Durante alguns dias caminhamos para onde o sol se põe, atravessando terras pouco habitadas. Nosso destino era uma cidade popular e festiva chamada Livía. Anos atrás, junto com meu mestre Mejem, eu já havia visitado aquele lugar e ainda carregava memórias dos diversos festivais que aconteciam em sequência e exaltavam divindades ou acontecimentos históricos, era isso que movimentava o comércio têxtil e de flores da região.

Entretanto, quando estáva¬mos prestes a chegar, Mejem e Agatha me obrigaram a acampar em um bosque com os três lobos enquanto eles seguiriam até a cidade para procurar pistas do feiticeiro Okuma-nuai. Naquela noite solitária era possível ouvir o baixo chiado de música vindo da cidade e eu tinha uma impressão crescente de que estava próximo do meu lobo-homem, o que me fazia ficar ansioso em ir até lá logo. Mas, mesmo disposto a sair correndo para ir encontrá-lo, eu não podia, pois Névoa, Carvão e Pacifico não podiam entrar no território dos humanos. Quando meu mestre foi embora, ele me fez ficar para concluir o tratamento do meu meio irmão lobo e disse que só depois eu poderia ir à cidade. Felizmente o lobinho amarelado tinha evoluído naqueles poucos dias com as doações diárias de força vital da minha parte lupina, ele até mesmo desaparecia por horas junto com os irmãos lobos para explorar a floresta ou caçar pequenas presas. Pacífico estava saudável e seguindo o comportamento de Névoa e Carvão. Por essas coisas, havia decidido que na manhã seguinte mandaria os três de volta para a alcatéia, confiando e pedindo aos dois irmãos que guiassem Pacífico e o protegessem.

Não consegui dormir direito naquela noite graças à sensação inquieta em meu corpo. Quando a primeira luz do alvorecer atingiu meu rosto, acordei e juntei minhas coisas. Névoa era a única no acampamento e assistiu meus movimentos velozes sem se levantar.

― Irei trazer Fiel de volta. Sabe disso, não é, Névoa?  ― Disse jogando a trouxa de coisas nas costas e pronto para ir. Ela ficou de pé e moveu a ponta da cauda me olhando fixamente. ―... Fale algo! Sua cara está me incomodando.

A loba com uma única mancha escura em um olho deu um curto passo para trás:

― “Tenha a sorte de vê-lo novamente, jovem feiticeiro”.

― O que está dizendo? Farei Fiel procurar por vocês e enchê-los de atenção por tudo que fizeram por nós!

― “Nós iremos seguir Pacífico para tentar ser aceito na família dele. Parece um destino mais seguro para meu irmão e eu... Mais seguro que aquele que você segue”.

―... Bom, não posso culpá-los por querer um lugar melhor ― falei um pouco triste, pois sentiria falta deles, mas eles não estavam errados de seguir seus próprios caminhos. Só me restava aceitar que estavam deixando de seguir Fiel e deixando que o alfa que escolheram seguisse seu próprio turbulento destino enquanto eles seguiam para a vida de lobo que sonhavam.

― “Sempre fomos ignorados por todos que encontramos. Fiel se tornou um exemplo de lobo solitário forte e por isso sempre vamos admirá-lo. Mas, com a amizade de Pacífico, é uma chance de fazer parte de uma família grande! E nós temos que aproveitar essa oportunidade e lutar para conquistar um lugar enquanto somos novos” ― A loba se aproximou: ― “Não esqueceremos você e Fiel. E, se for possível, gostaríamos de vê-los juntos novamente. Se estiverem vivos e encontrar tempos de paz, sabe onde poderá nos encontrar...”

Os outros dois lobos apareceram do meio do bosque, pareciam que haviam escutado aquela conversa, pois Carvão me encarou por um segundo então correu, se jogando sobre em mim, com dificuldade sustentei o peso do abraço dele e suportei suas lambidas exageradas no pescoço enquanto choramingava (suspeito que escutei ele dizer algo sobre “sabor gostoso” enquanto fazia isso) até que se afastou correndo e sumiu nos arbustos. Névoa o seguiu sem olhar para trás. Pacífico foi atrás deles, mas logo parou bruscamente e se virou confuso e estranhando algo, talvez soubesse que era naquele momento que iríamos para direções diferentes, observou-me com atenção até que balançou a cauda e saltitou no lugar, brincando como uma criança boba, mas como se mostrasse que estava cheio de energia, só depois correu e também desapareceu.

