A Lenda da Raposa de Higanbana escrita por Lady Black Swan


Capítulo 24
23: Aquele que se oculta sob o chapéu.


Notas iniciais do capítulo

Bem vindos de volta, eu voltei mais cedo do que esperavam, não é?
Mas nem tudo são flores, e a partir de agora Gintsune (devido a uma pequena série de fatores) está voltando à sua antiga frequência de postagem de um capítulo por mês, então o próximo só no começo de dezembro. XD

GLOSSÁRIO:

Ashinaga: Literalmente "Pernas longas".

Daikon: Espécie de rabanete.

Ebisu: Deus da boa fortuna, oceano e pescadores, também é a divindade do trabalho honesto e patrono dos trabalhadores.

Hashis: são os palitinhos utilizados como talheres em parte dos países do Extremo Oriente, como a China, o Japão, o Vietnã e a Coreia.

Inari: É a deidade shinto da fertilidade, do arroz e protetora das raposas.

Jorõ-gumo: Literalmente "noiva enredada" ou "aranha prostituta". Uma espécie de youkai aranha gigante que pode assumir a forma de uma mulher e se alimenta de presas humanas

Kiseru: Cachimbo de cabo longo tradicional japonês.

Kogomi: uma espécie de planta nativa do Japão e é facilmente distinguida por se assemelhar a uma samambaia espiral enrolada.

Myoga: De sabor levemente apimentado é uma planta da família do gengibre, de consistência semelhante ao gengibre e ao alho.

Nukeukubi: Literalmente “pescoço removível”.

Nure-onna: Literalmente “mulher molhada”.

Onikuma: “Urso demônio”.

Tara no me: uma planta bastante nutritiva que é frequentemente considerada o rei dos vegetais silvestres.

Tenaga: Literalmente "Braços longos".

Te-no-me: Algo como “olhos nas mãos”, um youkai de forma humanoide com os olhos localizados nas palmas das mãos.

Uchikake: Quimono altamente formal usado atualmente somente por noivas ou em performances de palco. Frequentemente muito brocado ele é usado sobre o quimono em si, como uma espécie de casaco longo.

Yomogi: uma planta nutritiva que é abundante em todo o Japão. As folhas jovens da planta yomogi são consumidas especialmente no início da primavera, quando as folhas são mais tenras.

Se houver alguma palavra que não entendam, me digam, por favor!



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As chuvas de verão já haviam começado quando os últimos hóspedes da temporada — um casal aposentado — deixaram a pousada, Yukari e sua família se reuniram na entrada para despedirem-se deles, curvando-se e agradecendo pela preferência, enquanto lhe diziam que voltassem sempre que quisessem.

Ainda faltava mais de seis semanas para a estação chegar ao seu auge de fato e os “empregados de resto de ano” ser liberados, mas todos sabiam que não haveria mais hóspedes até o outono, de forma que tudo se tornou quieto e vazio novamente, estagnado, assim como acontecia todos os anos durante aquela época.

—O jardim parecia um tanto revirado. — Yukari ouvira sua avó comentar com o jardineiro uns poucos dias antes.

O homem concordou:

—Sim também percebi, é como se algum animal pequeno estivesse escavado aqui e ali, mexido nos arbustos e coisas assim, não é?

A conversa então se voltou para se deveriam ou não colocar algum tipo de armadilha no jardim agora que não havia hóspedes… mas Yukari sabia bem que tipo de animal andava revirando os jardins, e por isso não teve qualquer hesitação em ir até lá no meio da noite, quando ouviu barulhos estranhos vindo daquela direção enquanto guardava os materiais de limpeza depois de ter terminado suas tarefas noturnas.

—O que você está fazendo? — perguntou abrindo as portas.

De inicio pareceu que o jardim estava vazio e ela havia falado com o nada, mas então houve um som vindo da lanterna de pedra.

—Yo, Yukari!

Ele a cumprimentou com uma voz baixa e aguda, mas que soou perfeitamente clara no silêncio daquela noite, e uma cabeça branca e felpuda surgiu do interior da lanterna do jardim. Yukari o observou, naquele momento Gintsune não estava maior do que um gato.

—O que está fazendo? — repetiu.

—O que poderia ser? — Gintsune saltou para fora — Procurando meu kiseru é claro!

Era como se simplesmente nunca houvessem se desentendido…

Depois de Haruna ter declarado sua óbvia embriaguez ele resmungara algo sobre “não adiantar nada evitar dormir, se sonhando ou acordado continuava a vê-la” enquanto lentamente repousava a cabeça sobre os braços cruzados até que de repente já estava roncando, enquanto Yuki e Gintsune o observavam.

Ele só foi mostrar um novo sinal de lucidez ao gemer perto das 7h00 quando Hana subiu na mesa e começou a miar e bater no alto de sua cabeça com a pequena patinha, mas ele só acordou de verdade quando Tsuki mordeu seus dedos do pé.

—Seus gatos estão com fome. — Gintsune comentou e como que concordando Yuki miou da soleira da porta.

O professor ergueu-se tão rápido que certamente tudo começou a rodar, pois levou a mão à cabeça e cambaleou para trás de forma vertiginosa.

—Ayaka-chan…? — chamou hesitante, ajeitando os óculos tortos sobre o nariz, ah sim, ainda estava naquela forma, quase se esquecera. — O que você…? Ainda estou sonhando?

Gintsune arqueou uma sobrancelha.

—Você acabou de sentir a mordida de Tsuki, não sentiu?

Haruna começou a tentar se levantar.

—Mas o que está fazendo aqui? — perguntou tropeçando nas palavras — Como entrou? Não devia entrar assim sozinha na casa de um homem Shiori… por acaso…?

—Quantas perguntas! — Gintsune girou os olhos, ele definitivamente não estava agindo como sua “aluna fofa” naquele momento — Acaso não se lembra de nada de ontem à noite?

Ah, as memórias dos bêbados era realmente tão pouco confiáveis…

—Ontem… — Haruna deixou-se cair novamente, ele devia estar com uma dor de cabeça daquelas — Gin-san veio aqui, não veio?

E lentamente olhou a volta procurando por ele.

—Sim. E ainda estou aqui. — Haruna virou a cabeça tão rápido que Gintsune ficou surpreso pelos óculos não terem saído voando de sua cara, pois ele havia acabado de falar usando sua própria voz, embora ainda mantivesse a aparência de Ayaka Shiori. — Ah, realmente não se lembra de noite passada? — suspirou enfadado, queria ir logo para casa e explicar àquela ranzinza que já tinha concertado tudo. — Ouça professor, eu não sou uma simples colegial, mas tente não enlouquecer ou morrer de susto agora, está bem?

Ergueu-se abrindo os braços e, apenas como um toque de dramaticidade, abandonando as formas femininas para trás enquanto deixava os cabelos reassumir o tom prateado e a longa cauda escorregava-lhe por debaixo da saia que se tornava um quimono e as orelhas surgiam no topo de sua cabeça.

Por alguns instantes Haruna permaneceu num chocado silêncio encarando-o boquiaberto e com os olhos tão arregalados que pareciam a ponto de saltar de suas órbitas a qualquer instante. E embora Gintsune tivesse certeza de que humanos eram criaturas indiscutivelmente bípedes, Haruna moveu-se com a agilidade de uma fera de quatro patas quando de repente saltou sobre ele, esticando o braço para agarrar a sua…!

—Oi! — reclamou saltando para longe — O que pensa que está fazendo?!

—Impossível! — Haruna exclamou olhando-o freneticamente — Não pode ser real!

E novamente atirou-se numa louca tentativa de tentar agarrar sua cauda.

—Pare com isso! — Gintsune reclamou saltando para longe novamente — Não se pode sair tentando agarrar a cauda dos outros dessa m… ah!

Exclamou puxando a cauda para o alto quando Tsuki, provavelmente achando se tratar de algum tipo de brincadeira, também saltou sobre sua cauda, tentando capturá-la.

Foi um jogo completamente ridículo, Gintsune saltou de um lado para o outro fugindo do, aparentemente louco, professor Haruna e seus gatos que queriam a qualquer custo pegar sua cauda, pois Hana logo havia se juntado à bagunça também — somente Yuki permaneceu apático esperando na soleira da porta — talvez Gintsune houvesse preferido que Haruna houvesse feito um escândalo e se escondido aos berros debaixo da mesa afinal.

—Eu sou real o bastante, está vendo?! — perguntou já impaciente afastando Haruna com o pé em sua cara enquanto flutuava no canto do cômodo, também havia ocultado suas orelhas e cauda novamente, só por precação — E você não está louco nem dormindo!

—Mas não é possível… — Haruna balbuciou embasbacado pegando seu pé entre as mãos e testando-lhe os dedos.

Gintsune puxou o pé de volta.

—Eu só estava me divertindo um pouco brincando com sua mente e coração, não precisava exagerar dessa forma. — reclamou cruzando braços e pernas sentando-se no ar, ainda mantendo distância dele — Agora será que pode ir até a pousada e dizer à Yukari que já está tudo bem?

Haruna piscou.

—Que Yukari?

—Sua aluna. — Gintsune girou os olhos — Está sempre de mau humor e tranças, tem um gosto muito cafona e…

—Shi... Shibuya-chan? — perguntou incerto — Minha aluna Shibuya Yukari? Essa Yukari?

