All Your Sounds escrita por Mims


Capítulo 1
Único




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abstrato
adjetivo;
1.
que não é concreto; que resulta da abstração.
2.
que possui alto grau de generalização.

 

O barulho presente no grande castelo de Hogwarts era constante. Nos corredores, escadas e salas comunais, era rotineiro que se ouvisse uma ou outra conversa incessante. O mais atento dos alunos perceberia que até na biblioteca o burburinho não parava. Era extremamente difícil encontrar silêncio naquele lugar.

Para Hugo Granger-Weasley, todo aquele alarde diário era insuportável. O lufano, apreciador nato do silêncio, sempre tivera problema com lugares barulhentos. Às vezes ele refletia se aquela característica vinha de sua mãe, outra que apreciava certa quietude, ou do gosto que tomou pelo silêncio após vários anos de barulho. A verdade é que podia até tentar enganar a si próprio, mas no fundo sabia que toda aquela aversão à ruídos era derivada da doença que carregava desde os primeiros anos de vida: a misofonia havia acompanhado Hugo por quase toda a sua trajetória.

Um cenário que incluía uma família grande, com primos e mais primos bagunceiros e constantes brigas dentro de casa haviam moldado ainda a personalidade de Hugo. Mas se alguém lhe perguntasse, ele não saberia dizer qual fora o principal fator para deixá-lo assim, tão calmo, tão silencioso. Era algo que gostava de guardar pra si mesmo. Ou isso, ou apenas esperava Hermione explicar a sua condição.

O hábito de manter silêncio em meio ao barulho à sua volta havia tornado Hugo um observador nato. Ele virara um especialista em perceber o mundo à sua volta em detalhes. Quase nada conseguia passar pelo seu olhar afiado. Quase.

Scorpius Hyperion Malfoy, na opinião de Hugo Granger-Weasley, era a pessoa mais abstrata que já havia pisado no perímetro de Hogwarts. Abstrato não só com base no significado da palavra de acordo com dicionário, mas considerando definições que se estendiam para além dele.

Cada traço, curva, linha e tom em Scorpius provocava total inquietação no lufano, acostumado a ter o controle de todas as coisas em suas delicadas mãos. Tudo, desde os olhos acinzentados do sonserino até os sinais de nascença que carregava em suas mãos, estava arquivado em algum lugar na mente quieta de Hugo.

Ainda assim, aquele garoto continuava uma abstração sem fim. Ele era como uma obra de arte trouxa. Um quadro de Van Gogh, talvez. Quem sabe de Picasso ou Monet. Não, melhor: Kandinsky.

Questões como aquela perseguiam a cabeça do ruivo de segundo em segundo. Seus olhos azuis percorriam toda a face de Scorpius sempre que esse insistia em falar com ele.

E como insistia.

Hugo nunca entendeu muito bem o motivo pelo qual o Malfoy resolvera ser seu amigo. Quem diria que um esbarrão brutal nos corredores em seu segundo ano de Hogwarts acarretaria no início de toda essa perturbação na alma do mais novo.

Um pedido de desculpas naquele mesmo dia teria sido mais que o suficiente, mas Scorpius insistiu, talvez para si mesmo, que não ficaria só naquilo. Desde então, começou a tentar puxar conversa com Hugo em toda e qualquer oportunidade e começou também a achar fofo o jeito de poucas palavras do menino e acompanhá-lo pelos corredores do castelo.

O Weasley não achava ruim aquela aproximação, de forma alguma. Era até bom ter - finalmente! - algum amigo em Hogwarts, mesmo que o amigo fosse dois anos mais velho e bastante falante. O que Hugo achava péssimo era como não conseguia entender Scorpius, por mais que tentasse.

Foram incontáveis as vezes que se pegou pensando no loiro antes de dormir ou entre uma aula e outra. Até nas refeições. Scorpius havia invadido escandalosamente a mente de Hugo.

E Hugo não conseguia achar qualquer explicação para tal fato.

Existia, sem dúvidas, um burburinho infinito e inquietante em Hogwarts, de modo que o castelo nunca ficava no mais pleno silêncio. Algumas vezes por semana, Hugo se encontrava em mais um ataque de sua companheira desagradável: a misofonia. A ansiedade causada pela aversão a todo o barulho ao seu redor o fazia se isolar cada vez mais, e aquele não era um sentimento exatamente agradável.

Talvez fosse por isso que ninguém se aproximava muito dele.

Exceto Scorpius.

Mesmo sabendo do transtorno do amigo, Scorpius Malfoy nunca saiu do seu lado, nem por um só segundo.

Hugo achava engraçado como sua doença mostrava-se simpática ao Malfoy e a maioria dos sons produzidos por ele. Sendo sincero, Hugo gostava de quase todos os sons que Scorpius fazia.

Desde sua voz arrastada até o suspiro alto que soltava quando estava preocupado com algo.

