A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 40
39: Beba até não mais sonhar.


Notas iniciais do capítulo

Todo mundo já colou os caquinhos depois do último capítulo?
Mas não se preocupem que esse tá tranquilo... ^_^

GLOSSÁRIO:

Egawa: é a denominação dada à faixa tipicamente pavimentada em madeira que ressalta da face das paredes constituídas por portas corrediças, cujo espaço está sob o beiral do telhado da casa tradicional japonesa. Equivale ao espaço designado no Ocidente de "varanda". 

Saquê: Saquê ou saqué é uma bebida alcoólica fermentada tradicional do Japão, produzida a partir de 3 ingredientes principais arroz, água e kōji.

Shochu: Bebida japonesa de origens que remontam ao século XV, o Shochu (a pronúncia é Xô-Tchu).

Tsuchigumo: Aranha da Terra.

Tsurara onna: Mulher Sincelo.



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Quando To-chan de repente se levantou sorrindo e anunciando que iria até a cidade buscar comida para sua irmã, ela soube que não poderia detê-lo, então lhe sorriu docilmente de volta e pediu que tomasse cuidado.

—Eu sou sempre cuidadoso irmã.

 Ele garantiu enquanto deslizava uma mecha dos cabelos dela por entre os dedos, e então beijava suavemente a ponta antes de sair voando para a cidade.

Seu precioso e adorável, To-chan… Momiji contou até cem, antes de segui-lo inconspícua.

To-chan havia dito que sairia para buscar comida, mas nada o impedia de ir procurar por aquela humana antes, portanto ela não ficou surpresa quando a viu sair do prédio onde ele havia entrado momentos antes.

Oh, e ali vinha seu auspicioso príncipe.

Mas aquela reles garotinha estava evitando-o?

Do alto dos postes e pequenos prédios, Momiji continuou a segui-los a distancia, cogitou que talvez fosse um dos jogos de To-chan para se divertir, afinal ele mesmo já dissera o quanto gostava de vê-la irritada, mas então eles pararam na ponte.

—… só me usava para sua diversão, doeu muito mais do que quando você… — o que era isso? Momiji se deteve por detrás do bordo japonês na beira da estrada —… você age assim? É legal comigo e age como se eu fosse importante, mas depois…! Isso me… — Momiji reconhecia aquele tipo de sentimento, especialmente jogados contra seu amado príncipe, esse afinal não costumava ser sempre o seu jogo? —… Quando você me disse que fiquei adorável nesse vestido eu fiquei feliz! Mas quando disse que nunca me veria de outra forma ou tentaria algo comigo… meu coração… — Mas estava errado, pois para To-chan aquela garota não era um de seus joguetes. —… terrível, inútil, bêbado libertino e está sempre me causando problema, mas mesmo assim… fico muito solitária quando… — Momiji puxou o ar por entre os dentes, o que aquela garotinha ingrata estava dizendo?! Como ousava proferir tais coisas ao seu adorável To-chan, quando ele sempre lhe fora tão amável?! — Por que me sinto assim? Me diga!

De olhos semicerrados, Momiji fechou os punhos criando sulcos profundos na árvore com suas garras, arrancando lascas da madeira mesmo estando no plano astral.

Mas talvez To-chan finalmente tivesse se dado conta de que aquela insignificante garotinha ordinária não era alguém merecedora de sua estima, e por isso resolvido apenas usá-la para se divertir como fazia com qualquer joguete.

Se ao menos pudesse ver melhor a expressão dele naquele momento… mas o ângulo em que ela estava não lhe permitia isso, então assim que a humana foi embora, Momiji saltou, cruzando o rio e pousando suavemente na ponta da ponte atrás do irmãozinho.

—To-chan. — chamou — Você entendeu o que está acontecendo com aquela garota, não é?

Mas ao invés de virar-se rindo e começar a contar a ela outra de suas histórias, como na vez em que fizera duas mulheres voltarem-se uma com a outra com adagas em menos de um mês, ele ficou ali parado olhando para os enfeites de cabelo em sua mão.

Aquilo não era um de seus jogos.

Momiji iria pulverizá-la! Exterminá-la da face da Terra pelo crime de imprimir uma expressão tão dolorosa em um rosto tão adorável!

—Irmã. — To-chan a chamou, repousando a testa seu ombro esquerdo. — Desculpe, eu não peguei a comida.

Momiji relaxou as mãos, retraindo as garras, e estava prestes acariciar os macios cabelos de To-chan, quando percebeu que sua palma estava suja de sangue.

—Não há problema To-chan. — teve que se conformar em dizer — Está tudo bem.

Agora nem sequer podia confortá-lo graças àquela reles humana, ela a fulminaria…!

—Você tinha razão, irmã. — To-chan voltou a falar, mas não estava se referindo ao desperdício que era se importar com aquela garota: — É perigoso aqui, ficaria tudo bem se ficássemos no jardim da pousada, mas não podemos ficar sem comer. — ele roçagou as mãos por seus braços, afagando-os para cima e para baixo — Deveríamos ir embora.

—Quer ir embora de Higanbana?

To-chan afastou-se um passo para trás e, juntando as mãos nas costas, ergueu o rosto com um sorriso.

—Na verdade eu acabo de me lembrar que conheço um lugar onde há um ótimo saquê! O que acha de me acompanhar?

Momiji ocultou as mãos nas mangas e sorriu para seu adorável príncipe.

—Essa é uma excelente idéia To-chan. — concordou.

Nove horas depois, quando To-chan já havia bebido o suficiente para por ao menos setenta humanos em estado de coma e caído no sono, Momiji estava de volta a Higanbana, como aquela reles humana havia ousado machucar o coração de To-chan?

Imperdoável.

Mesmo que ela não quisesse ver de forma alguma o rosto desolado de To-chan se acaso destroçasse aquela garota diante de seus olhos, ela continuava a ser só uma simples e ridícula humana, então tinha certeza de que logo ele a superaria.

Portanto, Momiji daria um fim apropriado àquela existência vulgar, ela deu um passo adiante, precisava tomar conta de seu adorável príncipe e isso era o melhor para ele, estendeu a mão direita com fagulhas brancas dançando por entre os dedos, depois que desaparecesse ele logo a esqueceria.

Chamas azuis envolveram a garota e a mão estendida de Momiji, subindo rapidamente até seu antebraço, surpreendendo-a e suprimindo sua eletricidade, espantada ela chocou-se com o quadril contra a mesa de trabalho da garota ao cambalear para trás naquele minúsculo espaço e arrancou a manga de seu furisode, atirando-a ao chão e sacudindo o braço até que o fogo se extinguisse enquanto, com uma mão sobre a boca, encarava horrorizada sua manga no chão queimar até restar somente cinzas.

Ainda com a mão sobre a boca, ela caiu sentada no chão, olhando abismada para a mão chamuscada, jamais em toda a sua vida, Momiji pensou que as chamas do próprio irmão a atacariam, especialmente em detrimento da proteção de uma reles humana!

Pois diferente das chamas que cobriram seu braço, as chamas que envolveram a garota adormecida na cama pareceram acolhê-la por talvez dois segundos antes de se reunirem em uma única bola de fogo que pairou sobre o corpo dela e se dissipar em uma pequena explosão, como fogos de artifício, trazendo memórias de uma infância longínqua à mente de Momiji.

Furin sempre gostara de cantar para seus amados filhotes, mas havia uma música em particular que ela lhes cantava todas as noites enquanto acariciava seus pelos prateados e os ninava, pois assim, mesmo quando desaparecia e ia para longe — graças à sua personalidade inconstante — ela sabia que eles estariam em segurança carregando partículas de seus relâmpagos nos corações.

Os relâmpagos iriam se manifestar e espantar qualquer pequeno incômodo que perturbasse os queridos filhotes de Furin, embora isso fosse apenas um extra, porque a verdadeira função desses relâmpagos era manter sua senhora sempre informada sobre o estado e a segurança do bem mais precioso dela e chamá-la caso eles se encontrassem em algum estado de perigo real.

E agora To-chan havia feito uso desse mesmo encantamento para proteger… aquela reles humana?

Ele deliberadamente a elegera como seu bem mais precioso e Momiji, que nunca quis nada além de seu bem e sua segurança, agora era… a ameaça?

Momiji encolheu-se, trazendo os joelhos para junto do peito, tudo por aquela reles humana?

Relâmpagos faiscaram por detrás dos olhos dourados da mulher, que brilharam como ouro incandescente, aquela garota vulgar e odiosa…!

E ainda assim… tão querida e preciosa para seu auspicioso príncipe.

Pouco mais de uma hora depois, Gintsune chegou esbaforido e zonzo ao quarto de Yukari, com o coração quase lhe saltando pela boca.

O fogo explodira!

Assim como quando ela havia ficado presa naquele porão, porém dez vezes pior!

O que acontecera…?! Ele havia chegado tarde…? Yukari…!

Yukari estava bem.

Se tivesse uma alma, ela teria abandonado o corpo de Gintsune naquele exato instante, tamanho o alivio que sentiu quando a viu, e ele apoiou-se sobre um joelho ao lado da cama, pegou uma das mãos dela entre as suas e beijou-a, estava sã e salva graças aos deuses.