—Essa. — confirmou.

—Mas o que ela pode ter haver…?

—Somos amigos. — declarou com simplicidade, ou ao menos achou que fossem, pois ainda não conseguia acreditar que ela realmente o havia descartado tão facilmente.

—Amigos. — Haruna repetiu — Então Shibuya-chan também é uma raposa?

—De jeito nenhum! — jogou a cabeça para trás com uma gargalhada, mas logo voltou a ficar repentinamente sério — Ela é só uma humana que leva as coisas a sério demais.

Foi quando, parecendo ter lembrado repentinamente de que estavam famintos, Tsuki saltou sobre os pés do professor abocanhando-lhe os calcanhares, enquanto Hana voltou a miar insistentemente agarrando-se com as pequeninas garras em suas calças e escalando-o.

—Seus gatos estão com fome. — Gintsune comentou vendo o homem puxar a esfomeada gata para longe de suas calças.

—Com fome, sim. — o professor concordou atordoado, saindo da sala com a gata no colo, enquanto era seguido por Tsuki e guiado por Yuki até a cozinha.

Assim Gintsune já estava pronto para voltar para pousada e dizer àquela chata que já havia concertado tudo, quando Haruna quase encheu as tigelas de seus gatos com areia para gato ao invés de ração e ele decidiu ficar mais um pouco. De qualquer forma Yukari estava merecendo levar um gelo mesmo.

—Então… como exatamente você e Shibuya-chan tornaram-se amigos? — o professor perguntou-lhe algum tempo depois enquanto preparava o almoço.

Gintsune puxou o daikon um pouco mais pra frente antes que Haruna cortasse algum dos dedos e encolheu os ombros.

—As circunstâncias, eu acho.

Haruna estava olhando-o fascinado.

—Então a lenda é falsa? — perguntou lentamente — Que quando você se libertasse devoraria todas as jovens…

—Eu não tenho nada haver com aquela estúpida raposa. — cortou-o balançando a mão deliberadamente.

Haruna piscou.

—Não tem?

—Não tenho.

—Ah. — ele pareceu remoer aquilo por alguns segundos enquanto começava a cortar as cenouras — Também é uma história conhecida por aqui que uma bela mulher espectral mora na cerejeira da casa de Shibuya-chan…

—Também não tenho nada haver com ela. — pegou um pedaço de cenoura e jogou-o para dentro da boca.

Por fim ele acabou voltando para casa somente quando já era noite, acordando Yukari com um sobressalto ao jogar-se em sua cama.

—Espero que você tenha uma boa gratificação para mim, para recompensar-me por abrir mão do meu principal passa tempo aqui. — reclamou enfadado cruzando os braços atrás da cabeça.

Sob as cobertas Yukari enrolou-se como uma bola.

—Achei ter dito que não queria vê-lo nunca mais.

—Oh, esqueça isso, está bem? — reclamou puxando-lhe a parte da coberta que ela usava como capuz — Eu já concertei.

Ela olhou-o desconfiada por cima do ombro.

—Concertou?

—Sim, e Haruna teve uma reação muito melhor que aquela sua histeria. — respondeu enfiando a mão na manga para buscar o cachimbo.

Repentinamente Yukari virou-se.

—Contou a ele sobre você? — arquejou.

—E o que mais eu poderia…? — franziu o cenho, seu cachimbo não estava ali.

E de repente arregalando os olhos e sentando-se de uma só vez na cama ele lembrou-se de que havia deixado-o cair do telhado no dia anterior.

Vinha procurando-o desde então.

Yukari deixou as sandálias caírem no jardim e desceu os degraus calçando-os.

—Tem certeza de que está por aqui?

—É claro que está por aqui! — respondeu farejando em torno da lanterna de pedra — Eu estava no telhado quando o deixei cair, então não pode estar longe da pousada.

—E se algum hóspede tiver encontrado e o levado? — parou ao seu lado.

Gintsune ergueu a cabeça sentando-se sobre as patas traseiras.

—Muito improvável. — declarou. — Eu não estava no plano físico quando o deixei cair, entende? Então um humano teria que ter olhos muito especiais para encontrá-lo.

—Como o uchikage de Inari?

Ele piscou inclinando a cabeça de lado.

—O “o que” de Inari?

—Uchikake de Inari. — repetiu — Somos uma região turística, então nosso principal templo é dedicado ao deus do comercio Ebisu, mas há também outros templos menores, como o de Inari, lá há uma velha árvore de momiji na qual, dizem as lendas, um uchikake repousa em seus galhos. Parece que pertenceu ao próprio deus Inari, por isso ele é invisível a olhos comuns, e por isso vez por outra viajantes vêm até a cidade tentando ver se o enxergam para medir seus poderes espirituais, uns dizem que é púrpura ou violeta, outros ciano e ainda um profundo tom de anil. Quem sabe? Acho que eles eram mais numerosos na época da minha avó, ou do pai dela, agora quase ninguém se lembra do uchikake que pode ou não estar lá. — deu de ombros — Eu mesma nunca vi nada ali, então fora de cogitação eu me oferecer para ajudá-lo a procurar, não é?

—Fora de cogitação. — concordou coçando a orelha.

Vestes divinas abandonadas nos galhos de uma velha árvore num templo? Gintsune achava isso bem improvável, o mais certo é que fosse apenas mais uma lenda dos humanos, ou então, no máximo, as roupas esquecidas de algum youkai… mas não poderia negar por completo a possibilidade de terem origem divina. Quem era ele afinal para entender as atitudes dos deuses?

Ele espreguiçou-se, virou-se e saltou para dentro do lado de carpas, talvez o cachimbo tivesse caído na água.

Além do mais, algo que ele não havia mencionado é que muitos objetos de origem youkai tendiam a mudar de forma e/ou esconder-se quando perdidos, espelhos youkais ao quebrarem-se podiam facilmente ocultar-se dentro de outros objetos reflexivos, pinturas se fundiam a outras, e mesmo refinados grampos de cabelo podiam tornar-se meros pincéis de caligrafia ou vice versa, seu cachimbo evidentemente mudava de forma, mas Gintsune nunca o perdera antes, portanto não tinha noção se ele o fazia mesmo sem sua intervenção e se podia camuflar-se entre outros objetos.

Yukari estava dizendo alguma coisa, Gintsune emergiu, espirrando água aos seus pés.

—O que?

—Sumiu muito repentinamente da escola. — ela repetiu.

Gintsune saltou de dentro da lago sacudindo-se e espirrando água, e ela afastou-se para trás, apesar do tamanho diminuto dele.

—Sente minha falta? — sorriu sentando-se.

Ela franziu o cenho.

—Como poderia se você não sai mais daqui? — reclamou com uma careta. — Mas como você estava boa parte do tempo comigo na escola, agora seus admiradores ficam vindo atrás de mim querendo noticias suas.

Suspirou aborrecida.

—Não tinha mais nada que me interessasse ali e não foi tão repentino assim. — retrucou girando os olhos — Você e Kakeru ficaram me enchendo para ir cancelar a minha matricula antes de sumir de uma vez.

—É claro, seria problemático se não o tivesse feito, depois de alguns dias eles teriam tentado mandar algum professor à sua casa, mas não há endereço algum na sua ficha, não é? — ele deu de ombros — E passado mais algum tempo não duvido nada que logo haveria um alerta de garota desaparecida na cidade. Não, problemático demais… disse Kakeru?

—Haruna pediu-me que parasse de chamá-lo de professor, apesar de que eu gostava, era fofo. — fez uma careta — E pediu-me para chamá-lo pelo nome.

Foi então fuçar e cavar entre as pedras que rodeavam o lago, mandando-a entrar de uma vez, porque logo começaria a chover novamente e humanos adoeciam muito facilmente afinal, ela franziu o cenho e reclamou como era típico de seu comportamento, mas por fim obedeceu, e deu meia volta repreendendo-o para que não destruísse o precioso jardim da avó.

De qualquer forma o cachimbo não parecia estar por ali.

A chuva tornou-se mais forte algumas poucas horas antes do raiar do dia, quando Gintsune finalmente cessou suas buscas por mais aquela noite e recolheu-se para a pousada — havia retornado aos seus quartos após a partida dos últimos hóspedes, embora duvidasse que Yukari houvesse reparado — e ainda estava chovendo forte quando a garota saiu para ir à escola na manhã seguinte.

Que menina tão tola para sair com um tempo daqueles! Um sopro de vento e ela podia quebrar o pescoço ao ser arremessada das escadas ou cair no rio e afogar-se, os humanos sempre morrem fácil assim! Gintsune pensou consigo mesmo, voando ao seu encalço, mas Yukari certamente já subia e descia aquelas escadas de pedra da colina da pousada desde que era um bebê de fraudas, e não era uma pequena tempestade daquelas que seria capaz de fazê-la voar agora.

Ela estava novamente usando o mesmo uniforme que usava na época em que Gintsune a conhecera, mas hoje o ocultava sobre uma pesada capa de chuva cor de rosa, e com a bolsa bem apertada debaixo do braço curvou-se corajosamente usando o guarda-chuva também cor de rosa como escudo enquanto enfrentava à chuva… sem perceber a fantasmagórica raposa prateada que a seguia do plano astral.

