Odindóttir escrita por Shalashaska


Capítulo 9
IX




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To capture a predator
You can’t remain the prey
You have to become
An equal
In every way

So look in the mirror
And tell me, who do you see?
Is it still you?
Or is it me?

Become the beast
We don’t have to hide
Do I terrify you
Or do you feel alive?

So embrace the darkness
And I will help you see
That you can be limitless
And fearless
If you follow with me

We are the lions
In a world of lambs
We are the predators
The hunters
The hunters
The hunters

Karliene, "Become de Beast"

A viagem pela Bifrost foi rápida, embora desconcertante em suas sete cores. Hela trouxera Fenrir, enquanto seu pai cavalgava Sleipnir e Freya seus dois linces que puxavam sua biga. As Valquírias vieram aos poucos, mas vieram todas com seus cavalos alados.

O céu era escuro e atormentado por nuvens pesadas, que de tempos em tempos relampejavam forte no breu. A tempestade, porém, jamais caia e o clima de tensão crescente nunca se dissipava. A caminhada foi difícil entre pedregulhos pretos em direção a uma grande estrutura de rocha esculpida no alto de uma montanha: duas torres erguidas como para emoldurar um portal. Não era seguro voar até lá e houve um momento em que não era recomendado seguir com os cavalos alados. Freya permaneceu ali, desejando sorte a Odin e sua Executora. Prometeu-lhes lealdade e, à qualquer sinal de perigo, não hesitaria em subir a montanha e ajudá-los. Eram seu rei, sua princesa. Seus amigos, quase família. Se despediram de maneira calorosa e solene. Ela e suas Valquírias esperavam enquanto os líderes seguiam a frente.

Odin deixou Sleipnir, porém Fenrir seguiu com os dois caminho acima. Pai e filha não se falavam naquele momento, sorvendo cada um dos próprios pensamentos. A umidade do lugar invadia seus corpos, as escadarias eram rudimentares e perigosas. Odin se apoiava com a lança Gungnir para poder andar, ajudando a filha a subir cada degrau. Trazia consigo a Manopla forjada em Nidavellir e a Joia do Tesseract foi cuidadosamente retirada de seu invólucro para ser posta ali. Mais do que seu elmo dourado ou a Manopla, seus pensamentos pesavam.

A Joia da Alma tinha poderes indescritíveis, pouco conhecido pelos sábios. O ideal era que mãos mundanas não tocassem em tal relíquia, embora ela tivesse as bênçãos sagradas de controlar almas. Existiam outras lendas, como a que a joia poderia aprisionar almas dentro de uma idílica dimensão própria, mas não era nada confirmado ou útil para Odin. Ele queria ser o rei mais poderoso dos nove reinos conhecidos por Asgard, queria curar a alma flagelada de sua filha. Era sua própria sede de desejar tudo falando. Conhecendo a própria alma e a culpa por ter obscurecido o interior de Hela, achava difícil. Se tal alternativa fosse possível, seria somente por uma dessas Joias do Infinito para purificá-los.

Uma figura os encontrou na base de outro lance das escadarias. Sua voz era feminina, mas seus traços eram tão magros e obstruídos pelas vestes que não era possível distinguir seus contornos. Foi quando perceberam que a criatura não tinha pés e seu queixo pontudo tinha uma cor azulada. Fenrir começou a rosnar.

— Oh, vós que entrais. Deixai aqui toda esperança...

Völva. — Odin cumprimentou-a, muito calmo e temeroso pelo seu último encontro com esse tipo de espírito. Hela adiantou-se, esquecendo de toda a boa educação que sua mãe e seu pai lhe deram:

— Não estamos aqui para enigmas e sim pela Joia. Diga, völva, onde ela está?

— Não sou völva, nem sou um espírito. Sequer vivo, pois não tenho vida. Tenho uma sina. Guardo este local e sei quem são. Eu sei de tudo e sei também quando deixarei de existir. Odin Borson, rei de Asgard e Pai de Todos. Suas mentiras ainda o levarão longe. Hela Odindóttir, Executora e Deusa da Morte. Será enterrada em Asgard no fim dos tempos. — O queixo pontudo da Guardiã passou de Odin à Hela. — Eu vejo sede e eu vejo fome. Me acompanhem, pois sei onde saciar seus desejos.

