livros no nosso apartamento contam diferente, os que estão em russo, alemão e francês. Eu só disse que a história não é uma só, que depende de quem conta. – Pelo canto do olho, Natasha viu Steve balançar a cabeça e sorrir discretamente. Ah, a praguinha! Estava se saindo melhor do que ambos!

— O professor vai te contar a versão que aprendeu. A sua parte é saber que essa não é a única versão, e que a história sempre vai ser contada de um modo diferente, dependendo do ponto de vista de quem conta. Não vale a pena brigar por tão pouco, mas... É bom que você não aceite simplesmente o que te dizem. Que questione. Mas faça isso fora da aula, em particular com seu professor.

— Está bem, mama. – A garotinha tinha um sorriso deslumbrante, e voltou a prestar atenção na página onde resolvia os problemas. A felicidade de Stark era estampada não apenas em seu sorriso, mas no modo como passava o braço em torno da afilhada e lhe ensinava com paciência, fascinado com a velocidade de aprendizado da pequena. Eis ali uma cena que ninguém jamais esperara ver!

Enquanto Pepper mexia em seu tablet e Tony se mantinha ocupado com Lucy, Natasha foi até Steve, que terminava de preparar o jantar para os Avengers que se encontravam na Torre – no caso, apenas Thor não faria parte do jantar, por estar na casa de Jane. A espiã roubou uma provadela do patê de ervas, rindo baixinho quando Steve a interceptou, segurando-a pela cintura, e comentou com o namorado:

— Está delicioso. E o cheiro também. 

— Sem ficar roubando comida antes do jantar, senhorita Romanoff.

— Eu poderia provar algo mais interessante, mas isso atrasaria o jantar. – Ela rebateu de imediato, num sussurro extremamente baixo, acompanhado de sorriso malicioso que fez Rogers corar até a ponta das orelhas. 

— Você adora fazer isso, não é? – Ele estava tão escarlate quanto os cabelos da Viúva!

— Depende de a que “isso” se refere. Constranger você ou...? – Ela inclinou de leve a cabeça, sugestivamente, divertindo-se ao ver o namorado corar ainda mais. – Digamos que ambas as coisas são um ótimo entretenimento.

— Tem uma criança telepata...

— Que está ocupada com a lição de casa, e não ouviu uma palavra do que falamos. – A russa sorriu e deixou um beijo no canto dos lábios de Steve. – Relaxe. Só estou brincando.

— Você ainda vai ser a minha morte, Romanoff.

— Eu te avisei para desistir, Garoto de Ouro da América. – Mesmo sem o americano pedir, ela começou a cortar as cebolas para ajudar. Não era uma grande cozinheira, mas fora criada no século XX, portanto, noções básicas da manutenção de uma casa lhe haviam sido dadas a fim de que pudesse sustentar certos disfarces. Além disso, cozinhar entrava no rol de habilidades necessárias à sobrevivência, mesmo que sua comida dificilmente pudesse ser servida num jantar de Natal. E já que pensara no assunto... – Já é quase fim de outubro, Steve. 

— Está pensando em Dia das Bruxas? Achei que o Clint queria levar a Lucy para pedir doces... – Mesmo falando baixo, preferiam não mencionar a família de Hawkeye sem estarem em um dos apartamentos particulares.

— Ah, sim, ele vai. Mas estava pensando no Natal. – Ela olhou para trás, para a filha. – Geralmente eu passo com Clint, ou trabalhando, e no último saímos juntos. Mas Lucy nunca teve um. 

— Também quero fazer algo especial para a baixinha. Podemos falar com Barton, mais tarde. Talvez consigamos reunir a equipe toda, aqui na Torre.

— Talvez. Temos tempo para pensar. – Steve a viu voltar a cortar os bulbos, e depois ralar o queijo, e não comentou nada, mas percebia a cada dia aquele lado que a espiã fizera de tudo para sufocar quase até a morte, porém deixava entrever quando se tratava de Lucy: alguém que se importava. No começo, Rogers pensara ser algo que dedicava apenas a Barton, mas à medida que a conhecia melhor, conseguia mais e mais provas contundentes de que a mesma Natasha que se passava por um bloco de gelo tinha muito mais calor e humanidade do que a grande maioria da pessoas autoproclamadas “boas”. Simplesmente fora ensinada a não expressar, então, em vez de gestos de carinho espontâneos, traduzia seus sentimentos em ações que protegessem ou fizessem bem aos demais. E só conseguia amá-la ainda mais por isso.