Em um segundo fiquei sozinho por completo, com apenas meus pensamentos e o sussurrar da brisa passando pela floresta. Tentei aguentar o sentimento de perda, seria egoísta buscar convencê-los a continuar seguindo Fiel, ir com meu meio irmão era o melhor para eles como lobos livres, mas realmente sentiria muita falta. Depois de lamentar e enxugar uma lágrima insistente por me lembrar de alguns momentos com os irmãos lobos, também segui em direção a Livía, me concentrando em encontrar meu lobo-homem sequestrado e salvá-lo.

... 

A agradável cidade de Livía tinha ruas largas e sempre decoradas, seus prédios tinham uma arquitetura variada e não eram muito altos e em muitos cantos havia jardins ornamentos e santuários dedicados a deuses reverenciados. Como um aprendiz de feiticeiro, meu local preferido era os edifícios de história, que eram lugares que protegiam livros, artes e costumavam ter painéis esculpidos ou pintados de guerreiros musculosos que falavam de histórias que não deviam ser esquecida. Apesar da população local não se importar em apreciar esses lugares, esses edifícios tranquilos estavam presentes e persistindo graças às pessoas que visitavam a cidade para conhecer mais do passado e do presente.

Assim que cheguei fui à região de comércio de túnicas e roupas decoradas de onde poderia ter vindo a capa que o feiticeiro deixou para trás, também esperava encontrar Mejem ou Agatha por ali. Sozinho e vendo tantas coisas atraentes foram muitos momentos que meus pensamentos se distraíram e tive que resisti à curiosidade, até mesmo quando pensei que talvez houvesse um lugar que falasse dos guardiões cardiais onde eu poderia encontrar mais detalhes de quem era o guia leste que encontrei e deu a solução para salvar Pacifico.

Mais uma vez com o foco renovado, caminhava entre os comércios procurando uma loja com capas semelhantes a que vi quando, de repente, a multidão se fechou ao meu redor, logo percebi que uma procissão alegre tinha chego à rua e tomado o espaço como água transbordando, reunindo um maciço grupo de espectadores desocupados. Jovens homens e mulheres enfeitados agitavam o desfile, dançando com sorrisos largos e contagiantes ao som de um grupo de musicistas que tocavam e cantavam enquanto caminhava seguindo um monumento que era carregado na frente do desfile muito calmamente. Havia muitas flores coloridas, carros com oferendas, tecidos brilhosos e coloridos ao vento, e no ar havia pétalas e um perfume doce que se espalhavam. Eles pareciam tão felizes, sem preocupações e se divertindo que me distrai completamente, parando para assistir e sorrindo de volta para um ou outro dançarino que passava chamando atenção e as pessoas para se juntarem a eles.

Mesmo não tendo idéia do que comemoravam ou para quem era a festa, facilmente aceitei o convite para dançar e caminhar pela cidade no meio do grupo e depois de alguns minutos eu estava me divertindo e quase decorando um refrão da musica que cantavam, mas de repente a sensação ansiosa explodiu dentro de mim. Meu coração bateu rápido e por um momento achei que estava alucinando, mas era verdade que no pequeno grupo à frente de tudo estava o homem que eu procurava! O feiticeiro no corpo de Fiel estava ali, vestido com roupas refinadas e caras e entre alguns homens velhos e cheios de ouros, todos sendo acompanhados por mulheres que carregavam enormes buques de flores e folhas e homens com cestos de frutas variadas. Apesar de ele acenar para alguém do publico uma vez ou outra, seu olhar ainda tinha arrogância, orgulho e frieza e algo de insatisfação escapava de vez em quando.