—Quando o sinal soou achei que algo havia lhe acontecido. — murmurou pressionando a testa contra as costas de sua mão. — Estava tão longe que soube que não chegaria a tempo, eu sinto muito.

Yukari nem sequer se moveu.

Estava profundamente adormecida, havia chorado até a exaustão, mesmo sua mente embotada pela bebida foi capaz de perceber, ao discernir o os olhos inchados e o rosto manchado de lágrimas dela, e também que ainda usava o mesmo vestido com o qual havia saído com suas amigas.

—Eu juro que minha intenção nunca foi machucá-la. — sussurrou.

Então, ainda segurando a mão dela com uma das suas, ele ergueu a outra e deixou que uma pequena e brilhante labareda queimasse ali enquanto ecoava o mesmo cântico que tantas vezes sua mãe havia cantado para ele e a irmã quando ambos ainda eram filhotes, não sabia por que o último havia explodido e o chamado, talvez ela tivesse tido um pesadelo, ou ele simplesmente houvesse feito o encantamento da forma errada — nunca prestara atenção nas aulas de magia de sua mãe — mas não podia deixá-la desprotegida, não quando às vezes ela parecia ser um ímã de problemas!

E, principalmente, não quando estava assim tão desamparada… e ele havia se tornado no último ser do mundo que seria capaz de confortá-la.

—Yuki? — ele se sobressaltou ao ouvir a mãe de Yukari batendo à porta — Yuki você já acordou? — que horas eram?! — Temos que ir para a pousada, mamãe disse que você chegou cedo ontem, mas se ainda estiver dormindo seu pai ficará bravo…

Ela continuava chamando-a enquanto batia na porta insistentemente, até que Yukari finalmente começou a se mexer, franzindo o cenho e cerrando o punho esquerdo que pendia da beira da cama.

—Gintsune…? — murmurou com uma voz rouca que fez parecer como se sua garganta estivesse cheia de areia.

Mas quando abriu os olhos ela estava sozinha no quarto.

É claro que estava sozinha, por que chamar por ele havia sido a primeira coisa que fizera ao acordar? Talvez tivesse sonhado com ele? Esse pensamento a deixou desconfortável e constrangida, especialmente depois de os eventos da noite passada voltar todos de uma vez à sua cabeça, e ela virou-se na cama, encolhendo-se em uma bola sob as cobertas.

Queria poder ficar ali para sempre.

—Yuki? — sua mãe estava batendo na porta, então fora isso o que a acordara — Yuki, eu estou entrando.

Yukari sabia que aquele comportamento era atípico de sua parte e que talvez sua mãe o estranhasse, mas não conseguiu se obrigar a levantar, pois ela devia estar toda amarrotada e de cara inchada, além de ainda estar usando o vestido da noite anterior, e não queria que a mãe fizesse perguntas sobre seu estado.

—Bom dia mãe. — ela pigarreou, graças a sua voz de gralha.

—Yuki o que aconteceu com a sua voz? Está doente? — a mãe se preocupou tocando-a.

Imediatamente Yukari encolheu-se ainda mais debaixo da coberta, segurando-a firmemente, como se estivesse se escondendo em um casulo.

 —Eu estou com um pouco de dor de garganta, só isso. — respondeu rapidamente, não era mentira afinal. — Desculpe por acordar tarde, eu já vou descer. Pode me dar apenas mais cinco minutos?

—Ah claro, está com dor de garganta por causa do karaokê ontem à noite, que bom que se divertiu. — sua mãe concluiu rindo — Então eu vou preparar um chá de hortelã com gengibre e mel para você, mas não demore muito Yuki.

Respondendo com um murmúrio pouco articulado, Yukari esperou até que sua mãe saísse para começar a se arrastar da cama, mas não era apenas sua garganta que doía: a cabeça latejava como se uma super-nova estivesse explodindo por detrás de seus olhos, isso sem falar de seu nariz entupido, e agora que estava de pé sentia como se houvesse levado uma surra também, todo o seu corpo estava pesado e dolorido.

Mas ainda tentou o seu melhor para se arrastar até o banheiro e tentar parecer o mais apresentável possível — que bom que aquele cretino ao menos havia tido a consideração de devolver suas roupas, apesar de agora precisar rearrumar seu guarda roupa inteiro. —, porém julgando pela reação de seu pai no instante em que ela se sentou, não foi o bastante:

—Você está horrível!

—Daisuke, você tem a delicadeza de um coice de mula! — Tsubaki fungou, logo antes de também olhar para a neta — Minha nossa filha, você está horrível!

Yukari ficou com os ombros caídos.

—Me desc…

Ela assustou-se quando de repente o pai levantou-se se inclinando sobre a mesa e espalmou a mão na testa dela.

—Não parece estar com febre. — concluiu com cenho franzindo.

—Eu não estou doente. — Yukari tentou argumentar. — Só estou um pouco cansada.

Mas sua voz fanha pelo nariz entupido não gerava nenhuma confiança.

—Eu lhes disse que Yuki está com dor de garganta por causa do karaokê.

A mãe colocou uma xícara de chá diante dela.

—Abra a boca! — o pai ordenou quando ela tentou beber o chá.

—Pai! — reclamou.

—E coloque a língua para fora!

Derrotada, e absolutamente sem nenhuma força para resistir, Yukari desistiu e pousou a xícara de volta na mesa, fazendo como o pai lhe mandava, e esperando até que ele pegasse uma lanterna em uma das gavetas do armário e se posicionasse ao seu lado para “examiná-la”.

—Está muito vermelho. Feche a boca. — ele concluiu franzindo o cenho. — Seus olhos também estão vermelhos.

Yukari conteve o impulso de esfregá-los, cerrando os punhos.

—Eu acabei de acordar.

Mas seu pai balançou a cabeça, sem engolir aquela desculpa.

—Você está pálida e com o nariz vermelho. — ele pontuou insatisfeito, já puxando a gola da camisa sobre a boca e o nariz — Pegue o seu chá e volte imediatamente para o quarto, não saia de lá até segunda ordem, a menos que seja estritamente necessário e, nesse caso, só saia usando uma máscara, Chiharu vai te levar um mingau de arroz e medicamentos.

Rapidamente Yukari voltou-se para sua avó em busca de auxílio, mas a senhora limitou-se a beber um gole de chá e responder-lhe seriamente:

—Yukari, obedeça ao seu pai.

E era isso, sua sentença sem direito a apelação.

Pouco antes de chegar às escadas, ainda pôde ouvir a avó repreendendo ao pai na cozinha:

—Está satisfeito Daisuke?!

—O que eu fiz agora? — ele se surpreendeu — Ontem à noite quando ela saiu estava muito frio, é claro que pegou um resfriado! Por isso teria sido melhor se tivesse ficado e ajudado…!

—Ah, faça-me o favor! — a avó se impacientou — Se fosse assim todas as pessoas que saíram no natal estariam doentes agora! Quer que eu ligue para a casa do meu irmão e pergunte sobre a saúde de Kaoru? Isso só aconteceu porque você mantém a menina trancada aqui em cima o tempo todo, por isso que o mínimo contato com o mundo exterior a debilita…!

Yukari não estava doente!

E tudo o que ela menos precisava naquele momento era ficar trancada ociosamente em seu quarto remoendo os eventos da noite passada, sem absolutamente nada para distraí-la, mas talvez ela realmente precisasse descansar mais um pouco, sua cabeça não parava de latejar e seu corpo estava inteiro dolorido… nunca soubera que chorar podia ser tão extenuante.

Céus, nunca mais ela iria chorar tanto!

Mas Yukari não era a única cuja noite anterior estava lhe rendendo uma bela dor de cabeça, pois horas mais tarde, sentado nas escadarias para a pousada, Nadeshiko Izumi esfregava ambos os lados da cabeça furiosamente.

Assim como nas vezes anteriores, ele havia ido até lá para tentar falar com Yukari, mas dessa vez foi impedido por uma razão totalmente diferente daquele inexplicável e repentino desconforto de sempre: ela simplesmente não havia ido trabalhar.

Segundo a avó dela, se tratava apenas de um resfriado, mas Izumi sabia que ela provavelmente só estava doente por causa dele, afinal, aquele cara perigoso e suspeito talvez não a tivesse levado embora daquele jeito abrupto e sem nem lhe dar tempo de pegar o casaco se não a tivesse visto com ele naquela hora, então, antes que pudesse parar para pensar no que estava fazendo, foi até a farmácia mais próxima para comprar antigripais e… e agora o que?!

Seria muito estranho se um completo estranho de repente pedisse para ir visitá-la e levar remédios! E com certeza seria mais estranho ainda se ele simplesmente deixasse os medicamentos no balcão da pousada! Por que ele tinha que ser tão estúpido?!

Ele grunhiu furioso e, como se em resposta àquilo, ouviu logo em seguida um arquejo surpreso próximo a si.

Uma garota pequena e de cabelos curtos ondulados, que estava segurando uma grande sacola de papel, quase pulou de susto quando ele ergueu a cabeça, mas esforçou-se para sorrir-lhe e manter-se onde estava.

Será que ele a conhecia? Izumi sempre fora péssimo com fisionomias, ele levantou-se para encará-la mais de perto.

—Bom dia Nadeshiko-chan.