— Mama, Daidí, se estiverem flertando, deem um tempo, que eu vou pegar os pratos na cozinha! – Avisou a vozinha alegre de Lucy, fazendo os adultos rirem baixo ao ver a coisinha ruiva entrar na área atrás do balcão e começar a pegar os pratos. – Desculpa atrapalhar, mas alguém tinha que pôr a mesa!

— E quem disse que estávamos flertando? – Perguntou Natasha em tom de brincadeira, pegando os copos no armário de cima.

— Eu tenho uma pergunta melhor: você por acaso sabe o que é flertar, dàna? – Steve se abaixou e pegou parte dos pratos. Lucy era forte, mas preferia não arriscar.

— É coisa de casal. Ficar se encarando como se estivessem conversando por telepatia, prometendo para depois um monte de coisas que não podem falar nem fazer, na hora. – Ela inclinou a cabeça ante a careta de desgosto do pai. - Tio Tony que me ensinou. Foi ele quem falou que vocês deviam estar flertando e tinham esquecido da vida. Mas ele não me disse que tipo de coisas eram essas.

Natasha comprimiu os lábios, incerta sobre rir ou assassinar Stark, e Steve suspirou pesadamente:

— Eu vou arremessar o Stark da torre... – Natasha encolheu os ombros, reprimindo o riso, e assentiu.

— Não vou te impedir. – E olhando para Lucy, alertou: - Não ouse ler meus pensamentos, agora, filhote de diabrete.

— Pela cara do papai, acho que eu não vou querer saber o que são essas coisas que o tio Tony não quis me falar. – Um risinho travesso ecoou pelo aposento. – É claro que eu sou um filhote de diabrete, Mama! Sou sua filha!

— Abusada, mas realista. – Acusou a Viúva Negra, enquanto arrumava os copos na curva o braço para levá-los. A maioria dos pais poderia se sentir irritado com uma criança tão confiante e irreverente, mas ela ficava satisfeita: Lucy sabia o momento de obedecer e o de brincar ou questionar, apenas pelo contexto da situação, ou o tom de sua voz, portanto, deixar a pequena expandir a própria autoconfiança e extroversão era um grande alívio, quando comparava a criança de agora com a coisinha aterrorizada e tímida que resgatara. – Vamos, a mesa não vai se colocar sozinha. – Enquanto colocava os copos na mesa, porém, olhou de esguelha para Tony. – Se acordar pendurado para fora da janela, Stark, imagino que vá saber muito bem o motivo. 

— Foi um lapso da língua! Preferia que eu pedisse a ela para perguntar a vocês o que significava flertar? O capicolé ia engolir a própria língua! – O protesto veio do sofá, onde o engenheiro trabalhava nos próprios projetos, aparentemente alheio ao olhar ameaçador que Rogers lhe lançava da cozinha. – Essa criatura é telepata, vocês sabem? Não vão esconder muita coisa dela, por muito tempo.

Pepper se escondeu atrás do tablet, escondendo o riso: quando conhecera Nathalie Rushmann, nunca teria imaginado algum dia gostar tanto da verdadeira pessoa por trás da máscara. Ou de uma coisinha pequena que era a cópia mais fofa da mulher adulta. Meneando a cabeça, fechou as abas e desligou o aparelho, indo ajudar a pôr a mesa enquanto o Capitão terminava de fazer o jantar. E tanto quanto fora muito estranho ter os Vingadores por ali, no começo, aos poucos se tornava difícil imaginar uma vida sem as alfinetadas entre Tony e Steve, ou a ironia ácida de Natasha e Clint, as conversas científicas de Tony e Banner... E principalmente, os sorrisos e alegria de Lucy.

— Família é isso mesmo, tia Pep. Doida, mas feliz. A gente nem imagina que um dia vai ter, mas de repente nem sabe mais viver sem. – Sorriu Lucy, captando não os detalhes dos pensamentos da madrinha, mas o contexto geral deles. Isso lhe rendeu um levantar de sobrancelha da parte da CEO, que largou os talheres na mesa e puxou a pequena para si, fazendo-lhe cócegas:

— Lendo meus pensamentos, mini-hacker de cérebros?!