Chegaram. O lugar era todo esculpido na rocha escura, de tons pretos e azuis. Havia rachaduras nas duas imensas torres, porém não existia nada além do abismo a frente e o céu tempestuoso acima. A visão era bela, sem dúvida. Mesmo que desolada, evocava um sentimento de contemplação entre tamanha ruína. Hela espiou o fundo do abismo, observou as pedras entalhadas de forma ritualística. A criatura mais uma vez falou, sua voz como o castigo do vento:

— O que desejam… O que aplacará sua sede e sua fome está adiante.

Pai e filha se olharam.

— Guardiã. — Hela se virou à mortalha flutuante. — Eu não vejo a Joia.

— A Joia da Alma é especial entre as demais. Ela requer… Certa sabedoria. Ela tem um preço. Demanda sacrifício.

— O quê?

— Para merecer a Joia da Alma, seu portador deverá perder o que mais ama. Uma alma por outra.

Então a criatura nada mais disse e não precisava. A decisão tinha sido posta nas mãos dos dois asgardianos, que se encaravam. Odin e Hela estavam próximos um dos outro, naquele momento reduzidos ao que realmente eram: pai e filha. Para o Pai de Todos, não lhe importaram as capas balançando contra o vento, vermelho e verde, estandartes de guerra. Não importava o ouro que vestia. Ele enxergava sua garotinha.

Mas Hela enxergava seu rei, a quem havia jurado proteger e servir, a sacrificar a si própria pelo bem da glória.

Os dois entendiam quem seria sacrificado. Sentiram o peso. Imaginaram a queda.

Odin encarava-a com a boca um tanto aberta, mas sem palavras. Sua sabedoria estava muda. Não sabia do preço, a völva não havia profetizado este detalhe. A decisão racional seria jogá-la do abismo, pois tinha outro filho no ventre de Frigga, outro herdeiro. Também evitaria o fim de todas as coisas, o Ragnarok, e ele então teria a Joia da Alma e seria o maior rei a sentar no trono de Asgard. Mas ele… Não conseguia.

Os olhos dela estavam muito brilhantes naquele instante. Hela passou as mãos na cabeça e seu elmo se desfez. Ajoelhou-se diante dele. Não havia ouvido a völva falar sobre si quando Odin pediu suas profecias, porém concordava com o custo e estava disposta a pagar.

— Faça, meu pai. Será uma honra.

— Hela, se levante.

— Eu aceito o preço. É uma ironia sem tamanho a Deusa da Morte ter que morrer. — Ela riu sem humor. — Não sei se morreria de fato, meu pai. Mas eu cumprirei o destino a mim designado sem trair minha palavra. Jurei fazer o necessário pelo bem do reino e assegurar a vida de meu rei mesmo que custe a minha. Por Asgard.

Ela tinha lágrimas que não deixou cair, enquanto das bochechas de Odin escorreram gotas silenciosas. Fenrir soltou um longo e fúnebre uivo, relâmpago cortou o céu.

— Não, Hela. Não.

Ela se levantou tremendo. Houve uma longa pausa antes que dissesse algo, sua voz carregada. Seu lobo começou a rosnar.

— Por quê, pai? Eu não sou boa o suficiente? Não sou amada o suficiente?

— Não, Hela.

— E Asgard? E nosso legado de mostrar o esplendor do nosso reino mundos afora? Esqueceste? Ou traíste tuas palavras?

— Asgard não nunca careceu disso. Nós não precisamos mais das Joias. Foi um erro.

— Meu pai…

— Eu não vou vê-la morrer! — Silêncio. Odin fechou as pálpebras por um segundo, os lábios comprimidos. A decisão certa era jogá-la, por motivos que sua filha jamais saberia. Mas ele não era capaz. — Se não escuta teu pai clamando por sua vida, ouça teu rei. Não precisamos da Joia. Eu a proíbo de executar o sacrifício e deslegitimo qualquer tentativa de se jogar no abismo. Nós voltaremos para casa, cuidaremos de sua mãe e vamos dizer a todos que a Joia se perdeu para sempre. Ficaremos em paz.