—Hã?! — ele ergueu a voz automaticamente — Do que foi que você me chamou mulher?!

A garota estremeceu arregalando os olhos.

—Desculpe, eu só…!

—Esqueça!

Descartou-a, isso com certeza era culpa daquela mulher irritante que enfiara aquela tiara ridícula em sua cabeça enquanto insistia que era o “código de vestimenta” da festa para onde o estava arrastando, a sobrinha do monge, qual era o nome dela…? Ichi-alguma-coisa Sakura? Não importa, agora ele precisava se lembrar do nome desta que estava na sua frente.

—Hum… então eu já vou indo.

A garota curvou-se ligeiramente e começou a contorná-lo e subir as escadas, mas foi detida quando Izumi a agarrou pela cabeça.

—Espere aí. — ele a chamou com voz áspera, soltando-a. — Você é amiga de Yukari, não é? Então está aqui para vê-la?

—Amiga de Yukari?

Kaoru olhou-o desconcertada por cima do ombro, por que ele estava tratando Yukari de forma tão intima e familiar assim?

—É ou não é?! — Izumi se impacientou erguendo a voz.          

—Ah! Sim! — Kaoru respondeu virando-se imediatamente, com as costas rígidas — Somos primas!

—E está aqui para ver ela ou não?! — ele a pressionou com sua voz alta.

—Sim, estou! — Kaoru respondeu mostrando-lhe a sacola que trazia consigo — Ela esqueceu o casaco ontem, por isso eu vim entregá-lo.

—Ela está doente, por isso entregue isso a ela por mim também.

Ele jogou algo dentro de sua sacola e virou-se para ir embora com as mãos nos bolsos.

Quando Kaoru espiou lá dentro, ela piscou surpresa, aquilo era… remédios para gripe?

—Espere Nadeshiko-chan! — chamou-o.

—Pare de me chamar dessa forma constrangedora! — Izumi gritou virando-se — Apenas Izumi já está bom, mulher!

—Certo! — Kaoru sobressaltou-se — Mas eu só estava pensando, se você não quer vir junto para vê-la também?

Izumi fez uma careta.

—Não seja ridícula. — a dispensou virando-lhe as costas novamente.

Ele parecia um pouco preocupado, por isso Kaoru achou que fosse uma boa idéia, mas já que essa era sua resposta… pelo menos ela havia tentado, deu de ombros e recomeçou a subir as escadas.

Até que sua cabeça foi agarrada novamente.

—Espere.

*.*.*.*

Ryosuke nunca havia considerado sua gentileza e incapacidade de abandonar aqueles que acreditava precisarem dele como algo ruim, mas agora, enquanto se arrastava exausto pelos corredores do castelo, com sangue fumegante escorrendo pelo braço de um ferimento em seu ombro, e imaginava quando poderia tirar um tempo para descansar e visitar a princesa no litoral novamente, precisava admitir que estava começando a ficar levemente inclinado em talvez achar que esse hábito era um pouquinho problemático.

É claro que hospedar onis seria trabalhoso para qualquer um, mas hospedar onis com sua deusa estava se confirmando ser talvez a segunda provação mais difícil que ele já enfrentara em sua vida.

Inicialmente um grande banquete fora organizado para receber os novos convidados, assim como era de praxe, porque Kanji com certeza adorava organizar grandes recepções, e já ali começaram as tribulações que seriam as responsáveis pelo estresse e perca de penas do pobre grou, embora de inicio Ryosuke não tenha visto nada de errado: Ohika-chan recusou-se a sentar-se no lugar de honra que lhe foi designado e, ao invés disso, ocupou o assento de Ryosuke no estrado, como anfitriã do banquete.

—Eu sou uma deusa Ryo-pyon, não é natural que eu esteja acima dos outros? — ela sorriu inocente, unindo as pontas dos dedos.

Os lugares de honra à sua esquerda estavam ocupados por sua comitiva, com Ryota, o oni vermelho pai de Ohika-chan, a encabeçando, enquanto Ryosuke sentou à sua direita, no lugar que geralmente era ocupado por Kanji.

—Certamente. — ele concordou servindo-a com saquê, para o quase colapso de Kanji.

—Então Ryo-pyon… — Ohika-chan sorriu-lhe docilmente enquanto girava a taça de saquê — Como sou sua convidada de honra aqui, me são suposto alguns favores, certo?

Era agora, Ryosuke pensou consigo mesmo, a razão pela qual ela abandonara seu território pela primeira vez desde que nascera e viera até ali.

—Se estiver ao meu alcance… — ele inclinou a cabeça.

—Ah, não é nada demais. — Ohika-chan garantiu — Eu só queria que você e seu passarinho se afastassem um pouco mais para o lado.

Ryosuke piscou desconcertado.

—Nos afastássemos? — repetiu — Por quê?

E juntando as palmas das mãos ela declarou com um sorriso inocente, como se estivesse procurando a forma mais divertida possível de fazer Kanji ter um ataque:

—Para que a linda Mayu-chan e seus preciosos filhotes possam se sentar mais junto a mim é claro!

Ao que parece Satoshi não teria mais que se preocupar com suas hipóteses de que Ryosuke estaria tentando lhe roubar a esposa.

Na verdade Ryosuke até viu Satoshi, que, ele não pôde deixar de notar, não fora convidado a se sentar mais perto de Ohika-chan, puxar os filhos e, por alguma razão, os alertar para “de jeito nenhum trocarem penas!” antes de os deixarem ir.

E agora que todos estavam em “seus respectivos lugares”, Ohika-chan ergueu os braços e bateu palmas para dar inicio ao banquete… e poucas criaturas no mundo eram capazes de beber e comer com a mesma voracidade que um oni.

Vinte deles então? Ryosuke sentia pena por seus amigos… e também de si mesmo, que não poderia abandonar aquele banquete até ele ter terminado, para se certificar de que ninguém ali seria confundido com o prato principal.

—Então Ohika-chan, é claro que estamos todos muito honrados com sua presença aqui, mas a curiosidade também é inquietante. — ele comentou a certo ponto dos festejos, já que parecia que nem Ohika-chan e nem nenhum de seus onis iria mencionar a razão da visita afinal — Então qual é a razão de sua visita? Desde o dia em que nasceu até hoje nunca havia abandonado suas terras…

Naquele momento Ohika-chan estava bastante distraída — e até um pouco radiante (literalmente) também — com o bebê de Mayu-san nos braços, mas ergueu os olhos por tempo o suficiente para responder:

—Ah sim, na verdade isso foi uma decisão do meu pai.

E indicou o grande oni vermelho, agora com uma forma mais próxima da humana, sentado à sua esquerda, antes de voltar sua completa atenção para o bebê impassível em seus braços, apesar de suas várias tentativas de fazer caretas e sons engraçados.

Vendo que não conseguiria mais nada dela, Ryosuke voltou-se para o oni de expressão insatisfeita, que comia usando as mãos com voracidade.

—E então meu amigo?

Triturando e chupando os ossos por entre suas presas, Ryota respondeu-lhe:

—Hikari sempre nos apresenta suas previsões de ataques para que possamos protegê-la, mas parece que recentemente esse sistema a entediou, e ela decidiu fazer um “jogo de adivinhação” conosco.

—Que tipo de jogo?

Ryota pegou uma grande porção de comida com as mãos e a enfiou inteira na boca.

—Ela nos ofereceu duas visões, disse-nos para escolher qual era a real, e depois decidirmos o que fazer: em uma delas, alguém próximo a essas terras, iria precisar muito de seu auxílio e por isso deveria vir o quanto antes. Na outra, sofreríamos um ataque de proporções catastróficas e, como poucas vezes ocorrem, nossas perdas superaria mais de quatro décimos da população, mas o mais grave de tudo seria que ao final o atacante, mesmo não saindo ileso, conseguiria levar nossa deusa, e os sobreviventes iriam ao seu encalço, partindo a terra com um rastro de carnificina e destruição… — Ryota apontou-lhe com um osso partido do tamanho de uma clava — No entanto você, mestre dragão, teria o poder necessário para protegê-la e evitar as mortes e toda a calamidade subsequente.

Então em resumo, ao lhe oferecer duas opções ela havia os deixado sem escolha alguma.

E agora, olhando em volta para o resto dos convidados no salão, não era só Kanji que parecia prestes a ter um ataque nervoso, os ombros de Ryosuke caíram desanimadamente.

—Então… seja qual for à escolha que os fez nos visitarem, saibam que estamos honrados. — afirmou, tentando amenizar os ânimos.

Mas Ohika-chan parecia ter outros planos e, erguendo o rosto com os olhos completamente iluminados, da forma como ficavam quando ela estava vislumbrando o futuro, ela perguntou-lhe animadamente:

—A propósito Ryo-pyon, o quão em boa forma você está?

Assim como em seu próprio banquete de boas vindas, nesse também a família tengu deixou o salão poucas horas após o início dos festejos, logo antes do amanhecer, apesar dos protestos da deusa oni.

E quanto a Ryosuke, independente de seus planos originais de ficar até o fim do banquete para fiscalizar a situação e manter tudo sob controle, ele logo precisou se retirar também quando Ohika-chan mencionou que essa era uma boa hora para ele testar se estava em boa forma, e sugeriu que talvez ele devesse voar até dois quilômetros a norte-nordeste do castelo.