Em certo ponto, quando ela atravessa a ponte, uma rajada de vento quase arrancou o guarda-chuva de suas mãos, mas a tola se recusou a largá-lo e, arregalando os olhos, Gintsune fez menção de se materializar e fechar suas mandíbulas em torno do cabo para evitar que aquela idiota saísse voando direto para dentro d’água, mas então Yukari recobrou o controle sobre o guarda-chuva e terminou de atravessar a ponte.

Gintsune não sabia o que era mais impressionante: a estúpida coragem de Yukari, ou a resistência daquele guarda-chuva que ainda conseguiu chegar inteiro no colégio.

Mas parece que teria que dar um voto a favor do guarda-chuva, já que todos os humanos daquele colégio pareciam compartilhar da mesma loucura de Yukari de sair para a aula num tempo daqueles, mas nem todos chegaram ali com seus guarda-chuvas intactos.

Mas aquela chuva não parecia que acabaria tão cedo e nada garantiria que Yukari teria na ida para casa toda a sorte que a manteve a salvo na vinda até a escola caso a tormenta se mantivesse com toda aqueça força até a hora da saída e Gintsune não estava com vontade de ter que ir e voltar de novo, então acabou procurando um lugar para dormir na escola mesmo — só não dava pra ser no telhado por razões óbvias.

Gintsune podia até gostar de apreciar as tormentas às vezes, mas nunca tivera por elas o mesmo ardor que sua irmã, ela sempre fora um espírito delicado e gentil, que amava chá, artes e a natureza, gostava de repousar entre as árvores, fosse entre seus galhos ou sob suas sombras e apreciava as tempestades como se elas fossem mais um dos espetáculos representados em palcos que tanta amava assistir.

Hoje ela estava empoleirada sobre galhos a quase quinze metros de altura, assistindo as nuvens carregadas se aglomerando no céu.

—Irmã! — gritou o pequeno Gintsune, ele era tão jovem naquela época, sequer conseguia assumir uma forma humana… há quanto tempo fora aquele dia? — Irmã venha! A mãe fugiu de novo para ir brincar com humanos e o pai foi atrás dela e nos mandou voltar e esperar por eles na toca!

No inicio não teve certeza se a irmã o tinha escutado, tão fascinada que estava olhando para as nuvens com as mãos junto ao peito, mas então ela levantou-se e saltou dos galhos para vir flutuando em sua direção, abrindo os braços enquanto o quimono simples laranja e os cabelos prateados ondulavam e esvoaçavam ao ser redor.

Ela era também apenas uma menina, mas já possuía em si o conhecimento e a habilidade para tornar-se humana, ainda que mantivesse as orelhas e a cauda de uma raposa, e mesmo usando roupas tão simples sua imagem já era tão bonita de ser contemplada que, vendo-a ali descer flutuando em sua direção com a luz do dia iluminando-a por trás o pequeno Gintsune não duvidou nem por um instante que se qualquer humano a visse naquele instante a teria tomado por alguma divindade vinda direto da terra dos deuses.

 —Haverá raios hoje, consegue senti-los no ar? — perguntou-lhe com sua voz suave, cobrindo delicadamente os lábios com a ponta da manga.

O pequeno filhote recuou sobre suas quatro patas, com as orelhas baixas.

—Não gosto muito dos raios. — confessou — Eles são barulhentos, derrubam as arvores e ateiam fogo a elas.

—E quando foi que o fogo já o machucou? — olhou-o gentilmente.

—Não pode. — admitiu — Mas os raios machucam.

Já havia sido atingido por alguns duas ou três vezes e aquilo doía bastante, embora soubesse que os raios eram tão capazes de machucar sua irmã quanto o fogo a ele, ela não dobrava o fogo como ele e o pai, mas sim a eletricidade como a mãe de ambos afinal.

—É natural que tenhamos medo, somos tão pequenos e a força da natureza é majestosa… não pode voltar sozinho para a toca e esperar-me lá? Eu irei depois de conseguir ver alguns raios, prometo. — ela era gentil e delicada, mas sempre fora a mais rebelde entre os dois — Nenhuma tempestade é como a outra, é por isso que não posso deixar de assisti-las. — ela virou-se, fascinada e emocionada a espera dos primeiros raios que cairiam — Se eu pudesse ver apenas um agora… mas estou aqui me consumindo em solidão aprisionada nessa escuridão, não há sol e tampouco raios para meus olhos contemplarem.

Já não era mais sua irmã menina quem lhe falava, era a mulher de roupas refinadas e lábios rubros a qual Gintsune se lembrava de ter visto e abraçado da última vez, embora ele próprio ainda fosse um pequeno filhote branco.

Irmã? — chamou-a incerto.

Ela virou-se para ele novamente, mas algo estava errado, não tinha em si a sua expressão gentil e delicada com a qual sempre o acalentara, ao invés disso era régia e severa, como se ele lhe fosse um mero estranho.

—Jurou que me encontraria onde eu estivesse. — o censurou rigidamente — E onde está você agora? Venha…!

Quando seus lábios entreabriram-se prestes a sibilar seu nome oculto, uma descarga elétrica percorreu todo o corpo de Gintsune, enrijecendo seus músculos e ele foi sacudido pelo estrondo de um trovão de tal forma que ergueu a cabeça e a bateu na mesa.

—Ouch! — exclamou esfregando a pata entre as orelhas.

Lá fora a tormenta se tornara mais cruel, com seguidos clarões de relâmpagos e barulhentos trovões os acompanhando — um dos quais acabara de acordá-lo —, tinha a impressão de ter sonhado, e quase certamente algo com relação à irmã, mas acordara tão repentinamente que não conseguia lembrar-se.

—Tem alguém aí?

Haruna Kakeru?

Como Gintsune não sentia o cheiro de mais ninguém por perto, ele saiu arrastando-se de debaixo da mesa, o professor retesou-se puxando a respiração por entre os dentes e caiu sentado no chão deixando cair os livros que vinha carregando quando tentou recuar.

—Yo Kakeru. Que horas são? — Gintsune sentou-se, e observou a sua cara branca feito cera — Mas que tipo de reação é essa?

Os olhos de Haruna estavam do tamanho de ovos fritos, ele piscou incrédulo.

—Ah, hã… — ele levou quase dez segundos inteiro até conseguir reencontrar a língua — Gin… san? É você mesmo?

—Por que a surpresa? — Gintsune sentou-se sobre as patas traseiras — Acho que me lembro de ter te contado que sou uma raposa, portanto é óbvio que nem sempre me pareço com um humano extremamente belo.

—Mas você está enorme! — exclamou boquiaberto.

Gintsune espreguiçou-se.

—E essa é apenas minha forma casual, é até bem diminuta comparada à verdadeira. — disse com uma risadinha.

—Fascinante. — Kakeru levantou-se recolhendo os livros do chão para pô-los sobre a mesa, sem desviar o olhar assombrado de Gintsune nem por um segundo sequer — Mas o que faz aqui?

—Segui Yukari. — deu de ombros — Se ela fosse atingida por alguma árvore ou por um raio, eu é que não iria perder. Por que os humanos sempre estão esquecendo o quão fácil são de morrer? Ou são todos apenas suicidas?

Haruna Kakeru arqueou as sobrancelhas com expressão surpresa por detrás dos óculos.

—A chuva ainda não estava tão forte pela manhã, e um pouco de água não é razão para faltar à aula. — argumentou, dando a vez à Gintsune de olhá-lo surpreso, os humanos eram todos loucos! — Mas o que eu quis dizer é o que faz aqui na sala do clube.

Gintsune bocejou, balançando a cauda preguiçosamente de um lado para o outro.

—Eu precisava de um lugar para dormir e os clubes ficam vazios até o final das aulas.

—Na verdade alguns são usados durante o horário de almoço também. — o professor arqueou uma sobrancelha — E escolheu justo o clube de investigação paranormal? Acaso estava planejando assustar meus alunos?

A raposa sorriu-lhe lentamente.

—Isso não tinha passado pela minha cabeça. — confessou — Mas não é uma má ideia.

Kakeru anuiu.

—Se for fazer algum tipo de poltegest aqui, ao menos dê a eles tempo de pegar as câmeras.

Gintsune olhou-o incrédulo, mas logo depois jogou a cabeça para trás e gargalhou, Haruna era um humano interessante de várias maneiras possíveis.

—E as horas? — voltou a perguntar.

—Já passam das 15h, as aulas estão acabando agora e vim deixar esses livros que meus alunos, que devem estar aqui logo, solicitaram. — respondeu.

—Então seu expediente já está quase acabando. — comentou — Quantas latas de cerveja você consegue entornar antes de desmaiar?

O professor olhou-o surpreso.

—Como é que é?

Gintsune girou os olhos.

—Yukari se recusa a beber comigo, uma baboseira moderna qualquer sobre leis contra consumo de bebidas alcoólicas por menores de vinte anos. Besteira, nem faz muito tempo que mulheres mais novas que ela bebiam saquê e até fumavam um cachimbo ocasional ou outro. Mas você não tem esse problema, não é professor?

Kakeru pressionou os lábios um contra o outro.

—Mas afinal quantos anos você…? Não, esqueça-se disso, mais importante: você tentou dar álcool a uma menor?! — perguntou com cesura.