— Não tenho culpa se vocês deixam a rede de wifi aberta! – A criança gargalhou com as cócegas. – Tio Tony, me salva!!!

— Vou ajudar a fazer cócegas, depois que você me entregou! – Brincou o bilionário, aproximando-se e cutucando as costelas dela. 

Natasha apenas observava de curta distância, sem poder negar os sentimentos perigosos que a haviam invadido ao longo de todo aquele tempo. Gostava daquelas pessoas, era grata a todas elas. Não precisava de nenhuma delas para sobreviver, mas a vida sem seus amigos... Sem sua família, agora parecia apenas fria sobrevivência. Hoje ela tinha algo a perder: vidas que valorizava infinitamente acima da sua. E tanto quanto isso a tornava mais fraca, criando brechas em sua armadura, também a tornava forte, porque já não agia unicamente pela noção de dever, ou pela programação de seu treinamento, mas movida por... Algo. Fazer o certo se tornara importante de mais formas do que tivera tempo para analisar. Uma cena tão boba, tão trivial, tornava-se algo que levaria para sempre em suas memórias como algo precioso. Sim, ela definitivamente estava mudando, mas isso a assustava menos do que deveria. Ou o medo de perder aquele novo modo de viver tornara-se maior do que o medo de mudar seus padrões de comportamento, os quais até hoje a haviam mantido viva. Afinal, a diabinha estava mesmo certa: você nunca imagina que vai ganhar uma família, mas quando percebe, já não quer viver sem.

Tirada de seu devaneio pelos pedidos de socorro de Lucy, a espiã tratou de roubar a filha dos braços dos padrinhos, fingindo ralhar:

— Agradeceria se não matassem essa, porque é a única que tenho! – A pequena estava ofegante e se recuperando do ataque de risos. – Termina de ajudar seu pai, na cozinha? – Lucy assentiu e estalou um beijo no rosto da mãe, pulando em seguida para o chão a fim de fazer o que lhe fora pedido. Stark eventualmente teria comentado algo, mas a russa o cortou com apenas um olhar. Suavizando sua expressão, contudo, desconversou:

— Obrigada por cuidarem dela, enquanto trabalho. Ficar no Instituto não seria a mesma coisa: Lucy gosta muito de vocês.

— Bom, você cuida da minha criança quando estão trabalhando juntos. – Respondeu Pepper, apoiando-se no ombro de Tony, que fez uma careta indignada, mas foi ignorado. – Estamos quites. E não é como se Lucy desse trabalho. Menos ainda quando comparada ao Mr. Stark.

— Já podem parar de falar como se eu não estivesse aqui? – Pepper sorriu e beijou o canto dos lábios de Tony:

— Você sabe que é verdade.

A conversa foi interrompida quando Clint e Banner se juntaram ao grupo, e logo em seguida Steve avisou que a refeição estava pronta. Os recém-chegados se dividiram para trazer a comida à mesa, e logo todos se envolviam em conversas mais amenas. Eventualmente o assunto “Mehmet” deslizava para fora da boca de alguém, mas rapidamente se desconversava: haveria tempo para esse assunto depois que saíssem da mesa. De repente, porém, como uma lebrezinha alerta, Lucy ergueu a cabeça e sorriu, exclamando:

— Fury! Mama, daidí, Fury está subindo!

Enquanto a garotinha ia para a porta, a voz de JARVIS se fez ouvir:

“Senhor Stark, o agente Fury está subindo.”

Banner olhou com diversão para Anthony:

— Melhor atualizar o JARVIS. A Lucy já o tornou defasado.

— Se continuar assim, em poucos anos eu é que vou ser obsoleto, comparado à pirralha. – O tom do engenheiro também era dotado de diversão, ao se levantar. – Ela com certeza acaba com o tédio.

Não tardou para a figura de Nick Fury atravessar as portas do elevador, em cujo hall foi recebido por um rosto infantil sorridente:

— Boa noite, Fury! Vai jantar com a gente?

O agente lhe lançou o olhar que geralmente reservava para a criança – mistura de satisfação, curiosidade e algum afeto – e bagunçou os cabelos da pequena:

— Sabe que não venho para jantar, Lucy.