Os ataques de inimigos buscando pelo poder do coração de Ohika-chan eram freqüentes e incessantes, mas em geral eram somente youkais de pequeno e médio porte dos quais até suas sentinelas podiam cuidar sem maiores problemas e que causavam mais barulho do que problemas em si, principalmente vindo da parte de Ohika-chan, que começou a reclamar e fazer escândalos quando o coração de seus inimigos não lhe foi servido para degustar no banquete que continuava ininterrupto até agora, vinte dias depois… mas, independente dos costumes que os onis mantinham em suas próprias terras, nas terras de Ryosuke não se devoravam uns aos outros.

E mesmo os poucos casos onde a presença de Ryosuke para lutar era indispensável ainda não pareciam graves o bastante para ser algo que a vila de onis de Ohika-chan não conseguiria dar conta por si mesma, e é claro que nenhum desses casos vinha do leste, pois ali estava a área que as raposas haviam estabelecido como seu território pessoal e a sanguinária raposa prateada parecia cada vez menos disposta a tolerar “invasores”… obviamente ali Ryosuke não conseguia fazer valer sua lei de “proibição de devorarem uns aos outros”.

Por agora parecia que o dragão e as raposas estavam lutando do mesmo lado contra invasores, mas Ryosuke sentia que se continuasse daquela forma, talvez logo precisasse tomar providências.

Porém as coisas poderiam ser bem piores, pensou consigo mesmo, Ohika-chan e seu séquito ainda estavam no salão de banquetes desde o dia em que chegaram, então até então somente o salão de ouro fora destruído, além de que praticamente todos os moradores do castelo estavam ocupados servindo no “banquete infernal” — como ouvira alguns o chamarem — então o castelo estava praticamente vazio e não havia ninguém ali para vê-lo se arrastando de exaustão e deixando aquela trilha de sangue.

Se o vissem naquele estado certamente fariam um escarcéu.

—Oh minha nossa! Mestre o que houve?!

Falou cedo demais.

Suspirou, soltando grandes anéis de fumaça pela boca, antes de virar-se.

Uma dama de cabelos azulados presos em um ornamentado — mas propositalmente descuidado — penteado e vestindo tons de azul e branco com detalhes em dourado vinha correndo em sua direção equilibrando-se sobre tamancos altos de madeira, ela vestia-se de forma ousada, com o obi voltado para frente, o decote do quimono baixado até expor seus ombros e parte dos seios, e a frente aberta mostrando suas pernas.

Fazia algum tempo que não a via, por isso Ryosuke demorou alguns segundos para reconhecê-la, antes de reparar nos cristais de gelo que pendiam de seus cabelos, roupas e orelhas.

Ele arregalou os olhos.

—Ofuyo não se aproxime! — ordenou agarrando com a mão sadia o braço ferido, tentando conter o sangramento, uma gota daquele sangue fervente e a tsurara-onna poderia machucar-se gravemente, ele tentou sorrir amigavelmente — É bom revê-la, esse ano você demorou um pouco mais a despertar, não é?

A tsurara-onna deteve-se a pouco mais de meio metro de distância dele, mordiscando o lábio azulado enquanto olhava para as poças fumegantes do rastro de sangue deixado pelo chão.

—Acho… que esse ano deve ter sido um pouco mais quente. — respondeu hesitante — Quando acordei, todo o castelo parecia vazio e não entendi o que estava acontecendo, e agora o senhor está ferido… o que está acontecendo?

Claro que estava confusa, pois Ofuyo só podia existir durante três meses por ano, no inverno.

—Ah, isso, como posso explicar? — ele tornou a sorrir, apertando o braço machucado com um pouco mais de força, tentando impedir que mais de seu sangue gotejasse no chão — Muitas coisas aconteceram por aqui desde o último inverno…

—Akio! — um grito cortou suas palavras — Onde está Akio?!

Mayu-san surgiu correndo da extremidade oposta do corredor, em total desespero.

Anéis de fumaça voltaram a espiralar da boca de Ryosuke.

Pelo visto nada estava tão ruim que não podia piorar um pouco mais, não é?

*.*.*.*

Izumi havia sido muito claro: se ele estivesse incomodando, aquela garota tinha que lhe dizer imediatamente para que ele fosse embora!

Mas então, antes que percebessem a avó de Yukari já estava chamando pela mãe de Yukari para acompanhá-los até a casa, e agora que já havia atrapalhado o trabalho da mulher, ele não podia simplesmente dizer que não era mais necessário e acabar atrapalhando-a por nada!

Principalmente porque sabia que elas só estavam tendo todo aquele incomodo por causa dele, pois se fosse somente Kaoru ali, que era da família, não haveria porque fazer tudo isso. Então pelo menos ele garantiria que iria embora o mais breve possível, só precisava trocar uma palavrinha com Yukari.

—Yuki estava dormindo quando eu subi para lhe levar o mingau mais cedo, mas eu vou ver se ela está acordada agora. — a Sra. Shibuya os avisou, deixando-os entrar em casa.

—Desculpe a intromissão. — Kaoru curvou-se levemente.

—Desculpe o incomodo. — Izumi completou com as mãos nos bolsos e os ombros curvados.

—Por favor, fiquem à vontade, eu vou ver como ela está se sentindo agora.

Chiharu lhe indicou a direção da sala enquanto subia às escadas.

Antes, quando fora ao quarto de Yukari para lhe levar mingau de arroz e remédios, a filha já havia voltado para a cama e, aparentemente, readormecido, porém Chiharu esperava que aquela altura ela já houvesse acordado e comido pelo menos um pouco… mas o que certamente não esperava era encontrá-la no meio do quarto, sentada no chão com um amontoado de roupas ao seu lado e várias pequenas pilhas organizadas como um semicírculo à sua volta!

—Yuki. — chamou-a — O que você está fazendo?

Yukari parou bem no meio do processo de dobrar uma camiseta e olhou-a meio atordoada.

—Separando e organizando as roupas por cor, tipo e estação. — respondeu enrouquecida.

As sobrancelhas de Chiharu se arquearam.

—Você devia estar descansando, não reorganizando seu guarda-roupa!

 Yukari olhou de volta para as pilhas de roupas à sua volta, antes de voltar a continuar dobrando-as.

—Eu só queria algo para fazer, não consigo descansar porque minha cabeça está um turbilhão, e meu guarda-roupa estava tão bagunçado que…

—Francamente, Yuki. — sua mãe suspirou, abaixando-se ao seu lado e sentindo sua testa e bochechas com as costas das mãos. — Agora você está parecendo seu pai.

Yukari afastou as mãos da mãe, delicadamente.

—Não estou com febre.

Colocou a camiseta sobre a pilha correspondente e puxou um vestido do monte de roupas ao seu lado, mas a mãe o tirou de suas mãos antes que ela começasse a dobrá-lo também.

—Você vai piorar se não descansar. — afirmou ajudando-a/obrigando-a a levantar. — Irei dizer que se sente muito indisposta e pedirei que voltem outro dia.

—Como assim? — Yukari a olhou — Quem está aí, mamãe?

Cinco minutos mais tarde ela estava entrando na sala, sentindo todo o corpo doer, e vestida com seu jinbei e máscara descartável.

—Me desculpe por fazê-los esperar. — rouquejou com a garganta em chamas.

—Imagine Yuki, nós é que devíamos nos desculpar por vir incomodá-la mesmo estando doente! — Kaoru desculpou-se apressadamente ao perceber seu estado.

Ao lado dela, Izumi — o visitante inesperado — concordou balançando a cabeça enfaticamente.

—Não tem problema, eu estou bem. — ela respondeu sentando-se no chão junto com eles à mesa e sentindo a cabeça girar um pouco — Podia perfeitamente estar trabalhando.

—Eu costumo me esquecer disso porque não acontece com frequência, mas às vezes você pode ser tão teimosa quanto a mamãe e o Daisuke. — sua mãe suspirou passando pelo corredor em direção à cozinha.

Kaoru cobriu a boca para disfarçar uma risadinha, enquanto Yukari encolhia os ombros, até que de repente sentiu a enorme mão de Izumi se espalmar contra sua testa.

—Não estou com febre. — negou afastando-o.

Estava começando a ficar cansada de ter que ficar repetindo aquilo o tempo todo.

Fazendo uma careta, e sem dizer nada Izumi apenas deixou um saquinho de papel diante dela na mesa, ao qual Yukari pegou e abriu de cenho franzido para saber o que havia lá dentro: antigripais, pastilhas para a garganta e compressas térmicas adesivas.

 

—E eu vim trazer seu casaco. — Kaoru entregou-lhe a sacola de papel que tinha consigo — Ah, e isso também. — acrescentou deslizando um envelope em sua direção. — É o seu troco de ontem à noite, a representante disse que os ¥ 20.000 que você deixou seriam suficiente para pagar a conta de todos nós.

Yukari ficou encarando em silêncio os punhos fechados sobre o colo, enquanto sua mãe retornava à sala e servia aos três com chocolate quente, antes de sair novamente, aparentemente indo para o andar de cima, e Yukari tentou não pensar que ela estava indo “arrumar” a bagunça em seu quarto — mesmo sem provavelmente nem entender o sistema de organização dela. — nesse momento Kaoru a olhou e inclinou-se em sua direção. 