—Não tem importância, ela sempre recusa. — balançou a cabeça — Mas e você? Até quanto consegue beber?

—É óbvio que eu não posso beber em dia útil, ainda preciso acordar para vir trabalhar amanhã, sabe? — Kakeru ajeitou os óculos.

—Ah, qual é…! — Gintsune já estava pronto para reclamar, mas deteve-se — Então aos finais de semana, tá liberado?

 —Claro. — o professor suspirou, acenando-lhe dispendiosamente já se dirigindo à porta — Passe lá em casa amanhã à noite.

—Professor, é melhor que você seja um homem de palavra, nós youkais sempre cobramos as dividas! — exclamou sorrindo para a porta que já se fechava.

Agora… ele havia dito que as aulas já estavam acabando, não? O único clube do qual Yukari fazia parte era o clube “vai pra casa”, e ainda estava chovendo bastante lá fora, a sala iluminou-se por meio segundo com o clarão de mais um raio, era melhor ele ir logo atrás da garota, antes que ela saísse andando sozinha e fosse tragada por algum bueiro ou buraco aberto.

Mas por sorte ela ainda não havia ido e Gintsune acabou encontrando-a abotoando a capa de chuva junto a Aoi-chan e Kaoru-chan na saída do prédio do colégio, olhando a chuva no pátio, com outros tantos alunos ainda indecisos se enfrentavam o aguaceiro ou não.

—Estamos aqui, e a representante confortavelmente lendo seus livros e discutindo literatura lá dentro. — lamentou-se Aoi-chan — Agora fazer parte de um clube parece uma ideia tão boa, não é?

—Que péssimo dia para não haver atividades no clube. — Kaoru-chan se suspirou. — Vocês souberam do presidente do conselho estudantil?

—Não, o que houve? — Yukari perguntou erguendo o capuz, a louca certamente não estava pensando em ir pra casa daquele jeito mesmo, estava?

—Pediu para sair mais cedo, pouco depois do almoço, mas não parecia doente, pegou a bicicleta e saiu a toda velocidade debaixo da chuva mesmo. — Kaoru-chan contou-lhes.

—Sua família é dona de uma floricultura, talvez estivesse preocupado? — sugeriu Aoi-chan.

Yukari concordou.

—O clube de jardinagem também está bem agitado. — as três olharam em silêncio para a chuva por mais alguns segundos, até que Yukari voltou a falar — Será que realmente não podemos…?

Um trovão abafou suas palavras restantes, fazendo as três garotas gritarem surpresas e involuntariamente se encolherem umas contra as outras, enquanto Gintsune gargalhava às suas costas.

Ficaram ali amontoadas de pé por mais trinta minutos, quase não havia vento e já fazia praticamente vinte minutos que nenhum raio caia, quando Kaoru-chan sugeriu:

—Talvez possamos ir agora.

As garotas assentiram — por que é que Gintsune não se surpreendia mais? — e Yukari, a única com capa de chuva, estendeu seu guarda-chuva para Aoi-chan, a única sem proteção alguma.

—Pegue.

Aoi-chan arregalou os olhos.

—Não. — negou — Eu não posso! Você…!

—Mas o seu quebrou, você pode me devolvê-lo amanhã. — colocou o guarda-chuva nas mãos da colega — E ainda tenho minha capa de chuva.

Entraram assim num acordo silencioso, e enquanto Yukari apertava mais o capuz da capa de chuva, Aoi-chan e Kaoru-chan encolheram-se debaixo de seus guarda-chuvas e saíram a enfrentar tolamente a tempestade, praguejando consigo mesmo Gintsune arrancou rapidamente do aparador de guarda-chuvas ali ao lado o maior e mais pesado que viu e saiu voando em meio à tormenta, para pousar e se materializar próximos aos portões, justo no momento em que as três saiam.

—E aí está você! — exclamou ajeitando o chapéu do tengu sobre a cabeça.

Yukari parou.

—O que faz aqui?

—Eu sabia que você ia querer sair de novo debaixo de toda essa água, não foi o bastante já ter vindo até aqui. — Aproximou-se, abrindo o grande guarda-chuva negro sobre sua cabeça — Sabe como sua vida é frágil? Pega uma chuva dessas e aí contrai alguma doença e adeus! — olhou para as outras duas garotas, e cumprimentou-as tocando levemente a aba do chapéu — Moças.

Surpresas as meninas começaram a lhe responder qualquer coisa, mas sua atenção voltou-se para Yukari quando ela começou a falar:

—E veio me buscar só por causa da chuva? — ela estava franzindo o cenho.

por causa da chuva? E se um carro derrapasse e a atingisse, o que eu faria depois? — suspirou, e ergueu os olhos para as meninas novamente — Hoje serei a escolta de vocês durante parte do caminho.

Deixou então que as meninas passassem à sua frente, seguindo cinco passos adiante, mas quando Yukari tentou afastar-se também, ele a impediu passando o braço sobre seus ombros.

—Não fique tão perto! — ela tentou empurrá-lo.

—E se você escorregar e torcer o pé? Se bem que poderia também tropeçar e levar um golpe na cabeça, já vi um homem que morreu quando bateu a cabeça depois de cair do cavalo. — comentou casualmente, mas a soltou.

—Da forma que está calçado é você aqui quem tem mais chances de tropeçar ou escorregar. — ela retrucou.

—Mas eu não morreria por uma coisinha a toa dessas. — deu de ombros — Ao menos fique debaixo do guarda-chuva.

Ela estava corando? Gintsune não conseguia ter certeza.

—Um casal sob o mesmo guarda-chuva…! — sua voz foi emudecendo aos poucos.

Ele então, sem dizer uma palavra, pegou sua mão e fechou-lhe os dedos em torno do cabo do guarda-chuva, se deixando ficar mais alguns passos para trás enquanto enfiava as mãos nas mangas do quimono, a proteção do chapéu já lhe bastava, e a chuva não o incomodava tanto assim, Kaoru-chan foi a primeira a despedir-se do grupo algumas poucas quadras depois, enquanto Aoi-chan prosseguiu até metade do caminho, mas felizmente nesse momento a chuva já se reduzira drasticamente.

—Gintsune. — Yukari o chamou depois de atravessarem a ponte quando já estavam a sós — Obrigada pela preocupação.

—Não há de que. — acenou com a cabeça, ainda mantendo as mãos dentro da manga.

—Ouça.

—Sim?

—Eu… desculpe-me, naquela hora quando reclamei de estarmos sob o mesmo guarda-chuva eu não queria dizer que você ficasse na chuva.

Gintsune arqueou uma sobrancelha se reaproximando e pondo-se novamente ao seu lado.

—E só me diz isso agora?

Ela encolheu os ombros.

—Fiquei constrangida. — resmungou lhe entregando o guarda-chuva já que ele era o mais alto — Mas não se atreva a me acompanhar até a porta da pousada! Só o fato de ter ido buscar-me no portão do colégio já vai dar o que falar… nem quero imaginar se chegar aos ouvidos do meu pai.

Gintsune balançou a cabeça.

—Você pensa demais Yukari. — afirmou — Estou aqui há quase um ano agora e nunca vi seu pai ou sua mãe deixar o terreno da pousada, no máximo eles vão até a estrada dos fundos da colina para receber os fornecedores, mas na maior parte do tempo ele mal sai daquele escritório, como é que haveria de saber de alguma coisa?

Yukari girou os olhos.

—Não subestime o poder de fofocar dos humanos, especialmente numa cidade feito Higanbana, onde tudo se sabe. — advertiu-o — E mais uma coisa.

—O que?

Ela parou de caminhar e olhou-o com o cenho franzido de forma claramente desconfiada.

—Por que é que tem o nome “Hannyu Saykis” gravado aqui no cabo desse guarda-chuva?

Sorrindo Gintsune puxou o chapéu um pouco mais para baixo e se absteve de responder.

*.*.*.*

De pé na poupa da canoa Mayu fincou a ponta da vara no leito do rio e apoiou-se ali para empurrar o barco com o peso de seu corpo mais uma vez, até sentir um braço rodeando-lhe a cintura e puxando-a para trás.

—Muito cuidado com esse movimento ou pode acabar virando para dentro do rio. — Satoshi a avisou.

—Acho que já é a sétima vez que você me alerta sobre isso, Satoshi. — a esposa suspirou beijando-o levemente nos lábios — Vá para a proa, eu já disse.

—Akira está na proa.

—Então você devia estar de guarda. — Mayu insistiu — Pegue a naginata e vá para o centro junto de Akihiko e Akio, o que vai fazer se formos atacados…

Usando uma vara para desviar de uma rocha em meio à correnteza, Akira, nu da cintura para cima, virou-se para trocar um olhar com o irmão do meio, que se sentava de pernas cruzadas no centro da jangada embalando o irmão mais novo para fazê-lo dormir, e então lançou um olhar aos pais discutindo na popa, até o dia anterior eles estavam todos andando pela floresta quando sua mãe resolveu que já era hora de pararem para que ela pudesse amamentar Akio.

—Na verdade também já estou começando a ficar com fome. — Akihiko comentou, ajudando a mãe a desatar o irmãozinho de suas costas. — Ainda temos um pouco daquela carne de veado que caçamos ontem?

—E como teríamos? — Akira estalou a língua — Estávamos tão famintos que roemos até os ossos!