E talvez fosse isso que o tornasse tão abstrato para Hugo.

O fato de não conseguir entender a si próprio deixava o Weasley transtornado. Ora, como ele não conseguia compreender nem ele mesmo? Tal pensamento o fazia dar voltas e voltas em seu dormitório, até finalmente deitar em agonia devido ao som dos próprios passos.

Era complicado.

Quando havia completado oito anos, em sua festa, Hugo subira até o quarto e começara a chorar debaixo da cama. Perguntava-se incessantemente porque não conseguia ser uma criança normal, brincar como todos os seus primos. Porque era daquele jeito?

Cerca de quase uma hora depois, Hermione Granger falou uma frase que o garoto carregaria para o resto de sua vida.

— Sabe, Hugo, existe certa vantagem em ser quem somos. Todos os dias acabam se tornando um pouco mais especiais.

Desde então, ele repetia aquilo pra si mesmo assim que acordava. Tentava como ninguém fazer aquela frase se concretizar e tornar os dias um pouco mais especiais. Nunca conseguia.

Quando compartilhou esse pensamento com Scorpius, este o olhou no fundo dos olhos, talvez pela primeira vez, e lhe disse que o que tornava todos os dias de Hugo especiais era o simples fato de estar tentando.

— Conviver com a sua doença em níveis tão elevados e ainda sim estar aqui todo dia, disposto a enfrentar o que der e vier... Puxa! Acho que nem o próprio Harry Potter conseguiria chegar tão longe quanto você!

Toda vez que lembrava daquilo, Hugo sorria involuntariamente. Era incrível ter uma pessoa ao seu lado que o apoiasse como o Malfoy fazia.

Definitivamente, Scorpius era seu porto seguro.

Isso ficou nítido na mente do ruivo quando estava no terceiro ano e alguns alunos estavam o ameaçando. De acordo com eles, Hugo era esquisito demais pra ser filho de dois dos maiores heróis do mundo bruxo.

Aquele conjunto de frases e ameaças o rendeu uns dois ataques de ansiedade durante a semana e umas três crises de choro. No dia em que tropeçou no pé de um daqueles garotos, sentiu que morreria ali mesmo. Já estava quase sentindo o  impacto do soco em sua face quando uma figura loira surgiu Merlin sabia de onde.

Talvez, se Scorpius não tivesse chegado naquele momento, as dores da surra que teria levado durariam até hoje. Afinal, eram quatro contra um. Mas, graças a Scorpius, os poucos hematomas sararam em alguns dias. Ainda tinha levado alguns socos, porém não precisara passar por aquilo sozinho.

Aquele dia foi crucial na vida de ambos, pois desde então, o Malfoy quase nunca saia do lado de Hugo, ainda mais que antes. Hugo não podia ser mais grato por isso.

Haviam passado por tanta coisa juntos. As crises de ansiedade e a doença de Hugo, a euforia de Scorpius, os problemas na família de ambos, a sensação de solidão, as fugas até a Casa dos Gritos, as noites na torre de astronomia que nunca pareciam ter fim.

Ainda assim, era quase insuportável para o ruivo não conseguir entender o que levava Scorpius Malfoy a ser tão abstrato e muito menos o que levava seu cérebro a reagir tão bem a ele.

Um dos lugares preferidos de Hugo Granger-Weasley, em toda a área de Hogwarts era uma árvore próxima do Lago Negro, longe da maioria dos barulhos incômodos que aquele castelo levava consigo. Um ou outro ruído ainda era perceptível, mas em intensidades quase mínimas.

Portanto, aquele era especificamente o seu lugar.

Mas não só seu, pois a insistência de Scorpius o fazia acompanhar cada mínimo percurso que Hugo fazia.

Então aquele era o lugar deles.

E era exatamente ali que estavam, no fatídico e decisivo 3 de dezembro, às 16:09, num dia em que a neve havia cessado e o castelo de Hogwarts encontrava-se anormalmente seco.

O casal de amigos caminhou lado a lado desde o dormitório da Lufa-Lufa, onde Scorpius encontrava Hugo, até a mesma árvore que estavam tão acostumados a acostar-se. O Weasley levava consigo mais um dos muitos exemplares de livros que ganhava de seus pais e o Malfoy sempre tinha consigo um pequeno caderno, onde gostava de reproduzir todo o cenário à sua volta.

Hugo começou sua leitura diária de onde havia parado. Encostado na árvore, era extremamente confortável ouvir o barulho dos rabiscos de Scorp no caderno. Dele, especificamente. O loiro estava sentado exatamente ao seu lado.

— O que está lendo? — Scorp perguntou distraído. Era de seu feitio romper o silêncio entre eles e arrancar nem que fossem algumas poucas palavras de Hugo.

— Moby Dyck. — respondeu sem desprender o olhar das grossas páginas à sua frente.