—Ficamos todos preocupados ontem quando você foi embora de repente. — ela mexeu a caneca de chocolate quente inquietamente — Quando Sakura-chan nos disse que você tinha ido embora com Gin-san, Nad… digo, Izumi-kun. — ela olhou de relance para o grande adolescente — Até tentou ir atrás de você, mas então Aoi-chan começou a passar mal e ele e Sakura-chan a levaram para casa junto com a representante, que ia dormir na casa dela, por isso nós demos a reunião por encerrada e o presidente Tanaka me acompanhou para casa também.

Yukari mexeu-se desconfortável engolindo em seco.

—Desculpe por ter estragado tudo. — pediu empalidecendo.

—Não, não! — Kaoru sacudiu a cabeça, agarrando uma de suas mãos — Por favor, Yuki, eu só queria saber se estava tudo bem… Sakura-chan mencionou uma… briga…? E também o chamou de “um cara incrivelmente lindo e babaca”? P-por acaso ele ficou bravo porque você saiu conosco no natal ao invés de com ele?

Aquele mal entendido de novo.

Por que todos continuavam agindo como se realmente houvesse algo entre eles, independente de quantas vezes Yukari negasse?

Seu estômago revirou-se e ela apertou a mandíbula sentindo os olhos já começarem a pinicar conforme toda a sua humilhação da noite anterior retornava à sua cabeça.

Ele não precisava ter rido daquela maneira.

—Não… na verdade… — um nó se formou em sua garganta.

Mas por que ela tinha que ter dito tudo aquilo?!

—A culpa foi minha! — Izumi disse de repente. — Não foi minha intenção, mas eu estava com ela quando aquele sujeito chegou e ele não gostou!

Aquela história estava se tornando cada vez mais absurda, e a cabeça de Yukari havia começado a latejar.

—Gin-san é perigoso? — Kaoru assustou-se — O que está acontecendo?!

—Nada! — Yukari praticamente grasnou — E eu não quero falar sobre ele agora, isso não… isso não importa mais, ele já foi embora e eu nem sei onde está agora. — encarando a caneca de chocolate quente, ela massageou a garganta, baixando a voz até ser quase apenas um coaxo — E talvez depois da noite passada, possa ser que eu o tenha espantado para sempre.

Um silêncio desconfortável se formou e, talvez em uma atitude um pouco desesperada, Yukari pegou o controle remoto e ligou a televisão, para preencher o vazio, mas aquilo não ajudou.

—Então… — Kaoru deixou a caneca vazia sobre a mesa e mexeu-se inquieta — Acho que é melhor irmos agora e a deixarmos descansar…

Izumi deixou sua caneca, ainda pela metade, pesadamente sobre a mesa.

—Isso me deixa mais calmo. — declarou como se fosse incapaz de sentir o clima — Eu só queria te dizer isso antes de voltar para Kyoto: não importa o que, você tem que ficar longe do sujeito, eu sinto que tem algo de muito errado com ele! E também. — ele fez uma careta — Acho que seria melhor aquela garota pesada que eu carreguei arranjar algum amuleto para casa dela.

Ele com certeza não estava dizendo que Gintsune oferecia também algum perigo para Aoi-chan, afinal mesmo se o considerasse um sujeito perigoso, ele não sabia sobre sua verdadeira natureza…

—Izumi-kun você já está indo embora? — Yukari perguntou-lhe.

Ele anuiu já começando a se levantar.

—Vamos pegar um ônibus para Tóquio hoje à noite, e de lá pegaremos o trem bala para Kyoto, meu pai tem que voltar para o templo para as cerimônias de final de ano. — explicou. — E eu também tenho que estar de volta antes do final do recesso de inverno, já que só pude acompanhá-lo dessa vez porque levei duas semanas de suspensão.

—Por que você foi suspenso? — Yukari franziu o cenho.

Já de pé, o adolescente apontou para a cabeça e respondeu bruscamente:

—Graças aquele barbeiro maluco do meu senpai!

E então, fazendo um careta, estendeu ambas as mãos para as garotas, que acabaram levando alguns segundos para perceber que na verdade ele estava oferecendo-se para ajudá-las a levantar.

Kaoru voltou a abafar uma risadinha com a mão sobre a boca.

—Izumi-kun, na verdade você é um pouco diferente do que a sua primeira impressão nos faz acreditar, não é? — perguntou aceitando sua mão.

—Hã?!

A voz de Izumi se ergueu, mas dessa vez Kaoru não estremeceu.

—Obrigada por terem vindo. — Yukari agradeceu aceitando o apoio que Izumi lhe oferecia para levantar — Mas antes de ir eu queria te perguntar algo Kaoru, mas, por favor, não faça perguntas.

—O que foi?

Yukari franziu o cenho.

—Como faço para trocar a imagem de proteção de tela do meu celular?

—Isso…

—… de duzentos e cinquenta e sete milhões de ienes em saquê desapareceram. — Yukari congelou por meio segundo, antes de virar-se sobressaltada em direção à televisão: —… o crime aconteceu nessa última madrugada do dia 25, toda a ação parece ter levado em torno de vinte minutos e as autoridades ainda não possuem pistas de seus autores, mas acredita-se que tenham usado alguma espécie de dispositivo para danificar as câmeras de segurança, que entraram em curto e derreteram no momento do atentado, os seguranças afirmam…

A chamada correndo na parte inferior da tela anunciava: misterioso ataque à fábrica de Konishi Shuzo, na cidade de Itami, Prefeitura de Hyogo, na última madrugada leva à perda de mais de 2,5 milhões de ienes em saquê.

Yukari levou ambas as mãos à cabeça, sentindo aquele latejar aumentar ainda mais.

Ela retornou para seu quarto com os medicamentos onde permaneceria confinada à cama, se recuperando do que afinal era sim um resfriado e não apenas o resultado de ter chorado em excesso, pelo restante dos três dias seguintes… e, apenas por garantia, permaneceria também mais outros dois em isolamento por ordem de seu pai, e ninguém voltou a mencionar nenhuma raposa durante momento algum desde então, mas parece que afinal ela sabia sim exatamente onde Gintsune estava.

Gintsune não se lembrava da última vez que havia passado mal daquele jeito, na verdade ele sequer se lembrava se alguma vez havia passado mal.

—Oh, meu pobre, doce e lindo To-chan.

Sua irmã o confortava, segurando seus cabelos e passando a mão em suas costas enquanto ele convulsionava e expulsava todo o conteúdo que havia em seu estômago — na maior parte saquê — nas históricas ruínas do castelo Takeda.

—Ah… acho que afinal bebi demais, não é? — ele tentou sorrir erguendo-se e fazendo menção de limpar a boca com as costas da mão. — Quem diria que raposas poderiam ficar enjoadas, não é?

Mas a irmã o deteve, puxando o rosto dele para si e limpando sua boca cuidadosamente com um pano úmido.

E tudo isso era culpa daquela garota insolente, Momiji era incapaz de ocultar por completo a pequena centelha de ressentimento que brilhava no fundo de seus olhos, era por ela o ter confundido, ao rejeitar sua doce e pura amabilidade que agora ele estava tão abalado!

—Se sente muito mal? — ela perguntou-lhe preocupada.

Se pudesse a teria pulverizado…!

Simplesmente não compreendia porque aquela reles humana ingrata era tão preciosa para seu auspicioso príncipe.

—Eu só preciso de um pouco de saquê para repor o que perdi. — Gintsune garantiu sorrindo e segurando o pulso da irmã — Mas por que você está usando luvas, irmã?

Na verdade o problema não fora ele ter bebido até cair, e sim a velocidade com a qual atravessara o Japão voando com sua velocidade máxima depois de sentir que Yukari estava em perigo, e como o cruzara novamente, quando se deu conta que havia simplesmente abandonado a irmã sem lhe dizer aonde ia!

—Achei que me encaixaria melhor na sociedade se me vestisse de acordo, e elas pareciam adequadas para o inverno. — sua irmã virou as mãos diante do rosto, observando as luvas negras de couro, abotoadas até o meio de seus antebraços, e então ergueu os olhos lentamente — Não me caíram bem?

—De forma alguma, você está encantadora! — ele apressou-se a dizer.

—Obrigada To-chan. — ela sorriu-lhe calidamente — pensei em usar esses tais… sapatos também. Mas parecem desconfortáveis.

—É um pouco estranho no começo. — ele admitiu, pegando uma nova garrafa de saquê — Mas ficariam lindos em você.

Afinal, o que no mundo não ficaria lindo em sua irmã?

Antes de começar a beber a nova garrafa, Gintsune usou o primeiro gole para fazer bochecho e gargarejo, cuspindo-o junto com o gosto amargo dos restos do vômito, depois continuou bebendo até secar a garrafa inteira de uma vez.

As garrafas iam apenas se empilhando e sendo cobertas pela neve por entre as pedras e em volta do corpo dele estirado na grama congelada, enquanto sua linda irmã, portando uma imagem bem mais recatada e refinada, sentava-se elegantemente sobre um estrado com almofadas na sombra de uma wagasa vermelho sangue estampada meticulosamente com um redemoinho de flores e pétalas brancas, que a protegia na neve que caia lenta e continuamente, e dava preferência a beber seu saquê morno, em taças tradicionais brancas quadradas.