— Não, você vem para saber se está todo mundo se comportando direito. Mas pode fazer as perguntas enquanto senta para jantar! – Ela o puxou pela mão, e Natasha a essas alturas sequer se esforçava para ocultar a expressão de divertimento ao se aproximar para cumprimentar Fury.

— Boa noite, chefe. Eu pediria desculpas por ela, mas não me sinto nem um pouco arrependida.

— Uma versão mais nova de você. O mundo já foi menos louco.

— Defina normalidade, no nosso ramo de trabalho.

— Desde a invasão de Nova York, essa palavra se tornou um conceito variável. – Fury se aproximou da mesa, onde Lucy já colocava um prato, o conjunto de talheres e um copo. – Senhorita Potts. Cavalheiros.

— Boa noite, agente Fury. – Pepper já havia tido contato com Fury em suas visitas anteriores, mas nunca se sentia completamente à vontade com o homem. – Lucy já se adiantou, mas é bem vindo para jantar.

— Eu duvido muito que ela vá me dar paz, se eu não aceitar. – O agente se sentou no lugar que Lucy preparara para si, entre Clint e Steve, e de frente para Natasha. – Já está comandando os Vingadores, pelo que vejo.

— Shhhhh! Fury, não fala em voz alta! – Lucy brincou, levando um dedinho na frente da boca. – A gente deixa o papai e o tio Tony acharem que são eles!

O homem de tapa-olho meneou a cabeça, e todos podiam jurar ter visto algo quase similar a um sorriso quando se dirigiu à pequena:

— Se os diretores da SHIELD não se cuidarem, logo vai comandar a agência, também.

— Por cima do meu cadáver incinerado. – Interpelou Natasha. – Não dê ideias, Fury: ela pode se entusiasmar.

— Hey! – Lucy protestou. – Não é verdade! Sabe que eu nunca iria cuidar de outras pessoas! Já cuido de vocês!

Clint deixou escapar um riso leve e puxou a afilhada para perto:

— Você é impossível, baixinha. Agora vá sentar e dê paz ao Fury, antes que ele te pendure de cabeça para baixo na janela, sem cabo de segurança. – E ante o sorrisinho travesso da menina. – E não, isso não é para ser divertido, praga! – Ele precisou se segurar para não rir, e Natasha claramente estava quase engasgando com sua água.

O jantar seguiu normalmente, apesar da incomum presença de Fury nesse momento tão familiar, mas não era como se o agente não aparecesse ali regularmente, a fim de monitorar as atividades de Lucy. E como a todos os demais, a pequena o tinha envolvido na ponta de seu dedo, mesmo sem manipulação intencional.

Ao fim do jantar, tudo de que Natasha precisou foi um olhar para Fury, que assentiu. Afastando a cadeira, Romanoff se manifestou:

— Volto logo. Lu, ajude a tirar a mesa, e depois está liberada para brincar.

— Sim, senhora. - A pequena prestou uma breve continência que arrancou sorrisos dos que ainda estavam à mesa. - E quando o Fury vai me interrogar? Digo, mais do que tentou fazer durante o jantar.

— Depois. Preciso acertar algumas coisas com a sua mãe, pirralha.

— Se ela tentar te matar, pode me chamar.

— Vou te contratar para minha guarda-costas, sempre que tiver de lidar com a sua mãe. - Fury estendeu o punho cerrado para a criança, que lhe deu um soquinho na mão e levantou da cadeira, começando a pegar os pratos junto aos adultos.

Já sozinhos na varanda do andar Vingadores, Natasha e Fury fitavam o exterior de modo desinteressado, nenhum dos dois desejando ser o primeiro a entregar o que fosse. E sabendo que Natasha tinha a maior prática em ignorar os outros - como seis meses fingindo não falar inglês, quando chegou à base da SHIELD, provaram - Fury tentou começar por algo mais ameno:

— A coisinha transformou um bando de desajustados em algo parecido com uma família. Estou impressionado.

— Ela é um ponto de convergência, para nós. Já deve ter reparado que consegue fazer todos gostarem dela, então isso se torna o foco, fora do campo de combate. Não é difícil de entender.

— Eles sabem estarem sendo manipulados por ela?

