Sorriso Insano escrita por LoneGhost


Capítulo 11
Chuva remorsa


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura :)



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A única coisa que ajudava minha respiração naquele inferno eram alguns buracos na tampa da lata velha. Aquilo já fedia naturalmente e nós também não estávamos cheirando muito bem, o que piorava mais ainda. O latão era quadrado e maior do que uma lata de lixo normal e cabíamos bem ali, mas nos apertávamos. Aquela foi uma das sensações mais atormentadoras que tive com Jeff... ele parecia poder me atacar a qualquer momento em um espaço daquele tamanho.

 Ficamos, no mínimo, uma hora ali. Eu achei que desmaiaria. Seria melhor. Eu sentava encolhida, abraçando as pernas e queria sair daquela maldita posição. Meus membros já estavam tensos. Eu queria ar limpo e saudável. Podia ver os rostos de Jeff e Thomas. Durante todo esse tempo que ficamos no lixo, não falamos nada. Jeff ficava atento aos barulhos, às pessoas e aos assuntos discutidos. Pude ouvir pessoas gritando e procurando por nós lá fora, e barulhos de sirenes. Thomas olhava para os pés e também abraçava as pernas. Ninguém podia nos ouvir. Eu respirava calmamente e devagar, com medo... e com dificuldade, já que meus pulmões estavam tão apertados. Finalmente, comecei a ouvir barulho de trovões, e depois, de chuva forte. Isso me lembrou que as pessoas se recolheriam em suas casas para se abrigarem.

—Vamos.- disse Jeff.

 Ele esticou o braço e abriu devagar a tampa do lixo. A chuva pingou perigosamente em nós. Ele se levantou e olhou para a entrada do beco. Saiu do latão e fomos atrás. Não havia ninguém na calçada. Percebi que o fim do beco se dava na parte de trás de um prédio e Jeff começou a seguir essa direção. Ele olhou para nós. Seus cabelos se molhavam, tornando-se ainda mais lisos e o sangue, juntamente com a sujeira em seu rosto e mãos começou a escorrer.

—Corram para cá.- ele disse rápido.

Chegou em frente ao prédio e começou a subir pelas janelas e pelos canos. Ah, meu Deus... olhei para Thomas. Seu cabelo também se tornara mais liso com a água.

—Thomas.- disse.- Não vou conseguir subir.

Ele me analisou.

—Não sei como posso te ajudar.- respondeu.

Começou a andar e subiu no prédio também. Que ódio... comecei a observá-los subindo. Não devia ser assim tão difícil. Precisava ser rápida antes que alguém chegasse. O prédio devia ter uns cinco andares. Engoli em seco. Coloquei as mãos na grade da janela e um pé na parede para dar impulso à minha subida. Consegui subir na janela e quando olhei para cima, vi que Jeff já havia chegado onde queria e Thomas já estava o alcançando. Eu precisava ser mais rápida. Comecei a pegar onde pude para me ajudar a subir. Eu estava conseguindo, mas não estava nem na metade do prédio quando minhas mãos molhadas escorregaram do cano que eu segurava e caí de costas no chão. Acho que teria sido uma das piores dores que senti se não fosse minha mochila. Mesmo assim, senti o impacto do chão e minha cabeça bateu com força nele. Pensei que iria desmaiar, minha visão ficou totalmente escura, mas consegui me levantar e minha cabeça doía muito. Olhei para cima e Thomas estava olhando para mim, lá do alto. Ele revirou os olhos e colocou as mãos na boca para gritar:

—Coloque o capuz e contorne o prédio!- apontou para a direita da entrada do beco.- Nos encontramos lá.

Olhei para a entrada do beco e ainda não havia visto ninguém. Meu casaco era preto e estava molhado, ou seja, quase não se percebia o sangue nele. Coloquei o cutelo dentro da bolsa, levantei o capuz, coloquei as mãos no bolso do moletom e abaixei a cabeça, olhando apenas para meus pés. Eu não conhecia a cidade em que estávamos. Talvez fosse perto da minha. Mas certamente ainda estávamos nos Estados Unidos, não tinha dúvidas. Quando saí do beco, virei a direita e comecei a andar para essa direção. Levantei um pouco a cabeça e vi uma grande rua, cheia de carros, motos e comércios. As pessoas pareciam tão entretidas com uma mão no guarda-chuva e a outra no celular, que nem pareciam me notar. As pessoas passavam rápido enquanto havia uma assassina ao seu redor e ninguém percebia. Pensei em quantas vezes isso podia ter acontecido comigo também.