—Mas ainda temos kogomi, tara no me e yomogi secos. — a mãe relembrou-os sentando-se sobre algumas raízes enquanto arrumava os quimonos para dar de mamar ao terceiro filho — E uma boa quantidade de cog…

—Sh. — fez o pai repentinamente pondo-se em posição de guarda, já levando a mão ao cabo da espada — Tem algo nas árvores.

E então Akira também escutou, era baixo mais estava ali: um curto grunhido por entre a folhagem.

—Uma ave? — faminto ele sacou rapidamente o arco que havia talhado pessoalmente já o armando com uma de suas flechas também feitas pessoalmente por ele.

—Não… não atirem. — gemeu uma voz oculta por entre os galhos acima de suas cabeças — Não sou ave nenhuma… e também não sou saboroso, juro, sou apenas pele e ossos e duro como couro.

Os quatro se entreolharam, e por um momento o único som ouvido foi o suave som de sucção reproduzido pelo bebê Akio, alheio aos seus arredores, Akihiko aproximou-se da mãe e do irmãozinho preparando-se para sacar sua espada na clara intenção de defendê-los caso necessário enquanto Akira movia-se cautelosamente com seu arco e flecha, buscando um melhor ponto de onde atirar.

—Revele-se! — o pai ordenou agarrando o cabo da espada.

Os galhos remexeram-se e ouviram alguns gemidos e grunhidos — embora diferentes do primeiro grunhido que tinham ouvido — seguidos de um suspiro lamentoso.

—Lamento… mas estou preso aqui. Não atirem, por favor, sou apenas um velho fraco… mas tenho um gosto muito amargo! Realmente horrível!

—Pai. — sussurrou Akihiko, fungando, farejando o ar — Ele está assustado.

Acima deles a voz gaguejava algo sobre sua carne estar amaldiçoada e que teriam um terrível refluxo de mais de um século que lhes queimaria as estranhas continuamente se o devorassem.

—Sim, eu já percebi. — o pai resmungou deixando a espada de lado e levando as mãos à naginata embrulhada em suas costas — Vocês dois, não baixem as guardas.

Akihiko sacou sua espada e Akira armou o arco, enquanto o pai de ambos aproximava-se cautelosamente e estendia a naginata ainda embainhada para afastar os galhos para o lado, revelando ali um velho muito magro, com o topo da cabeça raspada e de pele curtida pelo sol, não, na verdade era apenas o torso de um velho: não haviam nem pernas e nem braços.

Completamente emaranhado aos galhos por vários filamentos de fios, ele lhes sorriu tristemente e perguntou:

—Algum de vocês viu por aí a minha contraparte?

Quando ele remexeu-se mais uma vez entre os galhos, Akira arregalou os olhos, o homem podia não ter pernas, mas definitivamente tinha braços! Um par de membros raquíticos e marrons, mas tão absurdamente longos que se confundiam com os próprios galhos da árvore onde estava amarrado.

—Mas o que foi que aconteceu a você?! — seu pai exclamou — Isso são teias?! É um ninho de jorõ-gumo?! Akira venha cá me dá uma ajuda rápido!

Os filamentos não eram teias de aranha afinal, e sim uma rede de pesca toda emaranhada, que eles cortaram cuidadosamente até conseguirem libertar dali o velho homem de braços absurdamente longos que, vejam só, possuíam pernas afinal, mas tão curtas que estariam mais bem encaixadas numa criança que dava seus primeiros passos.

—Ora, muito obrigado pessoal. — o velho homem agradeceu livrando-se dos últimos restos de sua rede de pesca — Fiquei quase um dia e meio ali em cima!

—E como você foi parar ali? — Sua mãe perguntou-lhe curiosa, nem parecia se lembrar do pequenino Akio ainda mamando.

O rosto do velho tornou-se vermelho.

—Eu estava no rio com minha contraparte, estávamos pegando peixes, cuidando da nossa vida quando um pequeno demoniozinho desceu dos céus e tentou roubar-nos a rede de pesca! — socou o chão com ambas as mãos — Mas eu me segurei firme e não quis largá-la e quando vi estava voando! Eu gritei e minha metade correu atrás de nós, mas com aqueles braços curtos claro que não nos alcançou, mesmo saltando, porque já estávamos voando bastante alto, ah se estávamos! Estou acostumado a estar montado nos ombros da minha contraparte, mas nunca tinha estado tão alto antes! O pestinha queria nossos peixes, ele pegou todos e largou-me com rede e tudo, depois saiu voando, às gargalhadas e deixou-me aqui todo enrolado, eu queria gritar por ajuda, mas algo com dentes grandes e fortes podia ter-me achado antes da minha metade! E agora vejam! Vejam! Nem peixes nem rede!

O velho parou de falar quando sua barriga se pôs a roncar, ah, então era esse o primeiro grunhido que tinham ouvido, ele acalmou-se um pouco depois que lhe deram de comer e beber.

—Que tipo de demoniozinho foi esse que o roubou?

Akihiko perguntou oferecendo mais brotos ao velho youkai, embora estivesse parado a mais de três metros de distancia, pois queria vê-lo esticar os braços, ele parecia bastante impressionado com a extensão daqueles membros tão longos num homem tão pequeno, quanto será que mediam?

—Uma raposa! — o homem exclamou devorando os vegetais — Uma praga de filhote de raposa com um imenso chapéu de palha!

O pai colocou-se imediatamente de pé.

—Não pode ser ele. — a mãe avisou-o cautelosamente — A deusa oni nos disse que Gintsune já não está nesse mundo.

—Ele pode estar de volta, aquele canalha ardiloso sempre foi cheio de truques! — seu marido afirmou teimoso.

—Na verdade isso realmente se parece a algo que Gintsune-Sama faria. — Akira concordou — Lembram quando ele roubou aquele vaso gigante onde o velho Te-no-me da rua debaixo estava guardando myogas em conserva e deixou-o entalado lá dentro por dias quando ele o flagrou?

Embora Gintsune-Sama insistisse até hoje de que não havia se dado conta de que o velho caíra dentro do vaso…

—Para que direção foi à raposa? — seu pai quis saber.

—Norte. — o velho respondeu com um dar de ombros.

—Aí está! — exclamou o tengu voltando-se para a esposa — A deusazinha nos mandou seguir em direção ao norte para encontrarmos Gintsune!

—Não, ela disse que encontraríamos alguém que talvez pudesse nos informar sobre Gintsune. — a esposa o corrigiu.

Mas seu pai não se deu por vencido, ele gesticulou exasperadamente para o velho de braços longos.

—E encontramos!

Sua mãe girou os olhos e balançou a cabeça, claramente discordando daquilo, mas acabou decidindo por não falar nada, ela sabia que o marido podia ser muito teimoso quando queria e, além do mais, já estavam seguindo naquela direção mesmo…

—O-oh! Esperem! — o velho homem os chamou quando eles começaram a se afastar — Não querendo abusar de sua boa vontade, meus amigos, mas poderiam me levar de volta ao rio? Eu e minha contraparte nunca saímos da margem, então duvido muito que ele possa me encontrar aqui…

—Quer que o escoltemos até o rio? — seu pai perguntou retornando para junto do velho.

—Bem… na verdade temo que não seja exatamente capaz de acompanhar seus passos com essas minhas pernas, e tão pouco estou habituado a andar, se é que me entendem. — o velho riu sem graça.

Akira já ouvira falar de youkais que usavam um truque muito parecido aquele: eles enganavam suas vitimas fingindo que eram velhos frágeis e pediam para serem carregados, e então começavam a aumentar seu peso absurdamente, impedindo suas vítimas de os largarem com uso de magia, até as esmagarem por completo e poderem devorá-las, também havia outro truque muito parecido a esse no qual usava uma pedra em lugar do próprio corpo… mas provavelmente não haveria problema ali, se o velho tentasse qualquer coisa, Akira e o irmão o esquartejariam com suas espadas.

Assim o pai deles acabou por carregar aquele estranho velhinho em suas costas, mas seus braços eram tão longos que mesmo dobrados, os cotovelos quase se arrastavam no chão.

—Mas você é mesmo um tipo bem pequeno, não é? Acho que é metade do meu braço apenas! Quanto tem de altura? — riu o velhote.

—Ou talvez os seus braços sejam muito longos. — Akira retorquiu, pois só Gintsune-Sama podia fazer troça de seu pai, porque eles eram amigos.

—Olhe a boca! — a mãe o repreendeu.

—Eu tenho 1,62m — o pai respondeu paciente — Para onde fica o rio?

—É só seguir em frente!  — o velhote respondeu alegremente.

—Mas seus braços são realmente enormes. — Akihiko comentou admirado — Quanto é que mede?

—Meninos! — sua mãe reclamou, embora ele não tivesse dito mais nada dessa vez.

—Não, está tudo bem! — garantiu o velho, e parecendo bastante orgulhoso disse: — Cada um de meus braços medem quase quatro metros! É impressionante, não é mesmo? É muito impressionante!

—Mas por que são tão grandes? — Akihiko quis saber.

O velho gargalhou.

—Por que tengus tem asas? É porque sou um Tenaga, é assim que somos!

Akira pensou um pouco.

—E o seu amigo, que estava com você no rio, também é um Tenaga?