— Nem ela sabe que os manipula. - Tirar algo de Natasha sobre Lucy era quase como tentar remover Excalibur da pedra. Apenas a pessoa certa conseguia. Eventualmente, Fury preferia falar com Peggy Carter, e obter por meio dela algumas informações. Mas a ex-diretora era tão sagaz quanto Romanoff, e faria de tudo para proteger tanto a russa, quanto a criança. - Maniulação é a base biológica da vida, Nick. Filhotes são adoráveis para convencer os adultos a criá-los. Lucy é só uma criança, fazendo o que crianças fazem. 

— Crianças normais não leem pensamentos, explodem cérebros ou conversam comigo como se tivessem o dobro da idade que aparentam. Crianças normais têm medo.

— Ela sabe que você estaria morto antes de erguer um dedo, contra ela. E que, se tentarem tirá-la de mim, nós duas vamos sumir no mundo, juntas. O que tem a temer?

Fury respirou fundo e pesadamente; Natasha era a criatura mais difícil de lidar que conhecia.

— Sabe que o simples fato de você admitir que faria isso em voz alta…

— Se o Conselho tem alguma ideia de que eu poderia agir de modo diferente, então ainda não fazem ideia de quem eu sou. Mas você está aqui para falar sobre Lucy. Ela é uma criança: vai à escola, brinca, gosta de balé e está entusiasmada com o Halloween por vir. Não houve um episódio de agressividade, sequer, desde aquele dia.

Fury anuiu, quase desistindo. Independente da amizade que haviam desenvolvido, Lucy era um limite intransponível. 

— Certo. Nenhuma mudança em relação ao último mês, então.

— Pode colocar assim, no seu relatório. - As costelas a incomodavam, e Romanoff se apoiou no peitoril, debruçada. - Você a vê tão bem quanto eu. 

— Eu vejo. - Ele complementaria, dizendo que via uma criança tão perigosa quanto Natasha ou Hawkeye, pelo simples fato de sua presença afetar daquela forma todos os Vingadores, especialmente os dois melhores agentes que a SHIELD já tivera, mas não seria algo inteligente a apontar. De fato, ele sequer anotaria o fato no relatório, pela segurança não apenas da criança, mas da equipe. Ele os reunira, e se sentia responsável por eles. No final das contas, Lucy não era uma criança mutante perigosa… Ou talvez fosse, mas não era essa a definição correta. Por tudo o que via, julgava que a menina era, enfim, feita da mesma matéria que a mãe, e uma potencial futura Vingadora. Não seria ele a tirar a garota de um ambiente seguro, sob a orientação da melhor agente que conhecera, para entregá-la à nova SHIELD, já sofrendo com alguns mutantes e aprimorados bastante complicados.

— Muito trabalho, chefe? - Natasha quebrou o silêncio.

— Menos do que você, pelo que sei. Como estão as costelas?

— Hmpf… - A agente resmungou e revirou os olhos. - Hill algum dia parou de trabalhar para você?

— Ela não trabalha para mim. Só me informa sobre vocês, quando acha relevante. 

— Deve estar informado sobre o prisioneiro sob nossa custódia, então. - E ante o anuir de Fury. - Ele quebrou fácil. O sistema só está processando os dados e cruzando com as informações.

— Se precisar de algum favor, sabe que é só pedir. Ainda te devo muitos.

— Vou economizar para quando a Lucy for adolescente. - O tom não pareceria uma brincadeira, se o interlocutor não a conhecesse há décadas. 

— Podemos ficar felizes se ela der problemas como beber e sair com amigos.

— Poucas chances. Ela vai estar nos coordenando nas missões, queiramos nós ou não.

— Eu não estava brincando quando disse que ela ainda vai acabar controlando a SHIELD.

Natasha inclinou a cabeça e deu de ombros; nada era realmente impossível, mas preferia não pensar muito no futuro distante. Finalmente, sua postura pareceu relaxar levemente.

— Fury, não tente me enrolar. O que você realmente quer?

— Mesmo que você não acredite, eu me preocupo com vocês, e com a coisinha. Quero ter certeza de que está tudo bem, e que nenhum de vocês esteja correndo riscos desnecessários. Especialmente ela. E com vocês todos no campo, bom… 

— Ela está segura. - Natasha rebateu de imediato, mas então abrandou o próprio tom. - Mas obrigada, Nick. 

— Sempre às ordens, Natasha. - Ele sabia que a espiã podia ver quando falava a verdade ou mentia, e se detectasse qualquer sinal de mentira já não estaria sequer ali, conversando com ele. - Ninguém vai tentar tirá-la de você. Eu asseguro. E se alguém tentar, bom… Estou acostumado a acobertar seus assassinatos.