 

 Andando até chegar de frente ao prédio, vi um vendedor de cachorros-quentes guardando rapidamente suas coisas. Parecia ter percebido que aquela chuva era forte demais para um único guarda-chuva guardar tanta comida. Ele estava virado, colocando algo em um isopor. Os cachorros- quentes estavam em cima de uma mesinha. Pareciam deliciosos. Pareciam irresistíveis para quem não havia comido nada há um dia e meio. Eu já tinha feito tanta coisa ruim em um dia que nem havia começado direito... aquilo não faria muita diferença. E mesmo ouvindo a voz da consciência em minha cabeça dizendo “Não faça” meu estômago falou mais alto, literalmente. Passei a mão em um deles e coloquei discretamente em meu bolso do moletom. Olhei para os lados. Ninguém notou. Ninguém se importaria. Tirei do bolso e comecei a devorá-lo andando, mesmo com a cabeça baixa. Comi como se fosse a pessoa mais miserável do mundo, rápido, mas ainda assim, apreciando cada mordida. Que saudades de uma vida normal. Comi tão rápido que queria fazer o tempo voltar, para tê-lo em minhas mãos de novo, mas as coisas não são assim.

 Mal havia percebido que tinha passado o prédio. Comecei a andar para trás de novo e sentia medo de que, mesmo que as pessoas não fossem muito perceptivas, sentissem ao menos o cheiro horrível que eu transmitia. Rezei para que isso não acontecesse. Aliás, que deus estaria ao meu lado em uma hora dessas? Me senti mal. Limpei meu rosto que certamente ainda estaria com um pouco de sangue e olhei para cima do prédio. Não vi ninguém. Maldição... pensei. O que devia fazer? Talvez algumas pessoas ainda estivessem nos procurando.  A chuva ficava mais forte e eu mais ensopada. Estava com frio, muito frio e temia adoecer. Corri para debaixo de uma lona de uma loja de móveis. Me encostei na vitrine, sem me importar com o que os donos da loja pensariam e abaixei a cabeça. Meu estômago dava cambalhotas, por algum motivo. Olhava para o chão e via os pés das poucas pessoas que passavam por ali, correndo da chuva ou se escondendo de baixo de guarda-chuvas. Levantei um pouco a cabeça, com o cabelo cobrindo meu rosto e dei uma olhada nas pessoas. Vi uma garotinha, de mais ou menos cinco anos, com uma capa de chuva transparente e um homem ao seu lado, provavelmente seu pai. Ele segurava um guarda-chuva preto, cobrindo a si mesmo e sua filha da chuva. Ela, andando rápido, tropeçou em seus próprios pés e caiu no chão e se começou chorar. O pai parou quando a viu no chão e a pegou no colo com o braço livre do guarda chuva. Ela o abraçou e chorou em seu pescoço e ele acariciou seu calcanhar, provavelmente onde estaria doendo e sorriu para ela. Ela fez o mesmo e ele voltou a andar, com ela em seus braços, abraçada a ele. Eu os observei sumindo na chuva. Acho que só eu havia notado aquela cena. Pensei em suas vidas e pensei em Jeff. Eu precisava protegê-los. Jeff não tinha sentimentos, não sabe o valor da vida humana e não liga ou sente em matar qualquer um. Até mesmo uma criança. Até mesmo destruir uma família, como fez com a minha. Naquele momento, percebi o motivo de ainda estar viva e ainda estar ali. Há uma razão para tudo, e talvez eu estivesse lá todo aquele tempo para isso, para esse motivo que eu só tinha percebido depois de ver uma criança e seu pai. Eu precisava acabar com Jeff, mas não para me manter viva, eu precisava salvar outras pessoas. Pensei na vida que tirei daquela mulher e em quantas outras teria que tirar para alcançar meu objetivo. Mas minha vida também havia sido tirada de mim. Não é como se as pessoas que eu tivesse de matar seriam mortas por um tipo de vingança, mas, infelizmente, seriam elas que fariam tudo valer a pena. Seriam elas que me ajudariam a fazer minha vida valer a pena.