— Li ano passado. Meu pai costuma me dar livros de autores trouxas. Virou meio que uma tradição. —  o menino voltou a comentar e fez uma pausa, antes de perguntar meio hesitante. —  Você nunca quis saber o que eu tanto desenho neste caderno?

— Você quer mostrar?

— Você quer ver? —  o Malfoy rebateu a pergunta com outra. O sorriso em seu rosto era descontraído, do tipo que só fazia quando estava com Hugo.

O mais novo assentiu lentamente antes de pegar delicadamente o caderno que Scorpius estendia para si. Apertou os olhos ao ouvir o som das páginas passando.

— Calma. — o amigo falou.

Quando retomou a si e focou no conteúdo daquelas páginas, surpreendeu-se.

Em traços extremamente realistas e bem-feitos, Hugo via a si mesmo em diversas daquelas folhas. Os olhos passearam entusiasmados por cada linha reproduzida, focando nos mínimos detalhes que Scorpius retratava muito bem. Nunca havia se visto de uma maneira tão diferente, tão artística.

— Sou eu. — falou num tom de uma criança surpresa.

O rapaz ao seu lado deu uma risadinha.

— Sim, é você — respondeu como se fosse algo óbvio.

— E porque eu?

— Porque você me inspira, Hugo. Cada detalhe seu merece ser reproduzido. Além do fato que você tem uma beleza própria de qualquer pintura renascentista. — Scorpius falou num rompante e logo em seguida arregalou os olhos.

— Isso foi um elogio? — questionou Hugo.

— Sim. — Scorpius começou a rir de uma maneira estranha, como se palavras tão simples como aquelas mexessem profundamente com ele.

— Porque só mostrou isso agora? — o ruivo voltou a perguntar.

— Sei lá, deu vontade. — Scorp deu de ombros.

O Weasley, atento a qualquer minúcia, percebeu o tom avermelhado nas bochechas do amigo. Sua mente, ávida e frenética, logo começou a raciocinar. Chegou a uma conclusão, mas aquilo parecia surreal demais pra si.

— Scorpius... — chamou, deixando o caderno de lado. — Essa semana, Rose me falou uma coisa e eu não consegui parar de pensar sobre.

— O que foi?

— Ela me falou... Quevocêgostavademim. — Hugo falou tudo em um só baque e seu tom de voz, já baixo, se tornou mais imperceptível.

Ainda assim, Scorpius, que já era acostumado com os leves ruídos do ruivo, ouviu perfeitamente aquelas palavras. Dentro de si, sentiu o coração apertar.

— É verdade? — o menor voltou a insistir, os olhos cinzas em sua direção. Azul no cinza. Uma colisão inevitável.

— É. — essa foi a resposta. Simples, direto.

— Tá bom. — Hugo voltou a pegar seu livro e abrir na página onde havia parado.

—Tá bom? — Scorpius insistiu. — Você faz uma pergunta importante dessas e depois só diz ‘’tá bom’’? Não percebeu que eu meio que acabei de me declarar pra você?

Hugo permaneceu em silêncio. Seus olhos voltaram a procurar os de Scorp, que estavam inquietos, cobertos de dúvidas. O Weasley percebia a confusão na face do loiro. Era uma das coisas que conseguia perceber tão concretamente naquele mar de abstração.

—Tá bom. — Voltou a repetir, dessa vez buscando a mão de Scorpius e entrelaçando seus dedos nos dele.

Esperava no fundo de sua alma que o amigo pegasse o recado. Nunca tinha sido muito bom com palavras ou com gestos, então aquela pequena ação era o melhor que conseguia pensar.

O loiro olhou ainda mais confuso para as mãos entrelaçadas, em seguida para Hugo e novamente pras mãos. Hugo riu baixinho da reação do amigo.

— Scorp? — chamou.

— O que foi? — ele perguntou franzindo a testa.

— Você sabe que eu amo todos os seus sons, não sabe?

Scorpius nada falou, apenas sorriu como se finalmente tivesse entendido o que tudo aquilo significava – desde quando tinham se esbarrado nos segundo ano de Hogwarts até aquele exato momento.

Para Hugo, várias coisas eram difíceis. Lidar com o barulho constante da escola era difícil. Acordar todos os dias do mesmo jeito era difícil. As crises de ansiedade eram difíceis. Não entender a si mesmo ou o abstracionismo de Scorpius era incrivelmente difícil.

Mas, de alguma maneira, estava conseguindo passar por tudo aquilo. Estava ali, em um dos seus lugares preferidos, com a pessoa que amava.

E, naquele momento, não importava se Scorpius fosse um quadro de Van Gogh, Picasso, Monet, Kandinsky ou seja lá quem. Hugo ainda voltaria a encarar aqueles mesmos olhos nublados e amaria cada centímetro do Malfoy.

Porque aquela era a mais pura verdade:

Hugo Granger-Weasley amava todo e qualquer som emitido por Scorpius Hyperion Malfoy.

E esperava que isso nunca mudasse.

 


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