A ruiva piscou longamente e assentiu no que poderia um esboço de sorriso, respondida com um quase imperceptível movimento de cabeça pelo ex-chefe, antes de dar a conversa por encerrada e voltarem ambos para dentro. Agora o ex-agente conversaria com Lucy, mas seria algo informal, apenas parte do protocolo e, a russa apostava, também um momento de diversão para o homem, enquanto a garota o faria se sentar com ela sob a árvore de brinquedo, em cenas que sempre rendiam a Stark muitas gravaçõess das quais rir, depois. 

***

Depois que Fury se foi, os membros da equipe se recolheram mais cedo: todos haviam tido um dia cheio, especialmente Clint e Natasha. Por gentileza ou curiosidade, Tony se dispusera a acompanhar o processamento e comparação dos dados, afirmando que os espiões poderiam fazer bom uso de uma noite inteira de sono. E não seria Romanoff a reclamar, depois daquele longo dia, especialmente ante os planos de acordar cedo para conferir todos os resultados que, sabia, revirariam seu estômago.

Como costumava fazer, ao estar em casa, a russa não somente colocou a filha na cama, mas permaneceu ao seu lado até a pequena adormecer, cantarolando baixinho em russo, abraçada a ela. Aguardava até a respiração da criança se regularizar e o corpinho pequeno relaxar, sempre garantindo que a mão esquerda da filha não se erguesse por reflexo rumo à cabeceira. Aos poucos, conseguia tirar esse condicionamento de Lucy, ficando muito grata à facilidade com que crianças se adaptam e remodelam o próprio comportamento.

Seguiu então para a própria cama, imaginando uma noite de sono agitado e perturbado por pesadelos e flashes de consciência nos quais tentava raciocinar sobre tudo o que vinha estudando, apenas para levar as situações para seus pesadelos; porém, Steve a aguardava ali, seus olhos sem intenção alguma além de abraçá-la e confortá-la até ambos caírem no sono. Em outros tempos, teria protestado ou mesmo se sentido invadida, julgado a si mesma como fraca por sequer considerar a possibilidade de aceitar, mas agora… Era apenas reconfortante ter uma companhia para espantar os pesadelos. Ela subiu na cama com um sorriso e engatinhou para o lado do Capitão, deitando-se de frente para ele no travesseiro em seu lugar costumeiro, o mais afastado da porta.

— Hey, Tev. - Foi pouco mais que um suspiro, antes que ele beijasse sua testa e a puxasse para junto de si. Não precisaram de palavras: Natasha se virou de costas para o homem, que a segurou com carinho e firmeza perto de si, seu corpo envolvendo o de Natasha sem lhe tolher os movimentos. Seu braço envolveu a cintura esguia, e a cabeça ruiva repousou logo abaixo de seu rosto. 

Ela não dormiu imediatamente. Na verdade, sua cabeça ainda tentava entender o motivo de aceitar um contato como esse e, mais ainda, o motivo de Steve procurar um contato que não lhe traria qualquer satisfação física. Racionalmente podia repetir todas as explicações que o americano diria, mas continuava tão incompreensível quanto da primeira vez que ele o fizera. 

— É estranho...

— O que, amor? Carinho e aconchego?

— Também, mas... Tirando o Clint, todo homem que veio para a minha cama queria algo bem específico. E você... Você só deita aqui e se aconchega comigo, várias vezes, sem fazer nenhuma insinuação. É quase frustrante, porque não faz sentido.

Steve revirou os olhos e sorriu, beijando a curva do pescoço de Romanoff:

— Amor não tem que fazer sentido. Cuidado é uma coisa óbvia, quando amamos alguém, Nat. Não preciso de nada mais "físico" do que te segurar e abraçar, especialmente quando sei como está cansada. - Ele riu baixo entre seus cabelos. - Fazer amor com você é o mesmo que estar no céu, mas estar com você, em qualquer situação, é a minha felicidade.

— Bozhe moi, vocês americanos são mesmo uns idiotas sentimentais. - Apesar do insulto, ela sorria para Steve por sobre o ombro. Não um sorriso sensual, apenas feliz e grato. - Acho que tenho uma queda por idiotas sentimentais. Um em especial.