—Não, não, como eu disse ele é minha contraparte, logo ele é um Ashinaga, nossas raças vivem em confraternidade desde o inicio dos tempos, vivemos perto dos rios e nos alimentamos de peixes, nós não somos fortes então não gostamos de nos afastar da margem sabe, por isso…

—Sh! — o pai fez de repente.

E Akira e Akihiko saltaram imediatamente para frente, já prontos para sacarem suas espadas, já que o pai estava com as mãos ocupadas para proteger a mãe e o bebê, quando o urso mais imenso que já haviam visto na vida saiu arrastando-se silenciosamente de entre as árvores.

—Onikuma! — sua mãe exclamou horrorizada, e o pequeno Akio remexeu-se em seus panos.

O onikuma ficou parado onde estava, parecendo encará-los, mas ele estava se comportando de um jeito muito estranho: a boca estava aberta de forma ameaçadora, mas a cabeça e os braços pendiam de tal maneira como se não tivessem vida, e… quando baixaram os olhos viram ali pernas muito finas por debaixo da pele de urso.

—Não é onikuma algum! Realmente veio até aqui por mim?!

Exclamou o velhote nas costas do pai, esticando um de seus longos braços até o focinho da besta e puxando-o, mostrando por debaixo da pele um segundo velho igualmente magro e muito parecido ao primeiro, mas seus braços eram curtos como os de uma criança e as pernas muito longas.

O velho ashinaga olhou-os um por um.

—Quem são esses? — perguntou tremulo.

—São amigos que me ajudaram, vamos, venha cá! — respondeu o velho tenaga agarrando-o e puxando-o para perto.

Eles eram realmente a metade um do outro, pois assim que se reencontraram o velho tenaga subiu nos ombros do ashinaga, suas mãos ainda arrastavam-se no chão dali, mas ele parecia se encaixar muito mais ali do que nas costas do pai de Akira… mas então antes de levantar-se novamente o velho ashinaga parou farejando o ar.

—Está sentindo esse cheiro? Eu conheço esse cheiro, de onde eu… que cheiro é esse?

Resmungou, fazendo o grupo enrijecer, todos ali sabiam bem que tipo de cheiro ele estava sentido: cheio de meio youkais, cheiro de carne humana.

—É cheiro de humana!

O tenaga exclamou de repente esticando seu braço em direção à mãe dos garotos, que arregalou os olhos por detrás da máscara… mas deteve-se gemendo quando o pai deles agarrou-lhe o braço com as mãos.

—Mas um mínimo movimento e eu vou pulverizar seu braço em dezenas de pedacinhos e meus meninos vão cortar suas barrigas e puxar as tripas para fora. — ameaçou seriamente.

Arregalando os olhos o ashinaga caiu sentado onde estava.

—Não, não, não façam isso, por favor. — chorou o tenaga tremulo — não queríamos fazer mal algum! Não íamos machucar ninguém, só estávamos surpresos, é que faz tanto tempo que não vemos humanos, achamos que não existiam mais… mas não comemos humanos, comemos peixes e é só! Oh, por favor, não quebre meu braço!

—E não cortem nossas barrigas. — implorou o ashinaga, parecendo muito perto de começar a se urinar — não quisemos assustá-los.

—Querido. — a mãe chamou-o suavemente — deixe-os em paz, eles não tiveram intenção de nos fazer mal.

—Certamente que não! — exclamaram a dupla de velhos trêmulos.

Os garotos olharam para o pai, a espera de seu veredicto, ele semicerrou os olhos e soltou o braço lentamente.

—Lamento muito. — disse por fim — É só que precisamos ser cuidadosos.

—Claro, claro, nós entendemos, uma humana nesse mundo é coisa valiosa mesmo. — o velho tenaga concordou de imediato — mas não há com o que se preocupar a nosso respeito, juramos! Digo, se a mulher estivesse aqui talvez fosse outra história… mas ela está na cidade agora e eu não vou contar nada. Você vai?

—Não. — o ashinaga respondeu de imediato, levantando-se vagarosamente, os dois pareciam estar tomando todo cuidado para não pô-los em alerta novamente.

—Oh, é mesmo! — relembrou-se o tenaga repentinamente — Parece que nossos amigos também estão à procura daquela praga de raposa que assaltou-nos ontem. E por falar nisso vamos ter que fazer uma rede de pesca nova, aquela já era.

—Melhor fazer uma rede nova do que ter que explicar para a mulher porque agora ela só tem meio marido. — o ashinga resmungou.

—Você disse que a raposa estava usando um grande chapéu de palha e saiu voando para o norte. — o pai dos meninos quis confirmar.

—Para o norte, sim. — concordou o ashinaga com sua voz áspera, enquanto o velho tenaga pegava a pele de onikuma esquecida no chão e cobria a ambos — Ele também tinha um tubo de bambu, sabe? Eu tentei segui-los quando ele levou minha metade, mas uma porção de raposas brancas meio cobra saiu do tubo e enrolaram-se nas minhas pernas, fazendo-me cair de cara na lama, quando levantei já não estavam em parte alguma.

Uma raposa que carregava um tubo de bambu com várias outras raposas dentro? Todos ali estavam certos de que não deveria ser Gintsune-Sama, mas o pai deles não quis escutá-los e, de alguma forma, acabaram acompanhando a dupla de youkais pescadores de volta às margens do rio onde viviam — que afinal não estava tão longe assim — e, como já estava escurecendo, passaram a noite ali também.

Pela manhã seguinte os dois insistiram que levassem o barco que eles tinham ancorado ali.

—Vocês vão mais rápidos se forem pelo rio! — afirmou o velho tenaga — Podem levar a jangada, só quem vai à cidade é a mulher e ela já tem um barco, esse também é dela, mas ela não precisa de dois barcos!

—Se quiserem chegar à cidade é só continuar descendo o rio que chegam lá, não tem erro. — acrescentou o velho ashinaga — Mas é melhor irem logo antes que a mulher volte… ela não há de gostar.

E os dois riam.

—A deusa oni nos disse para seguir os cursos dos rios. — relembrou-se Akihiko.

E assim eles acabaram aceitando a jangada… mas não embarcaram nela sem que antes houvesse uma longa discussão dos pais, que levou quase metade do dia, porque a mãe deles se recusava a ficar simplesmente sentada no centro da jangada cuidando do bebê Akio enquanto os garotos e o pai se revezavam nas funções de direção e defesa da embarcação.

E tanto discutiram que ela finalmente conseguiu tomar uma vara, ao invés de ficar no lugar mais seguro para si… às vezes Akira achava que sua mãe se esquecia de que era humana e frágil, afinal o que ela faria se alguma coisa pulasse da água e a pegasse enquanto ela estava sozinha lá…?

—Akira! — Akihiko chamou-o de repente.

Quando Akira virou-se novamente para frente uma imensa cobra verde saiu da água e tentou atacar seus pés, mas ele saltou para trás escapando ao seu alcance no ultimo instante, no entanto a cobra acabou por enrolar-se na jangada e pará-la bruscamente, fazendo-os caírem para frente e Akio começar a chorar, quando Akira ergueu os olhos percebeu que aquela era apenas a cauda da serpente, e alguns metros mais adiante uma mulher com longos cabelos negros caindo sobre o rosto emergiu da água, carregando um pequeno embrulho nos braços.

—Quem são vocês forasteiros, que invadem tão grosseiramente os territórios de meu benevolente amo e senhor? — sibilou a criatura.

Mayu e os garotos desviaram seus olhares para Satoshi, como é que eles sempre acabavam tropeçando no território de algum youkai?!

—Não foi nossa intenção invadir. — Mayu disse naquele momento — Somos apenas viajantes, e foi nos dito que se descêssemos o rio encontraríamos uma cidade.

—De fato há uma. — ela concordou erguendo uma das mãos para afastar os cabelos para trás, revelando assim uma face jovem e bela com profundos olhos verde musgo. — E essas são as terras de meu mestre. — Isso aquela dupla não havia mencionado. A criatura aproximou também sua parte superior e pousou uma das mãos sobre a embarcação fazendo os filhos de Mayu recuarem cautelosos para mais próximo dos pais. — Mas esse é o barco da nukeukubi da beira do rio, vocês o roubaram?

—Não roubamos nada! — Akihiko protestou ainda embalando protetoramente o irmãozinho em seus braços — Uma dupla de Ashinaga e Tenaga nos deu o barco por tê-los ajudado!

—Realmente? — questionou desconfiada afastando-se minimamente para trás, mas ainda detendo a jangada com sua cauda enquanto embalava o embrulho em seus braços quase parecendo imitar os gestos de Akihiko — E seria capaz de jurar isso pondo o peso de suas mentiras a prova?

—O que quer dizer com isso? — Satoshi questionou.

Até então a nure-onna ainda não demonstrara nenhuma intenção hostil, apesar da abrupta intercepção, então nenhum deles sacara suas espadas, mas ainda assim Satoshi mantinha-se em alerta, com um dos braços firmemente envolto na cintura de Mayu.

A nure-onna estendeu o embrulho em suas direções.

—Essa pedra foi enfeitiçada pessoalmente por meu mestre. — declarou — Se alguém jurar em falso enquanto a segura, ela começará a crescer e então você não será mais capaz de largá-la até que seja esmagado sob o peso de suas mentiras!