— Um rei não falaria assim. Jotunheim se prepara para buscar as Joias do Infinito e enquanto isso, hesitas. Nossos inimigos não terão clemência, por que deveríamos ter? O que houve com o Odin que matou o gigante Ymir e fez do crânio dele a abóbada celeste? Que fez do sangue de seu antepassado se tornar o rios que matam nossa sede?

— Ele se tornou sábio e ama a própria filha. Hela, eu te peço…

— És fraco. — O rosto dela se torceu em decepção. Com um só gesto, chamou Fenrir. — Se não és capaz de cumprir o sacrifício, eu sou.

Ela deu um abraço em Fenrir, aspirando o cheiro selvagem de seu pelo negro. E então o jogou no abismo.

 

Demorou muitos segundos para enfim ouvir o som do impacto, o ganido dolorido. Algo dentro dela havia se partido, porém ela não se arrependia. Tinha feito o certo, cumprira seu dever como Executora e futura rainha de Asgard, mesmo que isso a quebrasse por dentro. Ela se ajoelhou na beirada de pedra, vendo o corpo estirado de seu belo animal. Suas patas jaziam torcidas em ângulos errados, a boca aberta e os olhos cor de topázio sem vida. As lágrimas que Hela segurava começaram a descer sua face sem que ela tivesse forças para parar. Em seu íntimo, sabia que Fenrir compreendera. Eles eram um só.

No entanto, nada aconteceu. Não houve brilho, não houve mágica revelação. Só o céu tempestuoso e o vento, a Guardiã pairando a um metro do chão.

— Pai… — A voz dela estava embargada. — Eu não entendo. Onde está a Joia? Fenrir… Meu Fenrir está morto.

— É porque ele não é o que mais amavas, minha filha.

— Como ousas?

— Tu amas o poder. Eu não enxergava no começo e eu me culpo todos os dias por isso. Eu lamento, minha filha. Mas nós temos que aprender a abdicar dessa sede. Dessa fome. Porque nunca será o suficiente.

Hela chorou e chorou, seus ombros tremendo, até se levantar.

— Eu fiz isso por nós. Por Asgard. Por você. Eu teria conseguido...

— Não, Hela. Pare.

A jovem passou as mãos pelos cabelos escuros e invocou o elmo de chifres de volta. Sua boca estava torcida num rosnado de ódio, dentes muito brancos e famintos em contraste com seus olhos verdes. Aquela era uma expressão que significava o fim.

— Tu me traístes!

Lançou lâminas em direção ao pai, em direção a Guardiã. Odin desviou, a criatura se dissipou no ar. A Deusa da Morte avançou, invocando lâminas e mais lâminas, num frenesi jamais visto. Ela gritava e chorava. Se enfrentaram entre as ruínas de Volmir, lâmina contra a lança Gungnir,  até que o Pai de Todos foi jogado contra uma das pedras. Quase perdeu a consciência, mas desespero por sobreviver e fazer Hela entender o manteve desperto. Ansiava por fazer sua filha enxergar algo que ele viu tarde demais. Algo ruim e sombrio em si que aflorou além do esperado em sua própria herdeira. Morte. Fome. Ânsia por poder e guerra.

A cada golpe que tinha que dar ou a cada baque sofrido em seu corpo, era um corte no coração do Pai de Todos. Ela era forte, ela queimava em ódio e ela não ia parar até que estivesse morta ou inconsciente. Joga-la do abismo no sacrifício teria sido a decisão correta e naquilo Hela estava certa: Ele era fraco.

— Eu deveria saber! — Ela mais uma vez gritou. — A Guardiã mencionou tuas mentiras. Tudo era apenas um engodo, uma trapaça. És um grande carniceiro feito teus corvos e quer que eu faça os sacrifícios em teu nome para que aumente tua própria glória!

— Entendeste tudo errado, o ódio deturpa tua clareza. Tu és minha filha e eu te amo. Não é apenas minha Executora.

— Tinhas dito que um belo dia seriam nós dois a conquistar todo o universo. Bem que disseste que ao fim seria eu e tu. É o fim! Por quê, meu pai? Por que fez isso comigo? Eu fiz tudo o que me pedistes. Honrei meu juramento! Por você! O que mais queres de mim?

— Eu te amo, Hela. Me perdoe.