É claro que ela preferia que To-chan se sentasse ali em cima com ela, e admirasse a paisagem das montanhas cobertas de neve e névoa ao seu redor, mas ele não queria poluir a bela imagem viva que ela havia composto ali.

Ainda assim, ele aproximou-se meio arrastando-se do estrado com uma nova garrafa na mão e recostou as costas ali com um longo suspiro.

—Irmã, o que eu deveria fazer com Yukari agora? — queixou-se levando a mão ao interior do quimono, Momiji tinha a convicta opinião de que ela deveria ser exterminada por sua ofensa e descaramento, mas sabia que não era isso que seu compassivo e gentil irmão desejava ouvir. — Ela é importante e especial para mim, é uma amiga muito querida, por isso tratei de protegê-la e cuidá-la, mas… — suspirou longamente, completando o gesto bebendo mais três longos goles de saquê — Ela é inteligente, nunca se deixou levar por meus truques, uma garota admirável… ou assim eu pensava. — a expressão dele torceu-se um pouco, numa expressão dolorosa de se ver, e os dedos de Momiji comicharam com as centelhas que não pudera disparar contra a vil algoz do sofrimento de seu adorável príncipe — Eu não percebi que ela tinha aquele tipo de sentimentos crescendo por mim. — ele puxou a mão lentamente para fora do quimono, Momiji achou que tiraria dali seu kisero, mas inesperadamente ao invés disso o que se revelou foi uma mera luva — No fim ela me mal interpretou e acabou sendo apenas mais uma que se deixou levar por minha ilécebra… ou era o que eu queria dizer, mas a verdade é que a culpa foi minha, eu passei dos limites. — lamentou aproximando a luva do rosto e aspirando seu perfume — Se eu ao menos tivesse me contido… — subitamente ele parou, baixando a mão — Até eu sei que há um limite para se brincar com os sentimentos de nossos amigos, então por que não me contive com ela e continuei agindo tão impulsivamente?! — o punho que segurava a luva socou o chão e ele olhou-a por cima do ombro — Foi como se eu estivesse pisando em seu coração de propósito. Nem eu sabia que podia ser tão vil assim.

—To-chan! — Momiji ofegou deixando a taça de saquê de lado com um movimento firme — Eu não posso tolerar que absolutamente ninguém diga palavras tão descorteses contra meu amado príncipe. — declarou, colocando as mãos sobre o colo — Mesmo que seja você próprio.

Largando a garrafa já vazia de saquê, Gintsune virou-se cruzando os braços sobre o estrado e olhando-a suplicante.

—Mas irmã…!

Momiji limpou a neve que se acumulava no topo de sua cabeça e acariciou a lateral de seu rosto.

—A culpa não foi sua, To-chan. — assegurou sorrindo-lhe — Afinal como alguém poderia não amar você?

Pelo menos quanto a isso Momiji precisava dar o braço a torcer quanto àquela humana, afinal como alguém poderia não amar seu precioso príncipe?

Mas a forma como ela o tratara continuava a ser imperdoável.

—Mas eu não devia ter me forçado tão impulsivamente contra ela, principalmente sabendo do efeito que posso causar. — ele suspirou deitando a cabeça sobre os braços.

Momiji acariciou seus cabelos.

—Acho que vocês só precisam de um tempo. — sugeriu — To-chan, você compreende isso melhor do que eu: o quão mutável são os corações humanos. Eles não são como nós. Suas vidas são curtas, por isso seus corações precisam sentir tudo de maneira rápida e intensa, para que consigam ter tempo de sentir tudo. Mesmo se aquela garota acha que o ama agora… ela vai esquecer-se disso logo, graças ao seu coração humano e inconstante. E então você poderá ser amigo dela novamente.

É claro que era assim que as coisas funcionavam, todos os humanos que um dia o amaram provavelmente se esqueceram dele alguma hora também, e mesmo na improvável possibilidade de o terem amado até o fim de suas vidas, de que isso lhe serviria? O que era uma mera vida humana comparada à vida secular de um youkai?

Ele nunca havia desejado o amor de Yukari, mas, por alguma razão, pensar que ela também poderia mudar tão facilmente seus sentimentos por ele, não o consolava, mesmo que ele quisesse continuar estando perto dela e ser seu amigo.

Gintsune não queria mais pensar naquilo, nem em Yukari, nem na expressão ou nas palavras dela, nem em nada, ele entornou e secou uma nova garrafa de saquê de uma só vez.

Talvez ele realmente precisasse de um tempo no final das contas.

—Irmã, sabe de uma coisa? — apoiou o rosto sobre uma mão — Ainda devemos levar um dia e uma noite para terminarmos todo esse saquê. — ele esticou a mão livre e pegou uma nova garrafa — Talvez menos… mas já estou cansado de saquê, então o que acha de irmos a Kagoshima depois?

E é claro que as próximas notícias a chegarem até Yukari, eram sobre centenas de shochu desaparecidos em outro incidente, dessa vez na província de Kagoshima.

*.*.*.*

Gintsune definitivamente era filho daquela mulher, pois o sorriso que ela exibia agora era exatamente o mesmo que ele exibira quando havia sequestrado os filhos de Mayu e Satoshi e os levados para aquele festival idiota.

—Mayu-chan, não precisa ficar irritada, eu só queria conseguir atrair as duas até aqui. — Furin se justificou por trás de sua máscara de raposa branca, agachada com um dos braços em torno dos joelhos enquanto grelhava as carnes diante de si, como se fosse uma criança travessa, enquanto seus assistentes raposas voavam de um lado para o outro com pincéis, potes, pergaminhos e outras ferramentas. — Eu apenas o peguei emprestado por uma horinha ou duas, nunca separaria uma mãe de seu filhote.

Arrumando o filho recém resgatado dentro de seus quimonos, para que pudesse ficar aquecido e mamar, Mayu tentou não fazer uma careta e nem imaginar a que tipo de criaturas pertencia às carnes de procedência desconhecida com variados formatos, odores, tonalidades e texturas.

—Ainda assim Furin-sama. — ela suspirou com o ar condensando-se diante de seu rosto — A senhora poderia apenas ter nos enviado um recado.

Tennyo Hikari fora quem havia encontrado a localização do pequeno Akio, quando Mayu e Satoshi recorreram até ela, foi uma sorte terem a encontrado consciente, apesar de suas faces coradas e fala levemente arrastada, enquanto mais da metade de seus onis — incluindo seu pai — dormiam ruidosamente sob o efeito da bebida, eles a pagaram por uma de suas previsões com uma das moedas que circulavam na cidade, pois o uso de dinheiro era raro no mundo youkai, e aquelas moedas em específico não circulavam em outro lugar se não ali na cidade do dragão.

—Acho que em um mundo com tamanha escassez de carne humana, a carne de meio youkai é o que temos de mais próximo, então seria natural que um ou outro desaparecesse nessa cidade, especialmente agora com Ryo-pyon tão ocupado…

Ela comentou deitando-se de lado no estrado com o cotovelo sobre o apoio de braço enquanto girava a moeda entre os dedos da mão livre, fazendo os preocupados pais empalidecer.

—Carne?! — engasgou-se Satoshi.

—Mas por que levariam um bebê tão magrinho e pequeno de dentro dos muros do castelo? — ela seguiu ponderando, guardando a moeda dentro do decote, e então esticando a mão repentinamente para agarrar a de Mayu-san — Ainda mais com sua preciosa e rara mãe bem aqui…!

Satoshi as separou colocando o braço entre elas, enquanto os olhos de Mayu já se enchiam de lágrimas e ela cobria a boca com ambas as mãos, até então não estava realmente preocupada com Akio, acreditando que seu sumiço era só mais uma pegadinha — talvez de raposas —, mas agora estava começando a sentir que iria desmaiar, porém Hikari nem pareceu se incomodar.

—Não se preocupe Mayu-chan! — ela sentou-se repentinamente — Irei encontrar imediatamente o seu bebê, e se alguém tiver feito qualquer mal a ele, meu pai irá pessoalmente moer os ossos do malfeitor e eu devorarei seu coração!

Afirmou com os olhos já se iluminando, enquanto limpava um filete de saliva do canto dos lábios.

Felizmente nenhum osso precisou ser moído ou coração arrancado, pois nenhum mal havia se acometido sobre Akio, e ele sequer havia sido levado para além dos muros do castelo: Anko estava brincando na neve com Akio em um jardim numa área mais distante e menos visitada do castelo — especialmente agora com todos tão ocupados com os onis — enquanto Furin atiçava o fogo ali perto.

—Vocês não teriam vindo tão rápidas se eu tivesse mandado um recato e, além disso, aqueles onis enormes poderiam ter comido um dos meus assistentes. — sorrindo ela comeu um pedaço de carne e lambeu os dedos — Tamaki queria ter vindo junto, mas eu lhe disse que sua presença aqui estragaria a brincadeira de esconde-esconde antes mesmo de ela começar!

Deu risada enquanto seu filhote sorrateiramente se aproximava para surrupiar um pedaço de carne.