 

 Me desencostei da parede e comecei a correr para longe, olhando para frente, sem me importar se viriam ou reconheceriam meu rosto. Eu tentei encontrar uma maneira de achar os dois. Vi um prédio afastado, o último da rua, mas ainda alinhado com os outros os quais passei na frente e percebi que havia em sua lateral um escada para chegar ao terraço. Comecei a subir, segurando com força no metal, para não escorregar com a chuva, e enfim cheguei em cima do prédio. Eu os vi de longe, no prédio onde tinham subido sem mim, acho que seis construções depois de onde eu estava. Ambos estavam, provavelmente, de olhos fechados e com as mãos levantadas, como se fizessem uma prece. Jeff parecia falar algumas coisas e Thomas estava com a cabeça abaixada. Imaginei que Jeff já estivesse cansado de me esperar e estava indo sozinho com Thomas seja lá para onde. Me desesperei e pensei em pular de prédio em prédio para alcançá-los. Havia um vão muito grande entre o prédio em que eu estava e o outro.  Como eu pularia, eu não fazia ideia... mas eu havia sobrevivido àquele dia que mal havia começado. 

Recuei em cima do prédio até o final e corri, confiando em meu interior, como quando pulei na caminhonete para sair do condomínio. Chegando muito próximo ao vão, peguei impulso e pulei. Consegui cair de pé no outro prédio, que era um pouco mais baixo que o anterior e olhei para trás, quase não acreditando no que havia feito. Mas não podia perder tempo. Olhei para frente e respirei fundo e fiz a mesma coisa. Fiz isso nos prédios seguintes até chegar ao deles. 

Quando me aproximei, nenhum dos dois abriu os olhos e Jeff estava falando palavras parecidas com as que disse quando fomos à cidade. Cheguei perto deles fechei meus olhos e levantei as mãos também, me concentrando na energia negativa das palavras que sua boca transmitia.

 

Logo, abri os olhos e estávamos dentro de um quarto de hospital. Olhei pela janela e ainda chovia um pouco. Vi um senhor de idade deitado na cama, com aparelhos conectados ao seu coração e uma máscara de respiração em seu rosto. Jeff olhou para mim e riu.

—Olha só quem chegou a tempo.- disse sarcástico.

—Pensei que iriam me esperar.- falei baixo, com ódio.

—O mundo não para pra te esperar.- respondeu o monstro.

—O que vamos fazer?- perguntou Thomas.

Jeff apontou para as máquinas.

—Primeiro, vamos desligar aquilo e quando os enfermeiros vierem aqui checarem esse cara, vamos matar. Depois, só saímos por aí correndo e matando quem conseguimos. Fugir é uma das melhores partes.

Eu definitivamente não desligaria aqueles aparelhos. Olhei para um relógio no quarto e finalmente consegui ter uma ideia do horário depois de tanto tempo... eram 12:34. Já estávamos na cidade há muito tempo. Olhei para a máquina e vi os batimentos cardíacos do senhor. Estavam fracos, quase parando. Mas ele ainda estava vivo... e enquanto há vida, há esperança. Tentei me despistar de Jeff me pedir para desligar.

—Vou trancar a porta.- falei.

Comecei a andar e torci para ter uma chave dentro do quarto para poder trancar a porta. Realmente tinha. Enquanto girava a chave na tranca, ouvi o barulho que o visor de batimentos fez, indicando que aquele senhor havia perdido sua vida, indicando que Jeff havia tirado mais uma vida. Olhei para trás e vi Thomas saindo de perto da máquina, cujo visor tinha apenas uma linha reta. Ele que havia feito aquilo. Garoto arrogante.

—Ótimo. Agora, esperamos.- disse Jeff.

—Jeff, por que você faz isso?- perguntei por querer.

—O que?

—Por que você faz isso?- perguntei com raiva.- Por que isso é divertido para você?- comecei a me aproximar.- Matou sua família e agora outras pessoas também precisam sofrer... por que?

—E por que se importa tanto? Você está me ajudando a fazer isso.- disse parecendo calmo, mas temi seu tom de voz.

Fiquei o encarando, pensando em uma resposta.

—Porque aqui, é matar ou morrer. E acredite, Jeff, eu vou matar. Não duvide disso.

Thomas respirou fundo, parecendo perceber que eu estava falando em matar Jeff. Mas também lançou um olhar que parecia dizer “Cale a boca, idiota.” Esqueça, eu não estava seguindo regras naquele momento, e era a primeira vez em anos que não seguia. Jeff começou a andar em minha direção.

—Por acaso está planejando alguma coisa...- parou em minha frente.- Wendy?- me encarou.

Minha confiança voou um pouco naquela hora, mas ainda tentei me manter firme. Maldito seja, psicopata insano.

—Por que não se concentra em fazer o que realmente gosta Jeff, e deixa ela pra lá?- perguntou Thomas.

—Porque ela parece estar me desafiando.- respondeu ele, ainda olhando para mim.- E eu adoro desafios.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por chegar aqui :)
Até o próximo capítulo!



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