Com a Manopla com uma só Joia, Odin invocou um portal dourado para as Valquírias e empurrou Hela para longe. Ela se ergueu de forma rápida e conjurou lâminas imensas, negras e verdes, para servir de apoio ao seus pés enquanto subia e subia em direção aos céus. Um riso doente estava estampado em sua boca e o cenário cinzento de Volmir foi o palco do encontro entre as valorosas guerreiras e a morte violenta.

Freya, amiga de longa data de Hela, foi a primeira a morrer pelas suas mãos. Ela não entendia ao certo o que aconteceu no alto da montanha, mas a questão é que a filha de Odin estava fora de si e ameaçava seu rei. Talvez fosse uma possessão da Joia da Alma, quem sabe foi a sombra que sempre existiu na Executora. Freya tentou argumentar, mas sua garganta foi atravessada por um punhal. A biga de linces caiu e os felinos jamais foram vistos novamente.

Uma a uma, as Valquírias foram derrotadas. Foi uma profusão de sangue, gritos, o som das lâminas se chocando e os trovões no céu, sem chover. Não foi por falta de coragem ou habilidade que as melhores guerreiras de Asgard foram vencidas. A questão era que Hela era a Deusa da Morte, aniquilação. Ela era o fim definitivo o qual todos temiam, mortais e deuses. Não havia escapatória. Ao final só existiam corpos e penas dos cavalos alados das guerreiras.

Hela estava no meio de tudo, suja. Seus ferimentos cicatrizavam com rapidez, cena que Odin observou com horror. O cenário estava mais escuro e enfim começou a chover, gotas grossas e geladas. Hela gargalhou, gargalhou, gargalhou. Um relâmpago iluminou sua figura composta por chifres e sangue, e mais uma vez Odin viu metade do rosto de sua primogênita se tornar um cadáver podre.

— Não podes me derrotar, seu rei tolo. Eu sou a Morte!

— Eu sei. Eu vi. — Ele caminhou para perto de sua filha, apoiando-se em Gungnir a cada passo. Até que ergueu sua lança levemente, mesmo gesto que fazia quando pronunciava promessas inquebráveis. O gesto era sagrado. —  Teus poderes vieram de Asgard e lá eles se tornam mais fortes, sedentos. Fora de seu reino, tu sacias tua fome. Chegará o fim de todas as coisas e tu estarás lá. Mas esse fim só será real quando eu me for.

— Cale-se!

— Você está banida, Hela. Não poderá causar nenhum mal no exílio. — E então, mais baixo: — Eu te amo.

Antes que ela pudesse responder, antes que pudesse lançar mais uma lâmina sobre o pai, Odin bateu Gungnir no chão e o eco se fez por todo ambiente. Luz azul banhou seus olhos, silêncio invadiu seus ouvidos. Tinha usado a Joia do Tesseract, capaz de moldar o espaço e abrir portais. Quando abriu as pálpebras, Hela não estava mais lá.

Sobraram os corpos das Valquírias e de seus cavalos alados. Somente Odin sabia o que tinha visto a verdade naquele planeta e a verdade era pesada. Hela não havia quebrado sua promessa de ser a Executora de Odin, de espalhar o esplendor de Asgard por todos os reinos, mas o Pai de Todos feriu seus votos de ser um bom pai antes de ser um bom rei. Hela, sua garotinha, era um reflexo de sua tolice. Foi fraco. Foi estúpido em não a orientar da forma correta, ao instigar a sede por violência. E a amava demais para colocar fim na filha quando teve oportunidade.

A volta para Asgard foi solitária: um rei ferido e derrotado em seu cavalo.


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Notas finais do capítulo

* " Oh, vós que entrais. Deixai aqui toda esperança..." — Referência ao Inferno de Dante, de Alighieri.
*Tentei recriar aqui o discurso, ou melhor, a explicação dada pelo Caveira Vermelha em Volmir no filme Guerra Infinita.
*Também repetia certas frases que Loki disse a Odin em Thor, de 2011.
* Eu queria uma vibe meio Obi-Wan versus Anakin no episódio III de Star Wars, tirando o fato que o cenário é de névoa ao invés de fogo hahaha Não ficou igual, é claro, mas vocês entenderam.
* Novamente usei o "tu" em lugar de "você" e peço que me corrijam se estiver errado.
*Espero que tenha ficado épico do jeito que imaginei XD Comentários são sempre bem-vindos.



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