Assim que compreendi tudo, parei no meio dos dançarinos sem ideia do que fazer, o feiticeiro Okuma-nuai estava tão próximo! Quando decidi segui-lo sem chamar atenção meu nome veio da platéia em um grito, assustei-me e facilmente encontrei o velho Mejem com a pura expressão descrente, enxergando apenas a situação de que eu estava no meio de um desfile alegre e florido tão despreocupadamente. Aqueles segundos olhando para outra coisa foram suficientes para que feiticeiro sumisse como se fosse um fantasma e as pessoas nem notaram.

― Rapaz infantil! ― Mejem brigou comigo depois que sai da procissão e cheguei até ele, não me deixando dizer nada, apenas me levando para longe de lá: ― Idade não faz diferença quando se trata de você, Luahn! É o principal interessado e faz coisas assim? Qual futuro espera fazendo o que bem entende? Ninguém estará a salvo se dependermos apenas de você.

― Mestre, eu o vi!  Eu o vi bem a frente de tudo! Temos que... ― O homem parou e me olhou mais sério, claramente avaliando se era verdade. ― M-mas ele sumiu depois que você gritou meu nome! Você foi o culpado de perdermos ele.

Mejem quase riu, mas voltou-se para frente e continuou andando:

― De qualquer forma, descobri poucas coisas e está na hora de encontraremos com Agatha no casarão de Riscket. Durante o almoço iremos juntar nossas pistas e pensar em algum plano.

― O casarão? Do Risket?! Tem certeza disso? É a casa do louco, mestre. Ninguém confia muito nele.

― Exatamente, Luahn. Foi escolha da mulher, ela disse que por essa razão não teria pessoas que pudessem nos ouvir e causar problemas. Um fato é que feiticeiro está se tornado popular realizando coisas quase impossíveis. Ele ilude muitas pessoas que se sentem atraídas pela sua aparência e habilidades, incluindo pessoas importantes. E esse povo de Livía simplesmente o adora, mesmo ele extorquido um valor alto e sendo arrogante em muitas situações. Essa cidade pode se tornar um exército a favor dele, por isso nós temos que ser cuidadosos.

Durante alguns segundo de paz, segui o velho feiticeiro em direção ao local de encontro, mas, de repente, uma conhecida sensação de magia no ar nos atingiu, parei e encarei Mejem, ele também havia percebido, porém parecia em duvida se devia ir verificar ou não, afinal, aquilo era um ruído que ecoava pelo ambiente apenas quando uma mana forte agia. Quando o velho feiticeiro deu um sinal em sua expressão de que ia falar algo, sai correndo! Realmente não esperei que ele dissesse que eu não deveria ir. Corri seguindo a origem daquela sensação e logo estava andando em ruas de pedra sem movimento de pessoas e mais estreitas até que ouvi barulhos metálicos e encontrei soldados de armaduras cercando alguém contra uma parede. Parei imediatamente como uma estátua para não ser notado enquanto tentava entender a cena. Subitamente uma espada foi expelida por cima e do meio do grupo, caindo no calçamento, e observando os ornamentos da arma percebi quem estava no recheio naquele amontoado e agi à distância, lançando um feitiço de correntes de mana que os seguraram e também virei alguns capacetes com a viseira para trás, depois os empurrei para longe de Agatha. O rosto da guerreira mostrava cansaço, havia um corte numa área branca da bochecha e seus braços pareciam fracos. Ela me encarou sem surpresa e correu para minha direção dizendo:

― Pegue a espada! 

Obedeci, estranhando que a mulher estivesse tão descoberta e mostrando a pele manchada dos braços e rosto para todo mundo, e corri atrás dela:

― Onde está sua túnica? Sabe que as pessoas te darão olhares estranhos!

― Está atrasado! Eu já experimentei isso.

No meio do caminho encontramos Mejem e ele se juntou a nós assim que Agatha pegou a túnica dele emprestada e se cobriu. Em uma próxima rua mais movimentada, ela passou a caminhar mais normal, para não chamar atenção, porem com pressa e soltava alguns gemidos de dor então me preocupei que estivesse mais ferida do que parecia:

― Você está bem? O que houve?

― ...Vamos para o casarão antes.