—Eu conheço esse truque, essa pedra vai esmagar qualquer um que a segure, independe do que dissermos! — Akira protestou apoiado sobre um joelho diante dos pais e dos irmãos, seu ombro direito tremeu por um momento no que pareceu um tique involuntário como se ele estivesse prestes a sacar a espada.

—Somente se mentirem. — a mulher insistiu ainda estendendo a pedra embrulhada em panos na direção deles.

—E como saberemos que você não está mentindo? — Satoshi questionou.

—Porque eu não fui esmagada. — afirmou categórica.

—Sim, mas você pode apenas estar mentindo sobre a pedra só esmagar aos que mentem e isso for um truque para nos atacar desprevenidos. — Akihiko comentou.

A jangada rangeu e estremeceu quando a cauda reptiliana que envolvia sua proa a apertou ainda mais, e a mulher youkai enrijeceu abraçando a pedra contra o corpo.

—Como ousam? Essa pedra foi enfeitiçada por meu mestre em pessoa! — sibilou, e a forma como ela falava lembrava a Mayu de Tama quando falava de Gintsune. — Estão acusando meu mestre de mentir…?! — com uma das mãos ela afastou em um gesto irritado os cabelos negros que insistiam em lhe cair sobre o rosto… e parou. — Asas negras e máscaras de bicos metálicos… são filhotes de tengu?

—Não somos filhotes, já somos praticamente homens feitos! — Akira e Akihiko protestaram.

Mas ajeitando cuidadosamente a pedra no colo, como se ninasse um bebê, a nure-onna nem pareceu ouvi-los.

—E o bebê também é um filhote de tengu? — ela ergueu os olhos para Mayu e Satoshi — Vocês cinco são uma família?

A mão livre de Satoshi já havia ido direto para o cabo da espada, mas Mayu pousou delicadamente sua mão sobre a dele.

—Ele é meu marido e esses são nossos filhos. — confirmou.

—São uma família de cinco, e não é comum ver um tengu viajando na companhia de mulheres, e muito menos ver filhotes fora das terras tengus, mas será que apenas isso é o bastante para serem considerados “uma família como nenhuma outra”? — falava consigo mesma passando a mão pelos cabelos uma e outra vez, logo antes de olhá-los novamente — Vocês por acaso não teriam vindo da terra daquela cruel deusa sanguinária que governa uma horda de onis terríveis, teriam?

A mão de Satoshi apertou-se sobre o punho da espada.

—E se tivermos? — perguntou ameaçador.

A jangada estremeceu e sacudiu-se quando repentinamente a cauda da nure-onna desenroscou-se dela e os libertou.

—Então isso significa que são os aguardados convidados de honra de meu mestre, nós estávamos à sua espera! — a youkai afirmou alegremente — Poderiam me acompanhar, por favor?

Mayu, Satoshi e seus filhos se entreolharam em dúvida.

*.*.*.*

Independente de onde havia vindo aquele guarda-chuva negro, uma coisa era fato: aquela raposa subestimara e muito o poder de propagação da fofoca entre os humanos, como Yukari comprovara na noite seguinte, durante o jantar:

—Yuki. — sua mãe a chamou — Quem foi que a trouxe para casa ontem?

Yukari ergueu os olhos.

—Eu vim andando para casa. — respondeu, apesar de não ter sido isso o que a mãe perguntou.

—Mas não veio sozinha. — a mãe insistiu.

Agora o pai também havia tido sua atenção capturada, e erguera o olhar de seu prato também esperando pela resposta da filha, momentaneamente esquecido do próprio jantar — fato esse que vovó Tsubaki aproveitou para transferir três pedaços de cenoura de seu próprio prato para o do filho, ela odiava aquelas coisas que sua nora insistia em por na comida.

—Era apenas um cliente da casa de banhos, estava chovendo bastante e eu havia emprestado meu guarda-chuva para Aoi-chan, então ele ofereceu-se para me dar uma “carona” durante parte do caminho até termos que ir a direções diferentes.

Não era completamente uma mentira, pensou cosigo mesma, ela e Gintsune realmente haviam se conhecido por causa da casa de banhos, e ele continuava a usá-las até hoje, apesar de que ele não era realmente um cliente, mas eles pareceram aceitar aquela explicação bastante facilmente, seu pai voltou a comer, sem sequer notar os pedaços extras de cenoura que haviam aparecido “magicamente” em seu prato e sua mãe também havia voltado a comer, e tudo poderia ter ficado por isso mesmo se Yukari não houvesse sido besta o bastante para insistir no assunto:

—Como ficou sabendo, mamãe?

—A senhora Nomura contou-me, ela viu quando os dois despediram-se no começo da rua, logo antes de ele se ir embora por uma direção diferente. — Ótimo isso combinava com o que ela havia contado — Mas ela não conseguiu ver o rosto dele, porque ele estava usando um grande chapéu de palha, por isso perguntou-me a respeito.

—Um acessório incomum. — Sua avó falou pela primeira vez. — Quem era ele, Yuki?

Por meio segundo Yukari olhou-a alarmada, e então baixou rapidamente o olhar e concentrou-o em sua tigela de arroz.

—Eu, hã… ele… — o que diria? Gintsune nunca usara um sobrenome, e não podia tratar um “cliente” de maneira tão intima a ponto de chamá-lo pelo nome, e quer ela o chamasse pelo nome ou algum sobrenome, certamente não seria um que seus pais fossem reconhecer, e já dissera que se tratava de um cliente! Mas agora não podia simplesmente dar o nome de um cliente qualquer porque sua mentira podia facilmente ser descoberta depois…! — Na verdade não sei o nome dele, não o conhecia.

Ouviu-se dizer, mas sua cabeça estava começando a rodar.

—Não conhece? — seu pai indagou seriamente — Mas acabou de dizer que era um cliente, foi só por que ele disse que a conhecia da casa de banhos? E deixou-se ser acompanhada por um estranho?!

—Vamos Daisuke, acalme-se. — vovó Tsubaki o apaziguou — Certamente o que Yuki quis dizer foi que só o conhecia de vista, mas não sabe seu nome, ela também não pode memorizar o nome de toda a gente que vem até aqui, não é Yuki?

E piscou-lhe.

—Sim! — Yukari concordou de imediato, apertando rigidamente os hashis em seu punho fechado — Foi exatamente isso!

Tsubaki voltou-se para o filho.

—Está vendo?

O pai de Yukari bufou.

—Seja mais cuidadosa. — reclamou.

—Sim papai. — murmurou.

E quando percebeu a avó piscando-lhe conspiratória, voltou a desviar o olhar e concentrou-se apenas em sua comida pelo resto do jantar.

Foi uma refeição tão tensa que quando terminou Yukari sentia os ombros duros e acabou ficando imersa no banho até a água quente ter esfriado, mas o pior ainda estava por vir:

—Gin-kun foi buscá-la na escola ou vocês apenas se encontraram “por acaso” como no festival cultural? — sua avó interceptou-a assim que saiu do banheiro.

Yukari sobressaltou-se e olhou espantada de um lado para o outro, mas as duas estavam sozinhas em casa: naquela noite eram seus pais os responsáveis pelos serviços de limpeza noturnos da pousada.

—Do… do que está falando avó?

Sua avó balançou a cabeça.

—Você é uma mentirosa ainda pior do que eu na sua idade, Yuki, é absurdamente transparente em suas emoções. — suspirou — Pelo seu comportamento mais cedo é óbvio que a pessoa que a acompanhou ontem foi Gin-kun. Ele foi buscá-la na escola?

—Apenas encontramo-nos por acaso. — resmungou.

Mas sem que pudesse evitar já estava desviando os olhos novamente e, como não poderia deixar de ser, sua avó pegou-a na mentira no ato:

—Claro, inclusive dentro de tua própria escola.

—Era um festival escolar.

—E quem ele havia ido ver ali?

—Acho que o professor Haruna. — Yukari deu de ombros. Na verdade ainda estava um pouco brava pela armadilha na qual ele enredara seu professor… e no fundo um pouco incomodada também, pois já não era mais a única a guardar o segredo de Gintsune. — Creio que são amigos, foi o professor que falou para ele daqui.

—Vocês encontram-se por acaso bastantes vezes, não é?

—Higanbana é uma cidadezinha minúscula, as pessoas se trombam o tempo todo por aqui. — olhou para os próprios pés e suspirou antes de finalmente confessar: — Ele achou que eu poderia cair no rio ou algo assim.

—Gin-kun parece um bom rapaz, diga-lhe que agradeço a gentileza da próxima vez que vê-lo, ah, e avise-o que aquele convite para vir tomar chá novamente ainda está de pé. — sua avó pediu.

—Tudo bem vovó.

Yukari esquivou-se pronta a voltar para o quarto, mas a avó seguiu-a e alcançou-a ainda nas escadas.

—Gin-kun parece um bom rapaz. — voltou a dizer — E não creio que os dois estejam fazendo algo de errado. — fez uma pausa para olhá-la, e Yukari franziu o cenho, e agora onde é que sua avó queria chegar? A avó suspirou e continuou — Os dois parecem ter quase a mesma diferença de idade que tínhamos seu avô e eu, apesar de que as situações eram obviamente bem diferentes, mas ainda assim, Yuki, creio que seja ainda muito cedo para você começar a sair com um homem assim… o melhor seria um estudante como…

Yukari arregalou os olhos.