—Realmente foi um jogo divertido. — Hikari confirmou ao lado de Mayu.

—Ah, delicada deusa oni, eu separei isso para você! — Sorrindo de lado, Furin pegou em cada uma das mãos uma tira de carne fibrosa e robusta que quase chegava ao tamanho de seus antebraços — É o coração da tsuchigumo que meu marido matou ontem, ouvi dizer… que aprecia esse tipo de iguaria.

E voltou a rir quando Hikari puxou vorazmente os pedaços de carne de suas mãos, Mayu precisava se sentar…

—Ainda assim Furin-sama, quando o bebê se transformou em um boneco de palha trançada bem em seus braços, Mayu levou um susto tão grande que eu quase achei que iria cuspir o coração pela boca. — Satoshi suspirou sentando sobre o torii ali perto.

—Oh querida, eu não fazia idéia que a tinha assustado tanto, lamento muito! — Furin cobriu os lábios esverdeados com a ponta dos dedos — Humanos são sempre tão frágeis…! Aqui, pegue e recomponha suas forças, os nutrientes também serão bons para seu leite!

Ela lhe ofereceu o que parecia ser um pedaço de cauda… ou tentáculo.

Mayu recuou um passo.

—Está tudo bem Furin-sama, já me sinto bem agora. — afirmou.

—Tem certeza querida? — ela nem se incomodou quando seu filhote pegou a carne de entre seus dedos e saiu correndo novamente — Temos bastante, Tamaki tem tido bastante caça recentemente…

—Eu estou bem. — garantiu.

—Pelo menos nem um dos pedaços aqui são de tengu. — Hikari comentou lambendo os dedos e observando o restante da carne — Eu estava mesmo imaginando quando seria convocada, eu pude ver que a senhora iria precisar de mim, mas não consegui definir o dia exato e tampouco a razão.

Uma das supostas visões de Tennyo Hikari dizia-lhe que alguém próxima àquelas terras precisaria de sua ajuda, por isso ela precisava vir o quanto antes! Mayu deu-se conta de repente.

Sorrindo astuciosamente Furin ergueu-se arrumando a máscara diante do rosto, hoje ela usava um quimono branco estampado na saia e no ombro esquerdo com silhuetas acinzentadas de bambus, e o movimento quase a fez parecer estar se esvaindo em neblina.

—Você é realmente uma garota muito especial. — afirmou se aproximando e acariciando as faces e os chifres de Hikari — Assim como essa sua ascendência divina que irá permitir-lhe cruzar os mundos.

Os olhos Hikari se arregalaram, mas ela não conseguiu se mover, como se estivesse presa na armadilha da raposa feiticeira.

Mayu engoliu em seco.

—Eu não… — Hikari hesitou — Eu não posso… não devo atravessar os mundos. — ela mordeu o lábio inferior — Os deuses…

—Oh querida. — o sorriso de Furin parecia cada vez mais sinistro — Mas tenho certeza que você será gentil para ajudar uma pobre mãe a reencontrar seus filhotes. — ainda segurando o rosto de Hikari entre as mãos, ela voltou-se para Mayu — Ambas me ajudarão, é claro, pois são meus indispensáveis ingredientes para meu sortilégio.

De repente Mayu e Hikari gritaram quando uma carcaça humanoide decapitada e repleta de tentáculos caiu do céu próximo aos seus pés, sujando-as de neve e sangue.

—Não achei que encontraria um desses tão longe do litoral. — Tamaki comentou pousando ali perto com as roupas ensanguentadas e rasgadas, segurando a cabeça grande e molenga da criatura abatida na mão. — Por isso achei que gostaria de tê-lo para sua pequena reunião.

Furin retirou a máscara e afastou-se de Hikari.

—E essa foi à melhor desculpa que conseguiu arranjar para vir até aqui, por que não podia ficar longe de sua amada esposa e filhote? — questionou rindo — Eu estava agora mesmo dizendo às minhas queridas amigas como elas vão me ajudar a reaver meus preciosos filhotes.

Quando Tamaki as encarou Mayu sentiu o frio invadi-la de dentro para fora e, de repente, teve a sensação de só porque a primeira visão de Tennyo Hikari era a “verdadeira”, não significava que a segunda era completamente falsa… pois independente de seus meios, Furin sempre parecia conseguir o que queria.

*.*.*.*

Mesmo na virada do ano, Yukari era obrigada a trabalhar até mais tarde, seu pai era realmente impiedoso nesse aspecto, hoje ela tinha que limpar as termas, mas sentia seus músculos rígidos e doloridos…

—Talvez eu possa lhe fazer uma massagem? — uma voz sussurrou-lhe ao ouvido sugestivamente, pousando as mãos em seus ombros e, com os polegares, traçando círculos lentos em suas escápulas.

—Gintsune! — ela arfou sentindo o coração saltar e todos os pelos de sua nuca se arrepiar, tentou afastar-se, mas ele a segurou onde estava — Pare de brincar!

Tentou beliscar uma das mãos que ainda estavam sobre seus ombros, mas ao invés de afastá-lo, isso pareceu ter o efeito contrário quando sua outra mão desceu e a envolveu, puxando-a para mais junto de si, colando-se a ela.

O os olhos de Yukari se arregalaram e seu corpo paralisou, enquanto a cor subia rapidamente às suas faces.

—O-o que você está…? — ela gaguejou com a respiração descompassada.

—Shhh. — ele murmurou suavemente.

A mão que ainda permanecia em seu ombro subiu por seu pescoço e segurou seu queixo, firmando-se ali e inclinando-lhe a cabeça de lado, deixando seu pescoço exposto.

Quando ela sentiu os lábios do youkai ali, todo seu corpo estremeceu.

—Pare com isso, odeio quando brinca assim! — gritou com voz aguda, debatendo-se.

Dessa vez ele a soltou e suas pernas bambas a fizeram cambalear e apoiar-se na parede diante de si para evitar cair.

—O que é que deu em você?! — perguntou revoltada, olhando-o por cima do ombro e utilizando-se de todas as suas forças para manter-se de pé.

Mais uma vez aproximando-se, Gintsune cercou-a com um braço de cada lado de seu corpo, e apoiou a testa na sua.

—Sobre o que aconteceu na outra noite…

—Não quero falar sobre isso! — Yukari fechou os olhos com o vermelho da humilhação lhe subindo rapidamente às faces.

—Você me odeia agora? — balbuciou — Quer que eu vá embora e nunca mais volte?

O cheiro de bebida em seu hálito era pungente, apoiando as costas contra a parede Yukari cobriu boca e nariz com ambas as mãos.

—Está bêbado! — acusou-o.

—Eu não quero te deixar ir Yukari. — ele seguiu falando, voltando a envolver sua cintura e puxá-la para ele — Por favor, não foi minha intenção te magoar naquela noite…

—Claro que não, porque você é um cretino conquistador e insensível sem empatia alguma! — ela tentou empurrá-lo inutilmente.

Isso foi um erro, a sensação do calor dele fez as palmas de suas mãos formigarem.

—Apenas me escute um pouquinho e depois, quer você queira que eu vá ou fique, prometo que farei o que quiser. — ele suplicou, voltando a esfregar a ponta do nariz em seu pescoço, depositando beijos aqui e ali, de forma que ela não conseguiu reunir forças para tentar afastá-lo novamente. — Naquela noite, não foi minha intenção te magoar… — começou a falar, enquanto lentamente uma de suas mãos entrava por dentro de sua camisa e subia-lhe as costas —… eu não devia ter rido daquela forma, eu sei, mas fiquei… incrédulo demais.

Ela sentia que suas palavras deveriam estar machucando-a ainda mais, porém sua mente estava em branco, não conseguia pensar em absolutamente nada, e as mãos espalmadas em seu tórax fecharam-se, amassando o tecido de seu quimono entre os dedos e o puxando inconsequente ainda mais para perto.

O que ele estava fazendo com ela?!

—Eu… eu sei… — sua voz saiu rouca e entrecortada, pela respiração irregular, precisava se concentrar… reunir os fragmentos de sua concentração em frangalhos. — É porque para você sou tão desinteressante que…

Ele cheirava a bebida, mas isso não importava mais, pois se sentia como se fosse se liquefizer ali mesmo, e somente as mãos de Gintsune a mantinham de pé, passou os braços em torno de seu pescoço, numa busca desesperada por algum ponto de apoio.

—Não, fiquei incrédulo comigo mesmo. — ele sussurrou em seu ouvido e ela sentiu algo quente e úmido tocar o lóbulo de sua orelha… aquilo foi uma língua?! Ouviu um som estranho e vergonhoso, mas sentia que poderia morrer antes de admitir que escapara de seus próprios lábios. — Porque eu percebi que queria fazer isto… — de repente o gancho de seu sutiã em suas costas se desabotoou e Yukari enrijeceu — Eu ando tendo todo tipo de pensamentos e impulsos, que não deveria ter com uma amiga preciosa… — as garras dele traçaram de cima para baixo a linha de sua coluna, aquele som novamente vindo de algum lugar… — E ainda mais pensar que eu poderia tencionar ter algum tipo de relação desse tipo com uma amiga querida… — sua risada saiu baixa e rouca — Soava tão absurdo que não pude me conter, eu estou enlouquecendo, Yukari?