— Que bom. Porque ele está totalmente perdido e envolvido em sua teia, Dona Aranha. - O casal trocou um beijo longo e demorado, para em seguida se deitar, aninhados um no outro. Não houve mais palavras, e aos poucos o sono arrebatou a ambos. Nenhum pesadelo os perturbou, naquela noite.

****

    Eram cinco da manhã quando, ainda vestida com a camiseta enorme roubada de Steve e shorts de pijama, Natalia se sentou à frente do notebook com todas as próprias anotações. - Tecnologia era algo útil e imprescindível, atualmente, mas preferia traçar os diagramas e anotar os dados mais importantes de próprio punho. Ajudava-a a raciocinar, ligar informações e memorizar dados.

    O que tinha diante de si eram, principalmente, listas e listas das cobaias, e o destino da maioria delas. Transportados para países do Leste Europeu e norte da Ásia, quase todos haviam encontrado a morte, cedo ou tarde, mas dentre os jovens e adultos que passaram por todo aquele inferno, dois nomes se sobressaíram por não possuŕem registro de morte - não significava que estivessem vivos, mas ao menos haviam ditado mais tempo do que o coberto por aquele relatório em específico. Os procedimentos neles realizados estavam incompletos e propositadamente corrompidos, mas havia referências ao responsável - Strucker - e laudos de resultados positivos. Tratava-se de irmãos gêmeos, mutantes: Pietro e Wanda Maximoff. O rapaz possuía velocidade assombrosa, e a garota, a capacidade de entrar na consciência das pessoas, influenciá-las, ler seus pensamentos. Não muito diferente de Lucy, e Natasha precisou de todo o profissionalismo que possuía para não se deixar afetar pela primeira foto da dupla, duas crianças morenas abraçadas num parque... Em seguida as fotos seguintes eram do orfanato onde foram "recrutados", com apenas 14 anos. A última foto de cada um se tratava apenas de fotos de identificação 3x4, mas ambos já pareciam... Diferentes. E uma vez que o arquivo se encontrava corrompido, isso significava mais trabalho para Natasha, porém sentia, finalmente, que estavam se aproximando de algo. 

Um lado seu, mais otimista, torcia mesmo para que os gêmeos estivessem vivos, mesmo que três anos em posse da HIDRA reduzissem muito as probabilidades. Reduziam, mas não eliminavam. Ela e Lucy eram provas vivas disso.

— Cada vez que uma roupa minha ou do Clint some, é só procurar no seu armário. - A voz sonolenta e divertida de Steve a tirou brevemente de seu foco, e a espiã lhe lançou um quase invisível sorriso de canto, sem deixar de tentar reconstituir os arquivos. 

— Achei que isso alimentava seu ego de "macho alfa".

— Eu não disse que não. - O americano sorriu e colocou um dos copos de café que segurava sobre a mesa de Natasha. - Fica melhor em você do que em mim.

— Sou obrigada a discordar. - Ela sorriu e agradeceu com um piscar de olhos enquanto tomava um gole da bebida. 

— Alguma coisa em que eu possa ser útil? - Perguntou Steve, sem precisar indagar sobre a dificuldade do que fazia. Isso estava escrito no rosto da espiã, que vestia aquela máscara impassível sempre que algo a deixava desconfortável. E não era qualquer coisa que a deixava assim.

— Na verdade, se conseguir falar com Hill, peça a ela tudo o que conseguir sobre Wanda e Pietro Maximoff, e um homem chamado de Barão Von Strucker. 

— Sobreviventes?

— Espero que sim. E o aparente responsável pelos testes em cobaias adultas. 

Steve franziu o cenho, e algo estalou em sua mente:

— Strucker era o mesmo responsável pela instalação onde encontramos traços da presença do Cetro! A Dra Foster e o Dr Selvig confirmaram a autenticidade das amostras! - os Vingadores se entreolharam, ambos entendendo o que isso significava. Talvez, seguindo o rastro dos gêmeos Maximoff, conseguissem encontrar Strucker e o Cetro. Mais um passo dado em direção a destruir o que restara da HIDRA, e tudo o que essa organização representara.


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Notas finais do capítulo

É isso, gente!!!! Espero de todo o coração que tenham gostado, e o próximo capítulo é mais light, por ser bônus de Natal!
Beijos enormes, e até dia 25!!!!!



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