—As coisas não são assim, nós não temos qualquer de relação desse tipo! — quase se engasgou atropelando-se com as palavras.

Mas a avó limitou-se a encolher os ombros.

—Não duvido de você, mas não se esqueça de falar com seus pais antes de qualquer coisa, está bem? Você sempre foi uma menina bastante correta.

Yukari franziu o cenho.

—Só que não há nada para ser dito. — negou virando-se e indo embora.

Tsubaki suspirou e balançou a cabeça, será que era alguma fase rebelde?

Yukari entrou em seu quarto batendo a porta atrás de si.

—Nunca mais me busque na escola, mesmo que haja um tornado! É problemático demais…!

Mas Gintsune não estava em canto algum do quarto.

*.*.*.*

Eles nunca deviam ter confiado naquela nure-onna!

Quando Mayu deu-se conta do significado da hospitalidade ali, ela em um único movimento desesperado girou nos calcanhares e atirou o pequeno Akio para os braços de Satoshi, empurrando-os para fora em seguida.

—Vão! — bradou, agora empurrando também aos filhos. — Saiam!

—Mamãe! — chamaram surpresos do lado de fora.

—Me deixem aqui!

Exclamou ofegante levando a mão ao peito e então se virando lentamente para as duas mulheres em quimonos que se erguiam às suas costas.

*.*.*.*

As monções continuaram pelo resto do mês e arrastaram-se ainda durante boa parte do seguinte, mas em geral eram apenas pequenas garoas comparadas com a daquele dia, por isso Gintsune só sentiu necessidade de acompanhar Yukari até a escola mais uma vez, e buscá-la noutras duas, mas em geral passava a maior parte de seus dias buscando pelo cachimbo perdido — distanciando-se cada vez mais do ponto em que o deixara cair — e aos finais de semana visitava Haruna para beberem juntos, embora o professor acabasse só o acompanhando com bebida alcoólica uma de cada três vezes, e nunca bebia nada além de duas latas de cerveja.

—Hoje tive que chamar Shibuya-chan à sala dos professores.

O professor contou-lhe numa dessas raras ocasiões em que estava bebendo cerveja, mesmo que estivesse apenas na metade de sua primeira lata e Gintsune quase terminando a sétima. Afinal ele não ficava realmente embriago a menos que tomasse altas concentrações de álcool — por isso é que as bebidas youkais tendiam a ser muito mais fortes que as humanas.

—Oh… seus sapatos não estavam bem engraxados?

Perguntou distraidamente, mas ainda assim cheio de ironia, enquanto brincava com Hana, balançando para cima e para baixo uma vareta com uma pluma cor de rosa na ponta, Yukari era sempre tão certinha que Gintsune não conseguia imaginar uma boa razão para ela ser chamada para levar um sermão na sala dos professores.

Mas parece que o professor tinha sim, de fato, uma boa razão:

—Ela foi vista recentemente andando acompanhada de um homem mais velho e desconhecido de quimono. — Kakeru comentou, ele mantinha-se o mais imóvel possível porque Yuki havia decidido dormir no seu colo — Obviamente não era seu pai, e Shibuya-chan não tem irmãos.

Estavam os dois nos fundos da casa de Kakeru, bebendo enquanto olhavam para o céu e jogavam conversa fora — assim como Gintsune costumava fazer com o tengu.

—Mas aposto que era um homem belíssimo. — Gintsune comentou com uma risadinha — Que sorte de Yukari, não é? Ainda mais com aquele rosto comum e aparência sem graça que ela tem…

—Estou falando sério aqui Gin-san. — Kakeru o censurou — Mesmo que eu saiba que ela não fez nada, acabei sendo obrigado a adverti-la sobre sua conduta recente, às vezes as pessoas falam de mais e nessa cidade tudo se fala, não é bom para Shibuya-chan, ou qualquer aluno, estar envolvido em boatos de qualquer espécie. — o professor suspirou massageando as têmporas — E também avisá-la que, se por acaso, a situação se agravasse de alguma forma a escola seria obrigada a entrar em contato com a família dela, para ter certeza de que não há nada de errado.

Mas o que era isso? Gintsune estalou a língua, Yukari não tinha lhe falado de nada daquilo!

—Acho que a escola se mete demais na vida dos alunos. — reclamou erguendo um pouco mais alto o brinquedo, fazendo Hana ficar de pé sobre as patas traseiras tentando alcançá-lo, mas perdeu o equilíbrio e caiu de costas.

—Preferimos pensar que estamos apenas tomando conta adequadamente.

—Você tem um cigarro?

Podia ter pedido por um cachimbo, mas os humanos não fumavam mais cachimbo hoje em dia…

—Larguei.

—Mas tinha acabado de começar! — protestou.

—E nem devia ter começado. — Haruna deu de ombros.

Por que humanos eram tão inconstantes?! Gintsune girou os olhos.

—Aiha-chan andava saindo com um universitário há uns tempos atrás, e mesmo assim só lhe chamavam atenção pelo comprimento da saia. — reclamou.

Kakeru deu de ombros.

—Kanae-chan tem as melhores notas do colégio, além disso, nunca se encontrou com o namorado na frente do colégio, e provavelmente tem a aprovação da família e nunca saiu com ele em uniforme escolar. — deu de ombros.

De repente Tsuki surgiu de canto algum, abocanhou o brinquedo que Gintsune usava para distrair Hana e saiu correndo com ele, com a irmã ao seu encalço, Yuki olhou os dois, bocejou e levantou-se para ir embora, certamente para procurar um lugar mais calmo onde dormir.

Gintsune suspirou.

—Não havia nada que eu podia fazer, humanos são frágeis e morrem bastante facilmente, ela bem podia ser esmagada debaixo de alguma árvore derrubada pela força do vento, sabe?

—Não exagere, foram apenas algumas chuvas de verão, não houve nenhuma grande tempestade ou tufão como as que ocorrem no outono.

—A última vez que choveu foi há uns dois dias, e ainda assim não foi mais do que um chuvisco no fim da tarde. — farejou o ar — E amanhã será dia de sol, então acho que as chuvas já acabaram afinal, apesar de terem se demorado um pouco mais esse ano. Por isso não creio que voltará a acontecer.

Kakeru anuiu com a cabeça e bebeu mais um pouco de cerveja.

—Já é verão afinal.

—Já é verão. — Gintsune concordou também bebendo.

Ah… ele só queria mesmo era dar uma boa tragada no seu cachimbo.


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Notas finais do capítulo

Gintsune aproveitando tranquilamente os seus dias de verão, enquanto os amigos dele se metem numa confusão após a outra no outro mundo huhauhsuhas E eu sei que exagerei nas notas de novo, mas hoje é meu aniversário então deem um desconto MUHAHAHA


CURIOSIDADES DO JAPÃO:

Duas pessoas sob o guarda-chuva:
Para os japoneses, um casal dividindo o guarda-chuva tem uma conotação romântica, pois a expressão “dividir um guarda-chuva” (Aiaigasa) forma um trocadilho com a palavra “amor” (Ai), por isso ao representar casais apaixonados é comum desenharem um guarda-chuva e escrever os nomes do casal sob ele, um de cada lado do cabo.

BESTIÁRIO:

Te-no-me:
O Te-no-me não possui uma visão das melhores, no entanto ele tem o olfato muito apurado que o permite caçar no escuro, ele vagueia a noite por cemitérios e campos vazios em busca de humanos para devorar, esperando que suas presas se aproximem bastante antes de atacá-las, pois assim quando as vítimas se dão conta de que ele não é humano, já é tarde demais. O Te-no-me foi usado como base para a criação da figura do “Homem Pálido”, monstro presente no filme “O Labirinto do Fauno”.

Tenaga e Ashinaga: Um par de youkais semelhantes a humanos, com a exceção de o Ashinaga possuir pernas extremamente longas e o Tenaga braços extremamente longos. Costumam trabalhar em dupla para pegar peixes na beira dos rios.

Onikuma: Um urso que viveu por tanto tempo que se tornou um youkai, ele não possui qualquer poder sobrenatural, mas anda sempre sobre duas patas e possui uma força descomunal, sendo capazes de carregar pedras que nem dez homens juntos poderiam mover.

Nukeukubi: Este youkai é em muitos aspectos semelhante ao Rokurokubi, exceto que sua cabeça se separa completamente do corpo, ao invés de se esticar para fora do corpo como a de um Rokurokubi.

Um Nukekubi também é muito mais violento do que um Rokurokubi. Como sua cabeça se destaca do corpo, ele pode alcançar distâncias muito maiores do que um Rokurokubi normalmente pode e, além disso, ele possui sede de sangue. A cabeça voando normalmente suga o sangue de suas vítimas como um vampiro, mas ocasionalmente morde seres humanos e animais até levá-los a morte.

Nure-onna: Literalmente “mulher molhada”. Youkai parte mulher e parte serpente, existem duas versões da criatura: uma semelhante a uma serpente marinha com cabeça de mulher, e outra com torso e braços de mulher e cauda de serpente. É geralmente encontrado em praias e a beira de rios, estão sempre molhadas (daí seu nome) e possuem longos cabelos negros.



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