Yukari tentou responder algo, embora não soubesse o que, pois sua mente não estava apta agora para dar qualquer tipo de resposta coerente, porém tudo o que saiu de seus lábios entreabertos foi um som desconhecido, estranho e vergonhoso.

Ah sim, era realmente ela quem o estava fazendo.

Aquilo de alguma forma pareceu descontrolá-lo ainda mais e, agarrando suas coxas ele puxou-a para cima e encaixou-as ao redor de sua cintura, fazendo-a gritar surpresa.

—Eu nunca quis te machucar. — afirmou olhando-a seriamente, enquanto pressionava-a contra a parede — É claro que eu não poderia brincar assim com você, mas…

Yukari estava tremendo incontrolavelmente e seus dedos afundaram em seus ombros, como se ela tivesse medo que ele a deixasse cair.

—M-mas? — conseguiu dizer.

Uma das mãos dele largou sua coxa e ele começou a abrir sua blusa jinbei lentamente, a respiração de Yukari voltou a acelerar, mas seus olhos não se desencontraram.

—Mas então você me disse aquelas coisas na ponte… — um dos cantos de sua boca se ergueu em um sorriso desavergonhado —… você quer saber por que se sente da forma como se sente, Yukari? — a garra do polegar de Gintsune tracejou lentamente uma linha ardente pela pele exposta de Yukari, graças a sua camisa agora aberta, desde a base de seu pescoço até seu umbigo — Quer?

—E-eu…

Aquela mesma mão voltou a subir, enrolou suas tranças em volta de seu punho e as puxou para trás, expondo-lhe o pescoço novamente.

—É porque você também anseia pelo que estou prestes a fazer contigo agora, Yukari… — murmurou junto ao seu pescoço.

—Não… eu não… — tentou falar.

—E se você também anseia… por que eu deveria me conter? — ele sorriu mordiscando-a — Me deixe te ensinar como se divertir Yukari…

Mordiscando-a e lambendo-a, seus lábios começaram a descer desde seu pescoço.

—Mas… eu nunca…

—Você quer que eu vá embora, Yukari? — ele esfregou seu rosto contra a pele dela — Ou quer que eu fique?

—Eu…

—Você quer que eu fique. — ele afirmou, ainda seguindo com sua trilha incendiária por seu corpo. — Você quer se divertir junto comigo.

Os dedos de Yukari se enroscaram às madeixas prateadas da raposa, e ela soluçou ofegante.

Deveria afastá-lo, fazê-lo parar.

—Eu nunca…

—Você quer que eu fique. — ele repetiu contra sua pele. — Por favor diga que quer…

Ele sabia do efeito que era capaz de causar.

Não a deixaria pensar, não a deixaria ir, não a deixaria rejeitá-lo.

—E-eu…

—Diga que quer. — puxou suas tranças com um pouco mais de força, sorrindo ao ouvi-la gemer novamente.

A cabeça de Yukari pendeu de lado completamente entregue, e seus lábios entreabriram-se prestes a sussurrar o tão almejado “sim”, enquanto Gintsune inclinava a cabeça prestes a abocanhar um de seus… Gintsune caiu com a cara na neve.

Zonzo e confuso ele apoiou-se na egawa de onde rolara e caíra e tentou se levantar, empurrando de lado garrafas vazias de shochu caídas a sua volta.

—Yukari? — chamou olhando em volta, para a paisagem coberta de neve.

Aquele jardim era diferente do jardim da pousada, e a casa parecia também muito maior e mais antiga que a casa da Yukari, ali o céu estava escuro e pesado.

Gintsune levou a mão à cabeça. Havia voltado ao seu mundo?

—Tengu? Esposinha? — chamou — Garotos…!

Começou levantar-se tropicamente, até perceber o estado em que se encontrava e parar perturbado.

—To-chan? — a voz da irmã chamou-o suavemente, vindo do interior da casa — Você já acordou?

Bem quando ela surgia na porta da sala, Gintsune virou-lhe as costas para que não percebesse seu estado desconcertante, não estava na casa de Yukari, nem tampouco de volta ao seu mundo, era apenas uma das casas históricas preservadas do Distrito Samurai Chiran, na província de Kagoshima, onde ele e a irmã andavam pernoitando durante os últimos… três? Quatro noites talvez?

—Quanto tempo eu estive dormindo dessa vez? — perguntou sentando-se de volta no egawa de onde acabara de cair, agora já mais recomposto.

—Umas vinte e sete horas talvez. — a irmã sentou-se ao seu lado, ajeitando as saias debaixo das pernas elegantemente — Estávamos observando a lua.

Então se seus cálculos estivessem certos, esta era a manhã de seu quinto dia em Kagoshima, dos quais — somando tudo — passara pelo menos quase dois dias inteiros completamente inconscientes, e mesmo assim Yukari continuava invadindo lhe a mente, atormentando lhe os sonhos, que tipo de ironia karmica era essa?!

Aparentemente ele ainda não estava bebendo o bastante, e também…

—Eu me lembro disso. — ele concordou.

—E você tentou jogar garrafas na lua para o coelho, porque não só com mochi se comemora o ano novo. — ela completou.

—Sério? — riu — Então espero que ele tenha apreciado meu gesto de boa vontade, embora não estivéssemos bebendo toso.

A irmã deitou a cabeça em seu ombro.

—Mas que bom que acordou a tempo de assistirmos juntos, o primeiro nascer do sol do ano.

Era manhã de ano novo.

Uma de suas mãos tateou até achar uma garrafa ali perto que ainda não estava completamente vazia.

—Irmã. — bebeu um gole prolongado, mas se a bebida não podia limpar sua mente o bastante… — Acho que estou com vontade de buscar um pouco de diversão.

Sempre havia outros meios de distração que poderiam servir muito bem aos seus propósitos.


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Notas finais do capítulo

CURIOSIDADES DO JAPÃO:

Castelo Takeda:
Localizado na província de Hyogo, este castelo, mesmo em ruínas, é realmente impressionante, especialmente por estar localizado no cume de uma alta montanha. Chegar até estas ruínas não é nada fácil, mas a visão panorâmica e o cenário de tirar o fôlego que se tem lá de cima deve compensar o esforço, já que as ruínas da fortaleza parecem flutuar no céu sobre um mar de nuvens. Por causa disso, este castelo também é chamado de “Castle in the Sky” (Castelo no Céu).

Coelho da Lua e Mochi:
Presente em diversas lendas, na versão japonesa, onde é chamado de “Tsuki-no-Usagi”, diz-se que o coelho (usagi) aparece na Lua moendo em seu pilão a massa do mochi (bolinho glutinoso); muito famoso entre os japoneses, o bolinho branco e redondo, que se assemelha a Lua cheia, é consumido principalmente nos festivais, celebrações de Ano Novo “Shogatsu”, assim como é servido em oferenda aos ‘kami’ (deuses) em altares xintoístas. De acordo com o mito, Usagi foi levado aos céus pelo Velho sábio da Lua, após escolher o coelho como o animal mais generoso da Terra.

Distrito Samurai Chiran:
Localizado na província de Kagoshima, o Distrito Samurai Chiran é um bairro histórico preservado ainda nos dias de hoje onde cerca de 500 famílias viviam durante o Período Edo.

Konishi Shuzo:
Fundada em 1550 é uma das fábricas de saquê mais antigas do Japão.

Sochu: embora proveniente da província de Kyushu, ao sul do Japão, ganhou notoriedade quando chegou à Kagoshima, considerada, hoje em dia, “A Terra do Shochu”.

A sua preparação pode ser feita a partir de diversos grãos, sendo os mais clássicos o arroz, a cevada, ou a batata-doce e a graduação alcoólica pode variar entre 15% e 45%, embora o mais comum seja 25%.

Toso:
é uma bebida tradicional de Ano Novo no Japão. É feito a partir de uma mistura de muitas ervas tais como canela, ruibarbo, sanshou, Okera e kikyou. Trata-se de uma bebida cheia de superstições pois dizem que afasta doenças ao longo do ano, além de trazer harmonia para a família.

BESTIÁRIO:

Tsuchigumo: Uma espécie de youkai que assume a forma de uma aranha gigante capaz de comer grandes animais e inclusive seres humanos, além de seu gigantesco tamanho, é comumente dito que o corpo dessas criaturas se assemelham a onis ou, mais comumente, a tigres.

Eles vivem em florestas e montanhas, construindo tubos de sedas como suas moradas a partir dos quais emboscam suas presas, enquanto as Joro-gumos seduzem homens jovens para capturá-los e devorá-los, as tsuchugumos geralmente possuem uma gama maior de truques e presas.

Tsurara onna: Segundo a lenda, uma Tsurara onna surge através dos sentimentos de solidão de um homem no inverno, geralmente aparentam serem mulheres comuns, embora extremamente belas, assemelhando-se bastante a yuki onnas (mulher da neve), porém ao contrário dessas, que são impiedosas e mortais, as tsuraras onnas tendem a ser calorosas e amorosas, muitas vezes se apaixonando e casando com homens humanos, porém ela irá inevitavelmente desaparecer na primavera, deixando seu parceiro confuso e de coração partido… mas encontros em invernos futuros tendem a terminar de maneira trágica.



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